Outro regresso

Conto de Paula San Vicente
Ilustração: Ramon Muniz
01/03/2006

Desde a janela da cozinha escutou saltitar pelo caminho as primeiras folhas do outono e pensou que o vento do sul que arrastava as folhas não ia demorar muito em desabar em chuva. Pensou-no, mas antes de o ter pensado já o tinha sentido na pele e nos ossos. Era o vento do Sul o que sempre lambia os caminhos e trazia a poeira sob das portas, o que cantava às noites e trazia a humidade. Escutava as folhas no caminho e os passos do seu filho no seu quarto a arrumar no armário a roupa da mala. Dois passos desde a cama até ao armário e dois passos desde o armário até à cama. Pensava nas camisas, nas calças, nas gravatas. Pensava em essa roupa que vestia o homem que agora era o seu filho, passados mais de quarenta anos, e que nunca vestira a criança que fora o seu filho. Pensava nos óculos do homem que era o seu filho, no carro em que chegara o mesmo homem que era o seu filho, no perfume que tinha o homem que era o seu filho, e sorria por reconhecer detrás dos óculos, detrás da janela do carro azul grande e brilhante, envolto no perfume estranho de aquele homem, o sorriso e o olhar e as mãos e as palavras de aquela criança que não deixara nunca de ser o seu filho.

Cozinhava o seu jantar preferido e dispunha os pratos na mesa numa cerimónia quotidiana e antiga de carinho. Cortava o pão e trazia o passado até aos seus dedos, voltavam as crianças da escola esfomeadas a saltitar pelo mesmo caminho que agora saltitavam apenas as folhas. Punha a jarra com água na mesa e era o pequeno que bebia, duas mãos a sujeitar o copo, quase afogado na ânsia com que bebem as crianças.

Dois passos da cama ao armário e dois passos do armário a cama. As camisas do homem, as calças, as gravatas, as peúgas finas, as ceroulas, os sapatos pretos… e porém, o mesmo armário, a mesma cama, a mesma janela, a mesma porta, a mesma madeira, a mesma cozinha e até a mesma mãe.

Baixou o filho. Ela esperando numa aura perpétua de pimentos e cebolas para invocar a vida. E a vida toda inteira no marco da porta na feição do seu filho que sorri deleitado de voltar à cozinha.

E então jantam e falam. Ela conta nervosa as queixas dos seus dias para sentir-se segura diante da conversa que agora não conhece do seu homem filho. O vento do sul que traz a dor dos ossos, a figueira de figos cativos… mas depois ela quer que ele conte e então pergunta: é então é certo que atravessaste o mar… como é que é o mar?

E então ele responde e conta como é o mar, como é a terra para além do mar, como são as pessoas para além do mar, como são os corredores e gabinetes nos que as pessoas moram para além do mar… e ela olha para ele, para além do mar. Olha e cala enquanto fala ele. Cala e reconhece enquanto fala esse homem que ainda é o seu filho, cala e reconhece enquanto fala a criança que agora é esse homem. O homem que arrumou as gravatas no armário onde ainda guarda cadernos da escola, o homem que estacionou um carro azul e grande onde ainda ficam as rodas velhas da bicicleta, e de pronto não há distância entre então e agora, de pronto seca-se o mar, o pão e as folhas do caminho, a água da jarra e os pratos da mesa, o vento do sul e as mãos do pequeno que fala diante dela…. e então, cheia de orgulho, ela não pode evitar a pergunta: e tu, meu filho, lembras aquele forte de soldados que te trouxéramos pelo Natal? Que feliz foras aquele dia!

E as mãos da mãe voam até ao rosto pequenino do filho que dentro da sua carícia não sabe ser homem.

Paula San Vicente

Nasceu em 1963, na cidade de Corunha, na Galícia. Publicou, em 1998, Gatos a lápis sem ponta, além de contos na Revista Rodapé da Biblioteca de Beja e na Mealibra. Também colabora com a revista 365. Em 2003 venceu o Prémio de Narracións Breves Manuel Murguia.

Rascunho