Os escudeiros de Cervantes

Nova tradução de Dom Quixote repete erros e desleixos das anteriores
01/06/2003

Por causa da semelhança com o português, todo mundo pensa que sabe espanhol, como tristemente demonstrou um político, de cujo nome não quero me lembrar, quando disse que, duela a quem duela, faria e aconteceria. Mas, no caso de Miguel de Cervantes, as coisas são um pouco mais complicadas. O espanhol de Cervantes é difícil mesmo para os espanhóis, hoje em dia, sem falar que o texto dele, desleixado como poucos, não teve a leitura de um editor ou de um amigo atento, daí a ter inúmeros trechos perfeitamente engarrafados. Para completar, Dom Quixote foi composto por quatro pessoas pelo menos, que devem ter dado suas contribuições. Imagina-se que foram quatro porque especialistas rastrearam as preferências ortográficas. Mas ainda tem o humor. O humor é uma coisa muito delicada, quase não sobrevive de uma língua para outra, ou de uma época para outra, ou sobrevive meio remendado.

Antes de Sérgio Molina (O engenhoso fidalgo D. Quixote de La mancha, Editora 34, 735 págs.) cinco tradutores resolveram comprar essa briga, que eu saiba. No século dezenove, os viscondes de Castilho e Azevedo botaram Dom Quixote num português muitas vezes mais complicado do que o original, transformando, por exemplo, uma simples fritada de ovos com bacon em “outros sobejos ainda somenos”. O humor foi detonado, piada por piada. Mas, não satisfeitos, os viscondes tentaram criar suas próprias piadas, sem muita felicidade, a não ser em casos involuntários como, por exemplo, quando traduziram “hidalgo e pechero” (fidalgo e plebeu) por “fidalgo e mecânico”, coisa que eu não tenho idéia do que seria em 1600 e pouco.

Os próximos foram Almir de Andrade e Milton Amado, pelos anos 50, se não me engano, que tentaram driblar a fluência de Cervantes, porque apesar do desleixo — as frases quilométricas, as inumeráveis repetições, os sentidos obscuros — ele é fluente. Mas o preço foi alto: uma podada radical, as frases crivadas de pontos, sem falar em simplificações às vezes fatais. Isso vale principalmente para os primeiros capítulos, porque o fôlego dos tradutores não vai longe, em cento e poucas páginas é visível o cansaço: as transcrições literais que dão em frases ilegíveis, nos piores casos, ou em frases esquisitas, nos melhores. Novamente, em matéria de humor, prevalece o involuntário, quando fazem Sancho dizer, por exemplo, que os cavaleiros andantes gostam de dormir sobre a “verdura” (na grama verde) ou que, “com bom discurso” (raciocínio), pode se compreender que falta pouco para amanhecer. (Sérgio Molina optou por “verde relva”, expressão afetada mas correta. O “bom discurso” Molina engoliu sem mastigar.)

Então, em 1984, surgiu a tradução de Eugênio Amado, pela Editora Itatiaia, provavelmente a melhor, numa contagem geral, porque não copidesca sistematicamente como Andrade & Amado e não tem as saídas nada nobres dos viscondes, quando o dicionário falha. Claro que Eugênio teve a vantagem de enfrentar Cervantes depois de Andrade & Amado, o que fica evidente em qualquer parágrafo, sem falar que muitos trechos foram transcritos vírgula por vírgula, incluindo os erros, o que liquida com a idéia de uma nefasta coincidência, me parece, mas, enfim, ele está mais próximo do que considero um bom tradutor: ser mais escudeiro do que cavaleiro.

Mesmo ruins, essas traduções têm uma porção de acertos, até a dos viscondes. Agora os enganos são absurdos. Claro, está para nascer o tradutor, por mais obsessivo que seja, que uma hora ou outra não confunda algum moinho de vento com um monstro de muitos braços, ou algum bode velho com Alifanfarrão ou Pentapolia do Braço Arremangado. Mas quando esses erros fazem fila? Quando esses erros são primários ou se devem à distração, pura e simples? Almir de Andrade, Milton Amado e Eugênio idem, por exemplo, traduziram “zurdo” (canhoto) por “surdo” (sordo, em espanhol) e transformaram, sem mágica, a mula de um frade em cavalo. Mas o problema mais comum é um problema que não deveria ser problema: as expressões. O diabo é que quase não escapa uma, coisa que dá um colorido todo especial ao texto em português.

Por pura curiosidade, traduzi os vinte e seis primeiros capítulos, cotejando linha por linha com as traduções antigas. Saí da empreitada com a convicção de que uma nova tradução, para ser festejada, nem precisa ser boa, basta não ser preguiçosa e ter uma revisão digna do nome. Aguardei, então, o trabalho de Sérgio Molina com uma certa apreensão porque, ao ler a tradução de Santa Evita para a Companhia das Letras, de Thomás Eloy Martínez, encontrei a seguinte frase, na página 237: “a luz oscila entre o cinza, o púrpura e o laranja como uma vaca boba”. Como meus conhecimentos de pecuária são limitados, fui direto ao dicionário, mas não encontrei nenhuma vaca boba, ou mesmo louca. Encontrei apenas “vaca de la boda”, vaca que participava de festas primitivas de casamento, quando era espantada de um lado para outro.

Claro que uma mancada desse tipo não invalida uma tradução. Como disse, todo tradutor está sujeito a elas, não importa se mais ou menos folclóricas. O que preocupa é que não só o tradutor passou pela vaca boba, mas também o editor e três revisores. Se isso pode acontecer com um Eloy Martínez, um mero jornalista esforçado, o que espera Cervantes?

Das quatro traduções, a de Sérgio Molina é a mais literal, quer dizer, a mais tímida. Como as outras, optou por manter palavras e expressões de sentido duvidoso em português, como “discreto”, “de indústria”. Molina chega ao ponto de explicar em nota que “de indústria” significa de propósito e “discreto” é usado aqui no sentido de inteligente, sensato. Não seria mais sensato deixar propositadamente de lado esses arcaísmos? Pode-se preservar um sabor de antigüidade sem esses exageros, que atrapalham a fluência, porque o leitor tem de estar refazendo constantemente o sentido do que lê. Se topa com “razões”, tem de pensar: serão razões mesmo ou palavras? Se com armas: será a lança, a espada ou a armadura? Se com grandes desmaios: será desmaio, ou grande desalento? Se com máquina de necedades: será a televisão ou um amontoado de besteiras? Não satisfeito com isso, Molina prefere, por exemplo, bacio em vez de bacia, ínsula em vez de ilha, músico em vez de musical. Enfim, estamos quase que no mesmo caso dos viscondes.

Molina, como os outros tradutores, ou não identifica as expressões idiomáticas ou as ignora. Exemplo, página 134: “Estava Rocinante maravilhosamente pintado, tão de longo e comprido, tão desmaiado e magro, com tanto espinhaço, tão héctico confirmado, que mostrava bem às claras com quanto avisamento e propriedade se lhe pusera o nome de ‘Rocinante’”. “Largo y tendido” (literalmente, longo e estendido) quer dizer em detalhe, profusamente. “Atenuado” pode ser tudo, menos desmaiado. Para se manter o ritmo e o humor, a frase deveria ficar mais ou menos assim: “Rocinante estava pintado maravilhosamente, em todos os detalhes, tão adelgaçado e magro, puro espinhaço, tísico confirmado, que mostrava muito bem com que argúcia e propriedade fora chamado de Rocinante”.

Na cena da queima dos livros, Cervantes escreve: “tenía más ganas de quemallos que de echar una tela, por grande y delgada que fuera”. Molina: “tinha mais vontade de os queimar que de entregar-se aos lençóis, por mais largos e finos que estes fossem”. “Echar tela” é fazer ou mandar fazer os preparativos antes de se tecer. A ama apenas estava ansiosa para pular as preliminares, por melhores que elas fossem.

O fidalgo tinha um “mozo de campo y plaza”, quer dizer, um rapaz para toda obra, tanto para o serviço doméstico como para o do campo. Molina: “um moço de campo e espora”. Isso no primeiro parágrafo, note-se. O engano me parece menos grave que a falta de sentido.

Noutra cena, um lavrador promete pagar um real em cima do outro “y aun sahumados”. Os viscondes: “e em moedinha defumada”, ao que o editor acrescentou uma nota para esclarecer que era paga de boa vontade, nota que também aparece na edição de John Jay Allen, da Editora Cátedra. Andrade & Amado: “e ainda os quebrados que restarem”. Eugênio: “e, ainda por cima, reluzentes”. Desta vez Molina leva vantagem: “real sobre real, mais uns cobres”. Diz-se “sahumado”, segundo o amansa-burro da Real Academia de Madri, de qualquer coisa que, sendo boa por si mesma, é mais apreciada com o acréscimo de outra que a melhora. Vem de “sahumar”, que é defumar para perfumar ou purificar. Epa, purificar?! Não é o mesmo que benzer? Que tal o lavrador pagar um real sobre outro, e benzidos ainda por cima? Acho que melhor só mesmo se pagar em euro.

Mas há enganos bobos, diretos. Vejamos uma frase como exemplo, página 57: “e se lhe assentou de tal maneira na imaginação que era verdade toda aquela máquina daquelas soadas sonhadas invenções que lia, que para ele não havia no mundo história mais certa”. “Sonadas” quer dizer que essas invenções eram famosas. Nenhum dos tradutores se deu ao trabalho de consultar o dicionário, mas pelo menos contornaram o problema, suprimindo a palavra, com exceção de Molina.

Agora, quando Molina resolve não ser literal, a coisa se complica mais ainda, como pode se ver pela frase de abertura do romance: “Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero me lembrar” se tornou “Num lugarejo em La Mancha, cujo nome ora me escapa”; “não há muito tempo que vivia um fidalgo desses de lança no cabide” se tornou “não há muito que viveu um fidalgo desses com lança guardada”; “adarga antiga, rocim magro e galgo corredor” se tornou “adarga antiga, rocim magro e cão bom caçador”. Muitas vezes, um tradutor precisa modificar uma coisa ou outra, para não trair o ritmo, a atmosfera, às vezes até o sentido, mas parece duvidoso que se possa justificar essas distorções. Notemos apenas uma: a lança no cabide. Pode-se argumentar que uma lança no cabide é uma lança guardada, mas aí também se guardou o humor, confere?

Estes poucos exemplos são suficientes para mostrar os perigos do espanhol. Mas o que é bem pior, como se viu, é que em muitos momentos o que falhou foi o português mesmo. Pode se admitir opções duvidosas, ou infidelidades flagrantes, até mesmo enganos cabeludos, mas essas opções, essas infidelidades, esses enganos têm de fazer sentido na nossa língua. Agora, se estamos nos debatendo num nível baixo desses, quando vamos poder falar sério, quer dizer, quando vamos poder exigir um tradutor com ouvido, com senso de ritmo? Enfim, quando vamos poder exigir um tradutor para quem a literatura não seja algo estranho?

Ernani Ssó

É escritor, tradutor e jornalista. Autor de O diabo a quatro e O edifício — viagem ao último andar, entre outros.

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