Tradução: Ronaldo Cagiano
Um livro na água
A lentidão não deixa de ser um movimento,
um estar aqui e ali, embora ninguém veja
senão por meio da leveza de uma imagem
na água. Aprendeste com as margens de um rio.
Aí, como num haikai, a flor, a folha amarela
e a nuvem negra adquiriram suas cores:
toda a irrealidade que admiramos.
Finalmente, soubeste que é um reflexo o que,
depois de muita discussão, nos fez concordar
sobre a velha questão de saber que coisa é Deus.
Importa quem teve razão? Foram quatro letras
capazes de dizer seu nome? Pode essa palavra traduzir
aquilo que ignora e que a precede?
Este é um livro perdido nas águas,
na corrente que o leva…
Suas páginas se apagam levando,
também, o lento segredo que guardam.
…
Pássaros mortos
Um inimigo oculto os espreitou.
Mais que o céu feito de tobogãs
e andaimes invisíveis: eis os altos edifícios,
durante a noite das migrações.
Com a manhã, apareceu o espetáculo,
na calçada diante do zelador e sua vassoura.
Poderiam ser milhares ou centenas ou dez:
pirirí ou urraca, espinero ou joão-de-barro,
bem-te-vi ou bichofeo, churrinche ou brasa de fuego…
A arbitrariedade de uns nomes não consegue
dissimular todo o canto das coisas.
Sonham com outra idade. Outro reino, dizem.
O certo é que foram pássaros e também
cipós soltos das árvores.
Embaixo do edifício, agora,
suas sílabas estão caladas, submetidas
ao selvagem sussurro da vassoura.
Lesmas e haikais
Viscosas e extremamente famintas
de uma folha, ou apenas
uma goma resistente sob o sapato,
elas, sem saber, aparecem
de algum lugar,
na lentidão de outro tempo.
Muito quietas
para o baile, muito úmidas
para a alegria, empurram cegas
o peso de uma montanha perdida
e a modesta leveza conquistada…
Há um poema do velho Jôsô,
o discípulo do grande Bashô,
em que se compara a uma delas:
assim a casa em espiral sobre suas costas
abandona, um dia, junto com sua riqueza.
Troca tudo em razão da intempérie
e da lúcida trilha que nunca seca.
Outra vez um beija-flor
Imperceptível aos olhos, dizem que o nêutron
não fica parado e, mesmo sem ser visto,
está em todas as partes, desintegrando-se
em um universo de leis e conjeturas.
Se pudesses imaginá-lo, nada
seria mais conclusivo que um beija-flor
como o desta última manhã de verão:
lá e cá estava sugando
das flores tardias e até
do reflexo minúsculo da gota
no tanque.
Persegues uma imagem e
é apenas um fantasma que permanece na água.
Variações sobre uma biografia de Onetti
I
Onetti percorre Memphis.
Disseram que aí estava a tumba de Faulkner,
mas era em outra cidade também chamada Memphis.
Disseram-te ou leste
que voavam demônios sobre uma cruz branca
em um campo verde e que havia outros nomes
como em Spoon River.
Leste ou te disseram que estava morto
mas você constatou — ninguém te contou — não havia tumba.
Um artista é uma criatura impulsionada por demônios.
Leste e na leitura solitária — como outra coisa —
misturado a um nome egípcio e a um estranho
caminhaste equivocado em uma manhã
procurando outro desaparecido.
II
(a vida imita a literatura)
Onetti nos destroça
“…nos faz chorar, nos entristece”
ela, com sua boca de cereja, diz na Universidade de Berkeley.
Às vezes o assunto tem a beleza de uma estátua grega,
tem essa emoção que adoça
como um beijo de bolero
e tem essa mentira
que não é, senão um recurso desesperado
com que se pode tolerar o amargo mais profundo.
Às vezes, e então, algo por dentro, como um demônio
toma as mãos que antes acariciava
e rasga e estupra e assassina.
E diz:
“é assim a literatura”.