Os “quedes” eram da Tchi, minha irmã mais velha. E estavam lá abandonados numa poeira fina, atrás da porta da casa de banho. No dia seguinte havia comício no Largo 1.º de Maio. A concentração era na minha escola “Aplicação e Ensaios”, às sete da manhã. A minha mãe mandou-me ir preparar a farda.
Camisa azul clarinha, calção azul escuro. Tudo limpinho e engomado. E cheirava àquela naftalina boa que trazia outros cheiros de antigamente. É um bocadinho assustador, mas mesmo quando somos crianças o antigamente já fica lá longe.
Fui à casa de banho, atrás da porta, aí onde ficavam pendurados os sapatos que já ninguém ligava. E então vi os “quedes” vermelhos da Tchi, que ela nunca gostou muito, só tinha usado durante uns tempos e depois ficaram ali a ganhar poeira. Limpei devagarinho a parte da frente e até um bocadinho das solas, com um pano do pó que sempre ficava ali na casa de banho. Experimentei os “quedes”, confirmei o que já sabia: não me serviam bem, aleijavam-me no dedo grande e no mindinho também. Mas só o póster, ché!, até num vale a pena.
Ainda desci, pra dizer à minha mãe que tava tudo preparado.
— Meias também? — ela perguntou.
— Meias vejo já amanhã de manhã.
— E sapatos?
— Já está — mas não disse quais eram.
— Então vai ver se o teu cantil tá limpo.
Fui até à cozinha, encontrei o meu cantil antigo na despensa. Tinham dado aqueles cantis soviétivos na segunda classe, acho eu, e como eram feitos lá para aqueles frios da União Soviética, eram uns cantis que em vez de manterem a água gelada, lhe aqueciam masé bué. Então nós já tínhamos desenvolvido uma técnica: enchia-se o cantil de água ou sumo, e deixávamos o cantil dormir na arca, por uma noite. De manhã, ia mesmo assim, congeladito, a derreter à medida que a manhã avançava, sempre com o líquido puramente gelado. Era um cantil verde escuro, que não dava pra confundir, era soviético mesmo, duro, resistente, que durava anos. Fazia lembrar as “akás”, que eu vi num documentário na televisão, disseram que se pode enterrar uma “aká” por 40 anos e desenterrar que ela ainda vai funcionar. E o Cláudio disse que o primo dele, que é comando, já confirmou que isso é mesmo verdade.
O meu pai acordou-me cedo, mais cedo do que tínhamos combinado. Matabichámos juntos, nesse momento que eu adoro: o meu pai abre as portas grandes da janela da sala, e vemos o abacateiro. Dia 1.º de Maio, dia internacional do trabalhador. Quase não havia barulho na minha rua, só alguns gatos, os guardas da casa do Jika iam-se deitar, pousavam as “akás” no chão, lavavam-se ali numa torneira no jardim de trás. E eu e o meu pai matabichavamos com todos os cheiros da manhã. E o abacateiro, claro, espreguiçava-se para acordar também.
Vesti-me, fui lá acima, calcei os “quedes” vermelhos da Tchi. A minha mãe não tinha ainda acordado, então aproveitei e calcei mesmo assim sem meias, para não apertar tanto. Mesmo assim doía.
— É o quê? — o meu pai perguntou, quando entrei de novo na cozinha para tirar o cantil da arca.
— Nada, tou pronto — disse, contente.
Os meus primos não gostavam muito de ir ao comício do dia internacional do trabalhador. Nem era obrigatório, a camarada professora disse que só ia quem quisesse, mas eu adorava os comícios naquela altura. Nem sei explicar bem porquê. Era tudo especial, acordarmos cedo, fazermos formação, cantarmos o hino, e irmos juntos, mais ou menos organizados, até ao Largo 1.º de Maio, sim, o Largo chamava-se mesmo 1.º de Maio.
Cheguei à escola bem cedo. Os pés doíam-me, magoavam-me em vários pontos, até já me doía a parte do calcanhar também. Mas eu tava bem estiloso, e aguentava. Sentia um fresquinho nas costas, era o cantil completamente congelado. Bons cantis, esses soviéticos, desde que se conhecesse essa técnica de congelar no dia anterior. E fomos.
Lá, no Largo 1.º de Maio, tava uma tanta gente acumulada, bué, mas buelelé de escolas já em formação, numa curva, todos direitinhos, à espera da vez de marchar. E lá na tribuna, bem lá em cima, estava o camarada presidente, duma camisa azul clara e um lenço branco a fazer adeus aos pioneiros que passavam. Chegou a nossa vez. Um camarada também aí num microfone tipo escondido, aquecia a multidão: “Pioneiros de Agostinho Neto, na construção do Socialismo…”, e nós gritávamos, suados, contentes, meio a rir meio a berrar, “Tudo pelo Povo!”, e ele continuava, “Um só Povo, uma só…?”, e nós de novo, “Nação!”, e passámos mesmo em frente ao camarada presidente, e ainda vi a Paula Simons e o Ladislau, namorado da minha prima Fatinha, a falarem num microfone que eles punham assim no ombro tipo carteira das meninas, tavam a gravar uma reportagem, eu sei, uma vez eu já tinha ido à Rádio Nacional e tinham me explicado aquilo tudo.
Quando acabou o comício, ainda nos deram um sumo bué malaico com bolachas, mas as bolachas eram muito boas, e eu não sei pra quê que levei cantil se sempre me esquecia de beber a tal água congelada no dia anterior. Depois “desmobilizamos”, como a camarada professora dizia. Fui pra casa. Cheguei cansado, mas foi bom, tinha me divertido, e no caminho para casa ainda houve tempo para ouvir e aprender umas estigas novas com uns miúdos que também voltaram para o meu bairro.
Quando cheguei ao portão, a minha mãe tava lá.
— Correu tudo bem?
— Sim, foi bem fixe, vi a Paula Simons e o Lau, com os microfones da Rádio…
— E o camarada Presidente?
— Sim, também tava lá.
— Foste com esses quedes vermelhos, filho?
— Sim, mãe.
Pensei, não sei porquê, que ela fosse me ralhar, os “quedes” eram da minha irmã Tchissola. Mas não; ela riu, e disse para eu ir mudar a roupa que eu tava todo suado.
Tirei os “quedes” vermelhos, e tinha os dedos grandes, os mindinhos e os calcanhares todos irritados. E cheirava muito a chulé. Eram, para dizer a verdade, uns “quedes” que não davam jeito nenhum.
Mas também acontece isso na vida de uma pessoa, pensei, gostarmos de uma coisa, e não saber porquê. E eu não sabia. Mesmo os comícios, também não sabia porquê que eu gostava tanto de ir aos comícios. Mas ia. Farda azul, ténis vermelhos, e o cantil soviético na mochila. Antigamente, eu ia.