Seria preciso contar o século. Seria preciso falar da geração minha, a que acordou com a bomba atômica de Hiroshima — ela marcou a adolescência, a vida, para nós. A infância sagrada ficava embrulhada na toalha de xadrez azul da mesa da minha avó Ana. A infância, coisa de sequilhos, goiabada cascão feita em casa, lingüiça com farofa.
Depois, nesta ordem, veio a bomba atômica.
E no desenrolar da vida, outros sustos.
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O mundo — daquela vez — começou a acabar exatamente às 19 horas (hora de Nova York) do dia 22 de outubro de 1962. Os jornais da tarde, avisos na TV, haviam desmanchado a paz daquela segunda-feira, prometendo que logo mais o presidente dos Estados Unidos irromperia no vídeo com uma “importante declaração ao povo norte-americano”. Era prenúncio de catástrofe — em tempos normais o presidente só fala ao público uma vez no ano, para fazer um relatório de sua administração, o State of the Union.
No Gene Frankel’s Theater Workshop os alunos riam e conversavam, um deles folheava uma revista. Não havia ninguém com angústias de pré-mensagem. A aula começou. Uma professora também sem pré-mensagens aparentes pontualmente chegou, escolheu dois alunos e mandou-os para o centro do tablado. A realidade histórica daquele momento transformava-se em imagem pictórica: uma mocinha gorda, sentada de perna aberta no meio do mundo, concentrava-se na palavra-tema, lime. E um enorme limão pop veio saindo de dentro dela, limão-ectoplasma, passando sua acidez-cheiro-forma-cor-matéria para quinze alunos concentrados em alguém que se concentrava, sob as ordens de alguém que mandava que eles se concentrassem: na palavra “limão”.
Lá fora algo muito grave se passava — o apocalipse. John Fitzgerald Kennedy de cara séria anunciava o bloqueio de Cuba. Dentro daquele útero que era o laboratório central em Greenwich Village, um limão pop crescia avantajado e ameaçador, ocupando inteiramente o tablado.
Um limão atômico.
A aula continuava. O tema era agora: duas pessoas querem se comunicar mas há entre elas uma parede de vidro à prova de som. Incomunicabilidade. Lá fora, bandeiras desfraldadas, tambores do Juízo Final. Quem está querendo comunicar e o quê? Ou talvez já houvesse comunicação estabelecida entre aqueles dois telefones vermelhos que comandavam os botões do mundo. O limão atômico poderia espatifar-se a qualquer momento contra a parede de vidro da incomunicabilidade.
Melhor voltar logo para casa.
Bem, se era somente um bloqueio, talvez a coisa não fosse tão terrível. Porque no ar, parado como uma bolha, havia o temor da declaração de guerra. Podia realmente ser pior. Mas e as represálias da União Soviética? De todo jeito o que adiantava que uma moça se preocupasse com a represália soviética, uma moça bonita e feliz, parada diante do berço do filho de 16 meses, Marcelo, em um apartamento do Greenwich Village?
Na ONU, a mesma surpresa. A mesma impotência. A pergunta única, em todos: desta vez é para valer? E o que se pode fazer? A impotência de se fazer algo para mudar uma situação acaba por tranqüilizar. Era como se o limão-ectoplasma de ainda pouco fosse se estendendo sobre todos nós, protetor, acolchoando a realidade. Não podia ser verdade, o mundo não ia acabar, a menina gorda de perna aberta não tinha ainda transmitido a contento a sua mensagem cítrica. Ainda havia paredes de vidro ou de ferro entre as pessoas. Meu filho só tinha 16 meses. E a todo instante bebês teimosos continuavam a nascer.
Tudo em ordem no universo! — gritavam vigias shakesperianos nas esquinas do Village, sacudindo lanternas medievais. No momento seguinte… Duncan seria assassinado, Desdêmona sufocada. Talvez Hamlet se decidisse finalmente a executar o tio. E naturalmente naquele exato momento Henry V estava passando a noite num bom bate-papo com Deus, pedindo-lhe autorização para logo de manhãzinha cedo, for England and Saint George! invadir a ilha de Cuba.
Naquela noite, no corredor do edifício das Nações Unidas, um diplomata iugoslavo dissera, abraçando meu marido:
— C’est pour demain, Monsieur Rouanet!
Adiada a tragédia para o dia seguinte, e em francês par surplus, só nos restava ir dormir.
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É preciso ir correndo um fio de aço imantado por dentro das lembranças daquela semana — tecendo-as. O pânico, essas coisas. A gente sempre pensa: gente correndo, O grito de Münch, confusão, inferno-na-torre. Que nada. Pânico: é a Quinta Avenida vazia, numa tarde bonita de um dia de semana. É a Bloomingdale’s vazia, o grande salão e as vendedoras enfileiradas em pé atrás do balcão, últimos soldados deixados no forte, esperando a inevitável invasão dos apaches.
O pânico: é o silêncio, numa grande metrópole. Não se comenta, o pânico. Evita-se falar — é um modo de negar. Vi isso também 24 anos mais tarde em Milão — Chernobyl, 30 de abril de 1986 — a grande nuvem radioativa avançava sobre a Itália do Norte. As pessoas iam e vinham na rua, silenciosas, esvaziadas da sua italianidade.
Em Nova York, desde a terça-feira, dia 23 de outubro de 1962, a população se preparava. Os supermercados regurgitavam de gente, subitamente saqueados, como se reservas de batatas e de leite em pó fossem proteção segura contra a ameaça nuclear. O rádio anunciava: em Los Angeles em poucas horas todas as latarias haviam sumido das prateleiras.
No sinistro silêncio daqueles dias de meio de semana, carros podiam ser vistos, em todas as ruas, prontos, equipados, em frente aos prédios residenciais, carregados até o topo com tudo o que havia — de panelas e carrinhos de nenê a latas, colchões, rádios, televisão. Uma cidade fantasma, de carros preparados para a grande largada.
A principal meta eram as montanhas — quaisquer montanhas, as mais próximas, é claro. Minha grande amiga a teatróloga Ana Maria Amaral, que começava a fabricar seus famosos bonecos para o Bread and Puppet Theater e que era também funcionária da biblioteca da ONU, me telefonou:
— Eu vou embora para o Brasil. Vocês não vão? Consegui reservar uma passagem. Para esta semana não tinha mais, só consegui na quinta que vem.
Sua chatíssima chefe na ONU, em gesto generoso digno dos grandes momentos históricos, a convidara para partir com ela para a sobrevivência nas Montanhas Rochosas, onde dormiriam em sleeping-bags e caçariam patos selvagens para comer, pelo resto da vida. Ana Maria disse que preferia a morte nuclear.
Sabemos hoje que a idéia dessa corrida para as montanhas passou também pela cabeça do próprio presidente Kennedy, que em torno de si reuniu logo Jackie e as crianças, os amigos, os membros do Governo. Iriam todos para o Mount Weather. Onde em cinco minutos seriam todos alcançados pelos mísseis soviéticos.
Contou-me mais tarde um médico brasileiro que na época estagiava em Cleveland : “De repente, sem aviso algum soaram as sirenes para um exercício antiaéreo. Alto-falantes no meio da rua mandavam o povo se recolher a uns parcos abrigos improvisados. Eu pensei: não adianta, para mim, latino-americano, e para os negros de Cleveland, não vai ter lugar. Deitei-me e dormi tranqüilo”.
Outra amiga brasileira, que estava sozinha em Washington com duas crianças pequenas: um amigo americano parecia sentir-se um tanto responsável pela situação, quis distraí-la. Levou-a ao cinema, mas depois de alguns segundos não agüentou, pediu para saírem. Levou-a um bar, minutos depois disse que preferia sair, ela não se importava? Tentaram ainda o papo com outros amigos. Ao cabo de três programas interrompidos, confessou que estava nervoso demais, so sorry, ia deixá-la em casa.
De uma bolsista brasileira: “Entre os estudantes da universidade, a reação foi de silêncio. Ninguém queria a guerra. Ninguém aprovava a guerra. Sentia-se isso. Mas não comentavam nada, principalmente na presença de algum sul-americano. Mesmo sem entenderem bem o que se passava — ninguém entendia — mesmo sem aprovarem, sentia-se que o presidente falou, era preciso apoiar o presidente a todo custo. No dia seguinte ao do pronunciamento de Kennedy desceram, aparentemente tranqüilos, certos de que nas suas caixas postais encontrariam o cartão da convocação militar”.
Em Cleveland, em muitas outras cidades norte-americanas, as sirenes soavam, redespertas, lembrando guerras. Em Nova York, elas se calaram. Sinistras sirenes de Nova York que soavam pelo menos uma vez por semana, naqueles tempos, em obrigatórios exercícios de defesa contra ataques aéreos — naqueles tempos (uma semana atrás) que tanto pareciam tempos de paz. E então, naquela semana, todos os exercícios foram suspensos — se as sirenes soassem, seria para valer. Nada que pudesse alarmar a população.
O que foi responsável por um fato histórico — o dia em que um veleiro brasileiro causou pânico à população nova-iorquina. Era o Custódio de Melo, navio-escola da nossa Marinha que chegava, descompromissado e feliz, entrando pelo porto. O comandante de um forte no Brooklyn, muito absorto nos manuais de serviço para que reparasse nas contradições temporais, mandava prestar-lhe a tradicional homenagem de salvas de canhão — os jornais descreveram o pânico da população do Brooklyn.
Cada dia daquela semana acordávamos dizendo “que coisa estranha, acordei”. Continuávamos. Não haviam chegado os mísseis, ainda, ali em Cuba, apontadinhos para nossas cabeças. Acordávamos, vestidos de nossa cotidianidade, e nos achando ridículos por ter de ir ao mercado comprar a comida do cachorro, uma vassoura nova, dois maços de agrião. Transformados de repente em personagens de T. S. Eliot, Shall I part my hair behind? Do I dare to eat a peach?
O refrão terrível nos pontuando: Hurry up, it’s time!
Tempo para tudo acontecer. A brutalização das nossas pobres desamparadas fragilidades, expostas, nuas — comeremos o pêssego? Iremos ao cabeleireiro? …e a comida do cachorro, e a mamadeira do nenê…Todos nós transformados de repente em hamlets do cotidiano.
Afinal, fui ao mercado. Encontrei Sally, mulher de David, um escritor. Até a véspera haviam se mostrado progressistas, contrários ao imperialismo norte-americano, essas coisas. A conversa com Sally, naquela manhã de outubro de 1962:
Eu (aflita): — Hi Sally, how are you?
Ela (formal): Fine, thank you.
Ah, desgraçada, então estava fine, hein? Eu quis dizer que afinal não estava tão fine assim e o que ela pensava do… mas ela atalhou, seca:
— And how is Sergio?
Tentei dizer que em vista das circunstâncias Sérgio também… mas ela me gelou com um olhar tipo olhe aqui, você é uma estrangeira, ponha-se no seu lugar e não toque em política. Só me restou perguntar como ia David. É claro que David também estava fine e com muito trabalho. E ela tinha vindo comprar lamb chops — oh, David loves lamb chops so much!
Só consegui dizer:
— How interesting, we hate lamb chops!
Passada a crise, terminou para sempre nossa amizade com David e Sally.
Outro encontro, na semana seguinte, com um ator que partilhava de minhas aventuras teatrais, Karl Schenzer. Fui logo dizendo algo como que semana terrível… e ele respondendo que realmente tinha sido uma semana terrível, não havia nada digno de ser visto nos teatros.
Com Karl não era uma questão de gostar de lamb chops. Só alienação — seria? O limão pop eclodindo no laboratório do Village. Mas um ano mais tarde, em 22 de novembro de 1963, o assassinato de Kennedy me faria ver a ruptura da alienação — no Open Theatre de Joe Chaikin, um grupo que freqüentei desde a sua fundação, todo mundo deprimido, chorando, atordoado, e aquela indagação: Afinal, que povo somos nós? Aonde vamos parar? Pela primeira vez, naqueles anos todos, ouvi a menção ao grande crime histórico — Hiroshima e Nagasaki, a culpa aflorando por detrás de todo o entulho daquela civilização.
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Talvez fosse melhor aceitar o convite da simpática Miss Martha Something — a mais simpática das girls que freqüentam as matinês das quartas-feiras na Broadway. Encontrou-me no hall do teatro. Fazia parte do um Hospitality Commitee — composto de amabilíssimas e abastadas senhoras que tinham por tarefa mostrar às senhoras dos diplomatas estrangeiros como a sociedade americana é maravilhosa, como todos são iguais, como a prosperidade e a felicidade reinavam naquela era dos Kennedy — convidando-nos para chás, passeios no campo, teatros.
A peça era Seidman and Son, com Sam Levine. Miss Martha me pediu mil desculpas, não havia conseguido dois lugares juntos. Agradeci e fui sozinha para o balcão nobre. Levantada a cortina, entrava Sam Levine e as girls aplaudiam. Mr. Levine-Seidman, com sua barriga próspera, seu coração de ouro, seu florescente negócio de confecções na Sétima Avenida. Enredo dos mais originais: esse pai exemplar, esse esteio da sociedade, tinha um filho hippie, cabeludo, poeta e tocador de guitarra. Ah, mas o filho era tudo isso só porque tinha o dinheiro todo do pai para sustentá-lo, não era?
Mr. Levine alçava a voz no fim da fala, esticava um olho cúmplice para a platéia — a piada era considerada hilariante, muito aplaudida pelas girls. O enredo prosseguia, com a redução progressiva do filho transviado à bonomia manufatureira do pai. Em mim, cresciam espinhos e cardos — naquela hora, exatamente, os navios russos navegavam em direção à frota americana no Caribe, meu deus o confronto, o que aconteceria dali a pouco?… Nada, é claro, só o intervalo do primeiro ato. O destino do mundo decidindo-se naquele exato minuto em que Mr.Levine-Seidman com sua possante voz baritonada, sua pronúncia judia do Bronx, verberava a nova geração, indagava qual o motivo afinal para tanta rebeldia, what’s the matter with them? — as girls aplaudiam, as doces senhoras de olhos azuis que cultivam tulipas e crêem como artigo de fé no estoque nuclear norte-americano.
What’s the matter? — indignava-se Mr.Seidman, por que seu filho não podia assentar a cabeça e encarregar-se da contabilidade da firma?
Fiz uma opção pelo fim do mundo. Levantei-me de repente, um tanto ruidosamente, derrubando minha bolsa, procurando enfiar o casaco, para espanto geral do balcão nobre. Meus saltos castigavam agudamente o assoalho de madeira da passagem lateral. Saí para a Broadway sinistramente tranqüila. Dali a horas talvez o mundo engrenasse novamente sua marcha, a multidão teria voltado às ruas — que multidão? A das senhoras de chapéu florido? De seidmans-levines?
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Pânico mesmo, só tive na sexta-feira. Por um motivo específico: o noticiário das 11 da manhã na TV fora suspenso. Assim sem mais, sem aviso algum. Naquele mundo superorganizado, de repente cadê o jornal das 11? Não tem. Pronto, é para agora, que faço, corro para a janela ou para a rua, filho e manuscritos debaixo do braço? Corri para o telefone, ainda funcionava, que sorte, nem tudo está perdido enquanto os telefones funcionarem, atendeu-me a voz polida: Varig. Que sorte, ainda existia a Varig do outro lado da linha. Traiçoeira voz: não, lamentamos, não há mais passagem para o Brasil, lugar algum, nas próximas três semanas.
Mas os embaixadores brasileiros na ONU e em Washington haviam sido consultados pelo Governo e aviões da FAB estariam prontos a levantar vôo para ir buscar as famílias dos diplomatas. O embaixador Afonso Arinos, chefe da missão junto à ONU, chegou a dizer que os próprios diplomatas e funcionários poderiam também voltar para o Brasil. Só ele ficaria para ver o navio afundar, preso à sua ponte de comando, o único túmulo digno de um almirante batavo.
Liguei para Ana Maria Amaral:
— Olha, você me disse que ia para o Brasil na quinta-feira, quero te pedir, leva o meu filho, tá? Porque eu não consegui mais passagem.
Um bebê de 16 meses talvez pudesse ser considerado bagagem de mão, não é ? (isso, se houvesse uma quinta-feira seguinte). E lembrei-me da mãe ONU. Que ela me protegesse. Corri para procurar Sergio, naquele tempo trabalhando num dos subcomitês que discutem a fome no mundo. Pelo menos, morreríamos abraçados na fogueira final, como no final da Aida, com grande coro e orquestra. Por aqueles corredores, salas vazias, portas, elevadores — onde, onde? Eu perdida, uma Eurídice à procura do seu Orfeu, no inferno. Portas que abriam, ou se fechavam, parecia um grande hotel muito distinto, acolchoado, aqui decidem o destino do mundo? De repente uma sala esvaziou-se, uma delegação inteira se retirava — de onde? Para onde? Ou seria apenas uma pragmática coffee-break? Encontrei-me no meio, justamente, da Delegação de Cuba — reconheci, da TV, o embaixador (Dorticós, se chamava?) que fizera na véspera um discurso historicamente inflamado e me encostei, fininha, na parede, para deixá-los passar. Decerto era tudo um pesadelo.
Anos mais tarde, numa conversa com Nahum Sirotski, que naquele tempo morava também em Nova York como correspondente do Correio da Manhã, lembrávamos a terrível semana e ele me descreveu aquela tarde, quando todos os jornalistas credenciados na ONU sofriam, enquanto detrás de uma determinada porta representantes dos Estados Unidos e da URSS estavam tendo uma conversinha. A hora marcada para seu término havia passado há muito, a porta não se abria, o suor escorria de muitos rostos.
Momento que deve ter coincido com aquele em que eu, no meu pesadelo de estar perdida pelos corredores da ONU, de tanto sobe e desce e toma caminho errado, saí de repente para um subsolo e fiquei ali atordoada, no meio de cadeiras quebradas e mesas desmontadas. Eu no porão da ONU, no dia do fim do mundo.
Afinal, Eurídice sem Orfeu, Eurídice de missão fracassada, consegui sair do labirinto e voltar para as ruas.
O absoluto desamparo: o que adianta a mãe ONU que não nos protege? Marido que não se encontra no Dia do Juízo Final?
Naquela noite, em conversa telefônica com Marcos Azambuja, nosso colega diplomata, confessei: “Olha, ainda que mal falando, eu estou mesmo é com muito medo”. Marcos é uma das pessoas mais engraçadas que conheci. Me disse: “Você não pensou no lado positivo da coisa. As mulheres e os filhos dos diplomatas podem ser enviados para o navio, o Custódio de Melo, que anda por aí… Em caso de perigo, ele zarparia para alto-mar. Já pensou… enquanto os maridos ficam aqui virando pó de mico, o mulherio vai estar se divertindo a valer com os oficiais… Que tal?”
Do sábado, só me lembro que fomos, eu e o Orfeu-Sérgio já recuperado, ao cinema. No meio da sessão, na platéia absolutamente silenciosa, alguém deu uma risadinha. E de repente todo mundo reparou — era uma comédia, Divórcio à italiana.
No domingo, Deus deixou de fazer guerra e descansou, que ninguém é de ferro. Seu Kennedy e seu Nikita trocaram de bem, Jackie Kennedy, deslumbrante em um tailleur cinza de Yves Saint-Laurent, foi à missa das onze na St. Mattew’s Cathedral. Madame Kruschev que não era dessas coisas talvez tenha, como boa campônia, colhido uma rosa e enfeitado com ele seu xale.
Aí, quando tudo passa, fica-se pensando se vai ainda continuar por muito tempo o acordo que nos permite viver… Mas o que se vai fazer, somos apenas o comum dos mortais, somos descendentes de todos os anônimos buchas-de-canhão de todas as guerras desde que o mundo é mundo, morremos no Peloponeso, estupraram-nos na invasão de Roma, empalaram-nos na Guerra dos Cem Anos, estraçalharam-nos na Primeira, na Segunda Guerra Mundial, na Coréia, no Vietnã, no Irã, no Golfo, no Iraque, nos estraçalham todos os dias, mas estamos aqui para isso mesmo; sirvam-se, senhores governantes, estamos aqui para ter medo e morrer. Os reis depois fazem festa e, tratados, casam a filha mais linda com o Príncipe das Astúrias, e quando a coisa aperta gritam meu reino por um cavalo que não sou tonto! E tem mesmo — para eles — o cavalo pronto e ligeiro. Para nós, ó! Toma seu burro, lança e golpe de espada, gasolina nas vestes, ha! ha!, fogueira, granada e gás, radiação, e tomem uma bomba, mais uma, temos de tudo em nosso estoque, aproveitem porque é oferta do dia e estamos dando de brinde uma baleia de plástico para as crianças.
Lembrei-me então de uma menina debruçada sobre o Estado de S. Paulo em um dos primeiros dias de agosto de 1945 — Hiroshima e Nagasaki haviam sido arrasadas pelas bombas atômicas americanas. Nas pessoas grandes parecia não haver horror. Apenas a aceitação normal de mais um ato de guerra. A professora de História entrara na classe com um ar triunfante, naquela manhã — vencemos a guerra! Sim, nossos aliados e amigos norte-americanos tinham vencido a guerra e uns meros milhares — centenas de milhares — de japoneses de cara feia e comedores de criancinhas tinham virado poeira.
Um desconforto persistia, na menina — no mês anterior, em um concurso colegial sobre o Independence Day a sua composição havia sido escolhida entre as de todos os colégios concorrentes de São Paulo. E ela recebera das mãos do cônsul dos Estados Unidos um belo livro ilustrado, como prêmio. E então, naquela noite de agosto de 1945 havia em São Paulo uma menina que não podia dormir, que dava voltas na cama, atormentada, porque pensava que no dia seguinte teria de ir ao Consulado americano para devolver ao cônsul aquele livro tão lindo, que contava a vida grandiosa de um general chamado George Washington, o qual — diziam — nunca contara uma só mentira, em toda a sua vida.