Os planos

Trecho de romance de Carlos Marcelo
Ilustração: Denny Chang
01/05/2021

Os LPs de Tide não cabiam mais na estante da sala. Ficavam escorados no sofá ou empilhados no corredor. Em uma das vezes que esteve no apartamento, Rangel observou que a discoteca do amigo valia um carro zero. Tide ficou surpreso, jamais cogitou comprar um automóvel. Tinha pânico de direção. As mãos suavam e os dedos se encrespavam ao volante. Fracassou na prova para tirar a carteira, deixou o motor morrer logo na partida. Desistiu de tentar novamente.

Ele tentava aprender a conviver com suas limitações, que a ex-mulher dizia ser falta de ambição. “Fracassado”, foi o que Mônica disse a Tide na última discussão que tiveram, pouco antes de ela avisar que iria para Nova York em busca da vida que merecia. Ele não se abalou tanto como imaginava. Sabia que não poderia realizar os sonhos da esposa de ter dois filhos, uma casa com piscina e churrasqueira, duas vagas na garagem, muitas fotos dos quatro encasacados no réveillon da Times Square. Tide acostumou-se a viver sem carros e crianças. Mas jamais ficaria sem as sensações descritas em O livro das ilusões, sempre na sua cabeceira.

“A música cria uma inteira gama de êxtases interiores. Desperta-nos primeiro o pesar de não ser o que teríamos de ser. Depois basta um instante e sua magia nos cativa, transportando-nos para o nosso mundo ideal, para o mundo onde deveríamos viver.”

Foram as palavras de Emil Cioran que socorreram Tide depois de ser abandonado pela mulher.

“Só o sofrimento muda o homem. É incrível o que a dor pode transformar. Mudança de perspectiva, de compreensão e de percepção.”

Por meio de Cioran, Tide também entendeu por que passava tanto tempo dedilhando o violão ou revirando LPs.

“Só amam a música aqueles que sofrem por causa da vida. A paixão musical substitui todas as formas de vida que não foram vividas.”

A “paixão musical” descrita pelo filósofo romeno fazia Tide ir além do que se esperava de seu trabalho. Escolhia canções que imaginava constar da memória afetiva dos ouvintes. Se um deles conseguisse reviver acontecimentos marcantes a partir de uma música que escutou por acaso, o programador consideraria cumprida a sua missão: a de alterar a percepção do tempo. Era o que ocorria com ele quando tirava o domingo para escutar os discos preferidos. Sabia onde e quando os havia comprado, se estava sozinho ou acompanhado, o frio na barriga ao retirar o vinil da capa e colocá-lo sob a agulha, os olhos fechados para se concentrar no que realmente interessava, o som a reavivar lembranças e despertar sensações fortes o suficientes para espantar a solidão.

De forma inconsciente, Tide dava um jeito de não ficar sozinho a maior parte do dia. Batia ponto de segunda a sábado no self service vizinho à oficina. Descia para almoçar logo que o cheiro de comida se infiltrava entre os odores de graxa e óleo. Depois de vencer a dificuldade para escolher as folhagens menos desmaiadas do bufê, ocupava uma das mesas distantes da algazarra feliz dos mecânicos esfomeados.

Certo dia, na hora da pesagem, a moça da balança comentou que Tide sempre almoçava sozinho. “Preciso dizer uma coisa. Quem está com Jesus nunca está só”, disse a moça, bolsa no colo, as alças do sutiã marcadas na blusa branca.

“Tome. É a palavra do Senhor.”

Ela entregou a Bíblia que ficava ao lado do caixa. Ele agradeceu o gesto da moça, mas garantiu que nunca andava sozinho. “Aqui mesmo tem um monte de gente comigo”, respondeu Tide, abrindo a bolsa de couro cheia de LPs que havia selecionado para digitalizar e incorporar as músicas ao acervo da rádio.

A moça pegou a Bíblia de volta.

Depois do almoço, Tide seguia a pé até o ponto de ônibus na W3. Ficava especialmente atento ao sobrevoo dos pombos prontos a atacar restos de comida em marmitas jogadas em contêineres imundos. Deparava-se no trajeto com uma sucessão de construções desordenadas. Escolas recém-reformadas a ostentar na fachada os trinta anos de existência como sinônimo de tradição, oficinas com faixas a gritar descontos para trocas de pneus e outros serviços automotivos, paredes de videokês marcadas com pichações indecifráveis, letreiros desbotados a oferecer bênçãos e cursos de dança, grades ariscas fixadas na tentativa inútil de proteger famílias amedrontadas em casas geminadas de muros baixos e jardins entregues à grama e ao lixo, quitinetes destinadas ao sexo e ao sono de putas e michês e outros trabalhadores autônomos, todos amontoados em um lugar que somente aparecia na tevê em dia de volta às aulas, de eleições e de rebelião de menores infratores na unidade prisional próxima aos prédios, casas e lojas, o pedaço da cidade que escapou do controle de seus criadores.

Tide havia se acostumado com a desordem daquele canto da Asa Norte. Poderia ficar ali para sempre, escutando os seus discos enquanto removia o mofo do teto e a poeira nas folhas eriçadas do vaso de yuka. E foi assim que ele viveu até o dia em que a fivela de uma sandália o levou a conhecer Janine.

Ele havia terminado sua refeição e, na hora de pagar a conta, deixou a comanda cair. Abaixou-se e deu de cara com pés femininos confinados em um par de sandálias alaranjadas. Uma das fivelas estava prestes a se soltar, Tide observou. Ele avisou à dona das sandálias, que sorriu ao agradecer o aviso.

Foi o primeiro contato.

Tide voltaria a encontrar a moça alguns dias depois, desta vez na agência bancária onde ele acabara de fazer o depósito mensal para o pai. De jeans e camiseta vermelha, Janine discutia com um vigilante por causa da porta giratória que teimava em acionar um alarme e travar quando ela tentava entrar. Tide assoviou para Janine e apontou para os pés dela.

De novo, a fivela.

Janine tirou a sandália, arrancou o ornamento e o entregou para o segurança. Descalça, entrou na agência.

Com um sorriso largo, agradeceu a Tide e perguntou se ele estava de saída. Se não estivesse, poderiam dividir uma tigela de açaí num quiosque ali perto. Desnorteado com o convite, ele mentiu duas vezes. Disse que gostava de açaí e que acabara de chegar. “Então por que você está com esses papéis?”, perguntou Janine, sorrindo novamente e apontando para os comprovantes de transferência bancária nas mãos dele.

No instante em que Janine desmontou a sua mentira, Tide desistiu de tentar enganá-la novamente. Não conseguiria; ela parecia ser esperta, muito mais esperta que ele. Também porque, depois do terceiro sorriso, veio um encanto súbito e avassalador. Ocupou o peito, a cabeça, os nervos, o corpo inteiro de Tide. Sem saber, assim como sem entender o porquê, ele vislumbrou os dias e as noites com Janine. Dividiria tudo com ela; as alegrias, as refeições, os segredos, as contas, os lençóis, os pesadelos, o futuro, as aflições. Sem saber, Janine fez Tide admitir o que tentava diariamente dissimular com discos, livros, beques, sonhos; era impossível ser feliz sozinho. Ele não queria nada com Janine que não fosse de verdade. Por isso, no breve período em que ficaram juntos, mas que, ao menos para ele, foi um tempo imenso, o melhor dos tempos, Tide jamais mentiu.

Foi sincero do início ao fim.

Carlos Marcelo

Nasceu em João Pessoa (PB), em 1970. É jornalista e escritor. Autor de Nicolas Behr: eu engoli brasília (2002), Renato Russo: o filho da revolução (2009), O fole roncou: uma história do forró (2012) e Presos no paraíso (2017), lançado na França pela Gallimard em 2019. O segundo romance, Os planos, será lançado pela Letramento em junho.

Rascunho