1.
Nas manhãs de sábado, no final da minha infância, às vezes íamos visitar Laszlo no Poço da Panela, um dos velhos bairros à beira do Capibaribe. Passada uma parreira espalhada por cima da garagem, ele tinha montado uma oficina com torno de cano e tanque de oxidação. Quando a Alemanha arregimentou a Hungria, os soldados de Hitler devem ter percebido sua mão para as máquinas; mantiveram Laszlo junto aos blindados, preso, porém sempre a postos, e como mecânico de tanques durou até 1945 — para então tomar a famosa rota do Brasil.
Laszlo subia a manga da camiseta de meia e punha o dedo numa covinha aberta por um fuzil alemão: nem sequer tinha ouvido o tiro; a ponta de 7mm deixou uma ferida limpa. Fosse um besouro de caubói, dizia ele, lento e bruto — como os calibres que os americanos levaram para a guerra —, Laszlo não teria escapado, pois as Thompson 45, famosas desde Al Capone, eram espalhafatosas e só matavam de perto. Laszlo sentia falta de que lhe prestassem atenção à língua. Dizia que, num Nordeste maior que sua Hungria, só se escutava a língua naquela casa próxima ao rio. Certa vez, comentou que nas repartições públicas os brasileiros ficavam loucos quando precisavam escrever seu nome com as três consoantes de Laszlo sempre juntas. Quando ouvi a história repetida, falei que em português tínhamos o tritongo, com três vogais também sempre juntas. O armeiro pensou um pouco e disse que podia ser, mas mesmo assim os brasileiros ficavam loucos quando precisavam escrever seu nome, e, desta para outra, ia adiante nas histórias de sempre, quase todas sobre a grosseria americana; circunstâncias de guerra relatadas com maravilha, mostrando seu encanto com a técnica alemã, que lhe mastigou um ombro. O amor da vítima é sempre um sentimento insólito e mais difícil de se aceitar.
2.
Quanto a meu pai, só depois fui perceber que não havia mistério em seu interesse no despeito do armeiro pela engenharia militar ianque. Sua mãe, a minha avó paterna, faleceu em 1942. No ano seguinte, no mesmo ano em que Laszlo remendava tanques alemães, meu avô pediu uma licença de viagem a Getúlio Vargas — com quem a família mantinha uma relação cheia de cautela — e partiu para Nova Orleans, na Louisiana. Entre 1928 e 1930 ele já havia estado em Baton Rouge, no mesmo estado do Sul americano onde concluiu o diploma em química de açúcar. Meu avô esperava tomar distância da morte da esposa e buscar, nisso, uma nova técnica de aproveitamento do bagaço como matéria-prima para derivados de celulose. Nas suas memórias, o jovem químico descreve a primavera de 1943 da seguinte maneira:
Durante minha estada em Nova Orleans, em função da missão de estudo acima referida, fiz amizade com o cônsul-geral do Brasil, sr. Guimarães Gomes, gaúcho de boa aparência e trato agradável, e também com o adido ao consulado, sr. Otávio Bandeira, parente afastado dos Bandeira de Pernambuco. Certa ocasião, por sugestão do cônsul e em companhia de Otávio, compareci a uma festa da Cruz Vermelha, comum naquela época a fim de angariar brindes para os combatentes. A festa não estava me despertando grande interesse, até que, num intervalo das danças, vi atravessar no salão uma jovem que me chamou a atenção: estatura mediana, andar desembaraçado e gracioso, elegantemente vestida num tailleur cinturado, com chapéu pequeno e sem abas, cabelos a pajem, rosto oval de tipo latino, enfim, uma jovem atraente à primeira vista. Coisas do destino, não interessa saber como, o fato é que, dentro em pouco, estávamos no mesmo grupo, do qual fazia parte minha beldade, e em conversa bastante animada! Chamou-me a atenção que a jovem fosse bilíngüe, sem sotaque em nenhuma das línguas: inglês ou espanhol. Marisa Avilés, assim se chamava, era funcionária federal do Serviço de Censura Postal, filha de nicaragüenses, porém nascida em Nova Orleans.
No ano seguinte, em abril de 1944, meu avô casou-se com Marisa, a única avó que cheguei a conhecer. Antes mesmo do final da guerra, ela se mudou para o Recife e lá permaneceu pelo resto da vida.
Bem antes de Laszlo, Marisa foi a primeira imigrante com quem convivi, muito embora só tenha me dado conta disto quando vim para os Estados Unidos. Então passei a vê-la não apenas como avó, mas também como alguém entre duas culturas. Sua língua era polida e grave, com um sotaque que lhe marcava as frases curtas, quase sempre no imperativo. Tinha um cheiro bom, de frasqueira perfumada; usava cores vibrantes e brincos de pressão, enormes, faiscantes como besouros de vidro. Meu pai achava Marisa fria, às vezes agressiva, americana demais, ele dizia.
Órfão aos cinco anos de idade e, desde cedo, dissipador, decidiram que sua disciplina viria com uns anos de América. No começo da década de 1950, meu pai foi posto em regime semi-interno na academia militar de Nova York. Ali chegou a Cabo da Guarda e, feliz com a patente, na comemoração liberou bebida no alojamento, quando então foi preso, rebaixado a recruta e convidado a se formar antes dos colegas. A partir daí, foram cinco anos de Estados Unidos e seis de Europa, vagando em busca do começo de uma profissão. Quando finalmente regressou ao Brasil, voltou com quatro línguas provisórias e uma coleção de casos que repetiu pelos próximos quarenta anos. No total, passou onze anos fora. Num diário escrito na Suíça, meu pai dá a seguinte impressão de minha avó americana:
Rosa Maria Avilés, Marisa. Minha madrasta deve ter os seus quarenta anos. Nunca nos demos muito bem, contudo ela procura sempre ser amável comigo e com a minha irmã; irmã do primeiro matrimônio. Acho Marisa uma pessoa ríspida, e isto talvez seja dado a sua doença, pois ela já esteve de volta aos Estados Unidos para tratamento dos nervos. Durante o tempo em que morei com ela e papai, eu nada gostei. O mesmo para a minha irmã. Creio, inclusive, que foi por isto que minha irmã se casou, para sair da casa da nossa madrasta. Kreuzlingen, 9 de março de 1960.
Agora sei que as risadas que ele dava diante de Laszlo, quando o armeiro desancava o aspecto rude da soldadesca americana — briosa das suas carabinas de alavanca e de pistoleiros rabugentos, disparando à solta —, eram gargalhadas contra a madrasta e aqueles anos de internato. Meu pai nunca percebeu que tanto a falta que Laszlo sentia da língua como a severidade de Marisa estavam mais ligadas do que a princípio se poderia supor.
O húngaro e a americana tiveram a coragem de tentar o Brasil. Ora, nenhum imigrante pode ser transparente: a diferença lhe salta à pele; somos vítimas de um cacoete de espelho, comparando sempre a imagem de lá com a de cá. Por isso não se exija do imigrante pureza nem nitidez. Isso é luxo de quem nunca saiu de casa, de quem pode contar com sua cultura, com o império de uma única língua e os laços que nos amparam nas escaladas e nos tropeços. Mas quem vive entre esse lá e cá é lembrado de como os outros falam ou escrevem seu nome, tal qual o velho Laszlo gostava de insistir. Esses não podem evitar o pé-atrás e duvidar da pachorra dos da terra, como minha avó Marisa duvidava da manha de meu pai. E aqui está a verdadeira indústria desses estrangeiros que tiveram coragem de enveredar pelo abrasileiramento; um que nunca será total, porque é claro que o abrasileiramento total, como a americanização total, é uma fantasia para se tapear os patriotas e gente de coração mais simples.
3.
Num mês de agosto, de férias, voltei à rua de Laszlo e procurei pela casa dele. A parreira não estava mais lá; o velho tinha morrido há tempos, ninguém se lembrava exatamente quando. A casa agora é um anexo da Fundação Joaquim Nabuco.
Saí dali querendo saber um pouco mais sobre a minha avó. Tentando adivinhar o que teria arrancado o velho Laszlo da sua vida brasileira, lembrei-me dela, que passou os últimos anos como voluntária no Hospital do Câncer. Lá fez novas amizades, ficou querida e acabou falecendo no mesmo lugar, da mesma moléstia que aqueles a quem tinha feito companhia. No final da vida, creio que ela e o meu pai — a imigrante e o retornado, os dois com as línguas misturadas pelo tempo fora — fizeram as pazes. Quero acreditar nisto, muito embora não tenha lembrança de nenhuma reaproximação cabal, nem de conversa ou carta que servisse como ajuste de contas entre os dois. Mas nesse silêncio, na ausência das farpas — porque ela também o desmerecia muito — posso imaginar uma ponta de respeito se alargando mais e mais. Daí, com a doença de ambos, já numa velhice compartilhada, não é difícil enxergar os ânimos abrandados, as bandeiras de antes perdendo suas cores, a fim de que um modo mais imigrante e solidário abrisse os braços, juntando esses dois que se queriam tão contrários um do outro. E um exemplo disso já corria, há muito, na rotina da família.
O livro de cozinha de Marisa, afinal, ficou para minha mãe; agora é meu. Fazia tempo que suas receitas tinham entrado no gosto da casa. Lembro que meus colegas, no intervalo de um recreio distante, comentavam que a broa lá de casa era diferente. Ou então me perguntavam: que bolo de chocolate queimado é esse? Não sabiam que aquele era o modo de minha mãe preparar corn bread e devil’s food cake, misturando receitas locais com aquelas tiradas de um livro chegado pelas mãos da latina de Nova Orleans. Só mesmo um imigrante sabe a imensa graça que há nisso. Agora, no repasso dessas minúcias, me ocorre pensar que sou um pouco dessa broa americanizada, ou uma fatia do devil’s food cake abrasileirado e, também, uma espécie de Laszlo, tentando espalhar minha língua em outro país; corrigindo, de vez em quando, a pronúncia do meu nome — aqui sempre dito à espanhola, rosé —, chamando atenção aos traços mais urgentes de nossa cultura tão desigual, tal como para o húngaro era urgente aquela ponta de fuzil que, na sua guerra, lhe sulcou o músculo de um dos ombros.
Quando a família perdeu a mão para o açúcar, foi a venda das tortas de minha mãe que me pagou o colégio e as aulas de inglês com dona Crueza von Söhsten, esposa do falecido Professor Elijah; ele próprio, um imigrante americano de origem holandesa. E a famosa torta de nozes, que foi à mesa das famílias no Recife — torta que eu próprio vendi e acabou no cardápio de alguns bufês e restaurantes —, essa torta, já então às vezes dita “tradicional”, não passava de uma reencarnação do German layered cake e da pecan pie, que minha mãe tirou do livro da minha avó americana. Só um imigrante pode rir disto com justiça de causa, pois sabe que o começo de qualquer tradição é um pouco de fantasia com circunstância e auto-engano. Então Catende e Recife ainda são minha casa. São Paulo, Berkeley e Los Angeles ficaram sendo minha casa. Nova Orleans também foi uma espécie de quintal de casa, aquele lá-dos-fundos de onde sempre nos chega uma nesga de bom mistério. E, no entanto, a maior verdade ainda está numa dose de outra coisa que também nos faz a casa. Onde meus filhos forem aprender nossa língua, aí também será nossa casa. Onde as pessoas se lembrarem de Laszlo, e do nome dele enlouquecendo os brasileiros, ali é sua casa e um pedaço da velha Hungria.
A língua do imigrante é capaz dessas transformações. Qualquer um traz consigo essa potência, mas só o imigrante pode dizer isso de peito aberto, pois na sua sem-cerimônia ele usa, com todo cuidado, aquilo que não era dele; aquilo que ninguém jamais lhe deu de mão beijada.
Muito obrigado.
4.
Mal acabei de ler o texto acima, as pessoas sentadas no auditório começaram a me aplaudir. Voltei para a mesa com os outros participantes. Durante o intervalo, alguns vieram me dizer que tinham se reconhecido nesse pedaço de memória sobre o velho Laszlo, e nas minhas recordações de Marisa e do meu pai. Uma mulher de vestido estampado falou que vocês, os nordestinos, eram engraçados; que a mãe dela era da Paraíba e também gostava de contar anedotas de gente de antes, e ela achava isso ótimo, porque a mescla de família com humor era importante. Agradeci o elogio e disse que aqui na América se diz a mesma coisa, porém de judeus e mexicanos; que eles sempre levam juntos ironia com parentela. A mulher do vestido estampado se afastou, andando de costas, sem dizer mais nada. Alguém, em seguida, me perguntou se eu estava ciente de que a Rede Globo tinha uma telenovela chamada América, mostrando a imigração brasileira para Miami. Falei que sim, que o tema tinha apelo, mas, por outro lado, nunca vi uma imigrante do rosto de cera, fixada no espelho com os lábios estufados, sacudindo no ar um punho cerrado, jurando: eu vou vencer, eu vou vencer! A pessoa que me fez a pergunta riu com as gengivas, e eu também sorri.
A verdade é que não me chateei com os comentários que passavam longe. Dei ao meu texto o tom da lágrima; usei as repetições que, por amor ao eco, o ouvido aceita, especialmente se esse rumor vem lá de trás, trazendo de volta um traço dos mortos ou um pouco daquilo que nos lembra quem vai longe.
Tentei me livrar das perguntas e saí para o saguão, em frente ao auditório. Apanhei um copo de café, abri a porta envidraçada e pus a cara no dia. Do lado de fora da capela havia um estacionamento, com jardineiras em ziguezague. Andei por ali, acompanhando a pista lateral ao redor do prédio, subindo a colina até um bosque de eucaliptos, com bancos de praça e vista para a ponte Golden Gate. O vermelho da ponte, apanhado a pleno sol das três, ia lindamente aceso. Tal como em Los Angeles, também ali em San Francisco as calçadas universitárias são limpas, bem varridas, e creio que uma mistura de moral de escoteiros com o gosto nacional pela higiene pública dá a esses lugares um ar de brinquedo de bonecas: as árvores plantadas a passo de régua, crescendo a quinze metros umas das outras. Olhava essa minúcia e a paisagem da baía, quando de repente notei alguém se aproximando.
Era Bernadete Beserra, que estava na platéia e tinha vindo me buscar para o segundo painel. Comentamos um pouco o evento, e quis saber se ela conhecia o homem que me fez a pergunta sobre as saudades; se, eu, como professor, saberia dizer se saudade era mesmo uma palavra que existisse apenas em português. Foi isso que me apanhou de surpresa. Bernadete não admitiu, a princípio, conhecer o homem. Era um tipo de rosto forte, trajando um paletó azul-turquesa. Mas Bernadete conhecia nossa comunidade na Califórnia. Tinha acabado de tirar um livro sobre como os brasileiros se identificam com os latinos, nas grandes cidades norte-americanas. Então, pensou um pouco, me chamando de volta, e repetiu a pergunta. Aquele senhor de azul? Falei que era esse mesmo. Foi então que ela me contou a história de Jéferson, um pastor brasileiro que, por aquela época, pregava em espanhol num velho cinema do Castro, o bairro gay próximo ao centro de San Francisco.
Dois meses depois do colóquio, Bernadete me escreveu dizendo ter localizado, por meio do pastor Jéferson, uma neta do velho armeiro húngaro. As indústrias do imigrante às vezes me parecem estupendas, para além da realidade. Como explicar essa coincidência? A família de Laszlo já havia lido o texto e feito reparos na minha recordação de criança admirada das amizades do pai. Essas emendas mudaram as fileiras às quais pertencia nosso herói e, súbito, tiraram de mim o consolo de uma memória inocente. É preciso recuar no tempo para se ver todos os desvios daquilo que, antes, me parecia tão sossegado. Logo que pude, escrevi de volta a Bernadete.
4 de fevereiro de 2006, Bernadete, tudo bom?, obrigado pelo toque e me desculpe o silêncio, suas mensagens me pegaram de férias, só voltei no dia 10, e voltei atrasado para preparar dois cursos, ando atolado em trabalho, fazendo tudo em cima da hora por conta da preparação para a chegada de Cecília, que nasce daqui a um mês, mas, sobre Laszlo, imagine, a memória do menino de dez anos — que era eu — mudou a casaca do soldado húngaro, fazendo dele um super-herói, fico contente que a família tenha gostado, apesar do lapso que cometi, enfim… um abraço, ouviu?, e continuemos em contato, Zé.
3 de janeiro de 2006, Zé Luiz, meu caro, antes de tudo desejo-lhe um excelente 2006, e agora veja as coisas deste mundo: enviei seu texto para Lia Fook Shiam, um amigo meu que mora no Recife e também é poeta… acho que uma das colegas dele em Direito tem o mesmo sobrenome, então ele foi conferir; envio abaixo a reação dela ao seu texto, e um grande abraço! Bernadete.
2 de janeiro de 2006, Bernadete, veja só, a minha colega é mesmo neta do sr. Laszlo; segue a mensagem dela; atenciosamente, Lia Fook Shiam.
29 de dezembro de 2005, Fook, acabo de ler o arquivo junto com meu pai e, de fato, a referência é mesmo ao meu avô, falecido em 1987; meu pai ficou bastante emocionado com o arquivo, pediu para agradecer demais pela lembrança, foi muito bonita a homenagem e, nas palavras de meu pai, apenas alguns retoques ele faria ao conteúdo: primeiro, que meu avô não era preso alemão; ao contrário, a Hungria era aliada dos alemães; no final da guerra, ele foi prisioneiro dos americanos; além disso, era comandante de uma unidade de blindados durante a guerra e o conserto era feito pelos próprios integrantes da unidade; por fim, o ferimento que sofreu foi, na verdade, no osso esterno, causado pelo disparo de um franco-atirador russo, que usava um fuzil Tokarev 7.62, calibre soviético padrão; no mais, tudo era isso mesmo: as histórias, a casa, a parreira, a oficina de armas no Poço da Panela, a falta de alguém com quem conversar em húngaro; tinha apenas a minha avó, além dos filhos… bem, reitero o agradecimento de meu pai, e muito obrigada por encaminhar o arquivo, fique com o meu abraço, e um maravilhoso Ano Novo! Michelle Molnar.
25 de dezembro de 2005, Michelle, o sr. Laszlo, referido na história do professor José Luiz, contada no arquivo anexo, seria o seu avô? Feliz Natal, Fook.