Paisagem contra o sol

Conto de Amilcar Bettega Barbosa
01/04/2005

Tudo estava resumido a nada. O resultado de uma guerra é sempre difícil de prever, ele pensou, mas sem destruição não há como fazer a guerra. Tudo estava destruído, reduzido a uma poeira fina e abundante que seus pés levantavam a cada passo, como se caminhasse sobre uma camada de talco.

Ele caminhava havia algumas semanas e a paisagem era sempre a mesma: nada além de um cinza opaco e o pó fino que se alojava silenciosamente nos seus pulmões. Por vezes cruzava restos do que imaginava ter sido uma cidade: antigas ruas atulhadas de pedaços de paredes, vigas de concreto partidas a exporem vísceras de aço retorcido, cabos de eletricidade frouxamente pendidos como varais abandonados e o asfalto mastigado pela passagem dos tanques. Tudo era cinza, mesmo quando ele deixava as cidades e caminhava por aquilo que um dia fora o campo, e tudo sempre tão escuro, como uma só noite que de tempos em tempos se abria numa espécie de bocejo para dar à luz um dia opaco e cinza, o que apenas deixava mais à mostra a paisagem desolada.

Pela camada de pó que subia acima dos tornozelos, ele percebeu que era mais uma cidade, ou os restos dela, o que estava ali na frente. Fazia noite de verdade, mas do céu começava a vir outra vez a luz opaca daquilo que ele passara a chamar de dia. Sentia-se cansado e resolveu sentar no chão, encostando-se numa meia-parede que lhe pareceu mais ou menos sólida. Quando espichou as pernas, uma pequena nuvem de pó se levantou em torno dos seus pés. Mexeu outra vez o pé, como quem apaga uma ponta de cigarro no chão, e maravilhou-se com a poeira que agora já não era cinza, mas amarelada e densa, onde boiaram com uma nitidez espessa as pequenas partículas de pó. Virou o rosto para trás e percebeu que um raio de sol passava oblíquo por cima de seu ombro, suspendendo no ar a nuvem de poeira amarelada.

Sacudiu outra vez os dois pés e também as mãos, como uma criança sentada à beira do mar e brincando com a água das ondas. A poeira encorpou-se, subiu até a altura do peito e ele sorriu. Tossiu uma ou duas vezes, mas, tomado por uma alegria infantil, correu uns sete ou oito ou dez metros arrastando os pés no chão, chutando os montes de pó que engoliam seus tornozelos. Voltou-se para ver a nuvem de poeira que seu movimento produzira e recebeu em pleno rosto a luz amarela e espessa, filtrada pela cortina de pó que já o envolvia completamente.

Riu outra vez, atirou-se no chão e rolou o corpo três, cinco, infinitas vezes, até sentir-se tonto e incapaz de contar, experimentando na garganta e nos brônquios as mesmas partículas que dançavam espessas no ar amarelado pela luz oblíqua — levantando cada vez mais alto uma espessa nuvem de pó, uma nuvem de pó que percorria sozinha a paisagem devastada.

Amilcar Bettega

Nasceu em São Gabriel (RS), em 1964. É autor, entre outros, de Os lados do círculo (2004), Barreira (2012) e Prosa pequena (2019).

Rascunho