Desde a janela da cozinha escutou saltitar pelo caminho as primeiras folhas do outono e pensou que o vento do sul que arrastava as folhas não ia demorar muito em desabar em chuva. Pensou-no, mas antes de o ter pensado já o tinha sentido na pele e nos ossos. Era o vento do Sul o que sempre lambia os caminhos e trazia a poeira sob das portas, o que cantava às noites e trazia a humidade. Escutava as folhas no caminho e os passos do seu filho no seu quarto a arrumar no armário a roupa da mala. Dois passos desde a cama até ao armário e dois passos desde o armário até à cama. Pensava nas camisas, nas calças, nas gravatas. Pensava em essa roupa que vestia o homem que agora era o seu filho, passados mais de quarenta anos, e que nunca vestira a criança que fora o seu filho. Pensava nos óculos do homem que era o seu filho, no carro em que chegara o mesmo homem que era o seu filho, no perfume que tinha o homem que era o seu filho, e sorria por reconhecer detrás dos óculos, detrás da janela do carro azul grande e brilhante, envolto no perfume estranho de aquele homem, o sorriso e o olhar e as mãos e as palavras de aquela criança que não deixara nunca de ser o seu filho.
Cozinhava o seu jantar preferido e dispunha os pratos na mesa numa cerimónia quotidiana e antiga de carinho. Cortava o pão e trazia o passado até aos seus dedos, voltavam as crianças da escola esfomeadas a saltitar pelo mesmo caminho que agora saltitavam apenas as folhas. Punha a jarra com água na mesa e era o pequeno que bebia, duas mãos a sujeitar o copo, quase afogado na ânsia com que bebem as crianças.
Dois passos da cama ao armário e dois passos do armário a cama. As camisas do homem, as calças, as gravatas, as peúgas finas, as ceroulas, os sapatos pretos… e porém, o mesmo armário, a mesma cama, a mesma janela, a mesma porta, a mesma madeira, a mesma cozinha e até a mesma mãe.
Baixou o filho. Ela esperando numa aura perpétua de pimentos e cebolas para invocar a vida. E a vida toda inteira no marco da porta na feição do seu filho que sorri deleitado de voltar à cozinha.
E então jantam e falam. Ela conta nervosa as queixas dos seus dias para sentir-se segura diante da conversa que agora não conhece do seu homem filho. O vento do sul que traz a dor dos ossos, a figueira de figos cativos… mas depois ela quer que ele conte e então pergunta: é então é certo que atravessaste o mar… como é que é o mar?
E então ele responde e conta como é o mar, como é a terra para além do mar, como são as pessoas para além do mar, como são os corredores e gabinetes nos que as pessoas moram para além do mar… e ela olha para ele, para além do mar. Olha e cala enquanto fala ele. Cala e reconhece enquanto fala esse homem que ainda é o seu filho, cala e reconhece enquanto fala a criança que agora é esse homem. O homem que arrumou as gravatas no armário onde ainda guarda cadernos da escola, o homem que estacionou um carro azul e grande onde ainda ficam as rodas velhas da bicicleta, e de pronto não há distância entre então e agora, de pronto seca-se o mar, o pão e as folhas do caminho, a água da jarra e os pratos da mesa, o vento do sul e as mãos do pequeno que fala diante dela…. e então, cheia de orgulho, ela não pode evitar a pergunta: e tu, meu filho, lembras aquele forte de soldados que te trouxéramos pelo Natal? Que feliz foras aquele dia!
E as mãos da mãe voam até ao rosto pequenino do filho que dentro da sua carícia não sabe ser homem.