Os deliciosos peitinhos murchos

Conto de Raimundo Carrero
Ilustração: Marco Jacobsen
01/04/2004

Só gosto de problema que eu possa resolver. E pronto. Problema que eu não posso desmanchar na hora, me dá logo agonia no juízo. Tem que ser uma coisa assim: imediata. Quando se trata de algo que fica longe do meu alcance, me dá vontade de morrer. Porque não tenho medo da morte — sei que agora mesmo ela está tramando por aí, mas não me preocupo. Quando vou a um enterro, choro muito, até muitíssimo. Não por causa do morto, não mesmo, às vezes eu nem conheço. Choro de inveja porque não sou a morte.

A exata morte que se hospeda no corpo de Biba. Bela e nua.

Os deliciosos peitinhos murchos dela ali à mostra deixavam-me inquieto. Cercados de pingos d’água que escorriam do bico, armazenando-se na curva do busto, deslizando na pele em direção ao umbigo. Cabiam na minha boca. Deslizavam nos meus lábios. E eu não era a morte. Coisa mais triste. E irritante. Evitei mordê-los respirando fundo, renovando as forças na margem do rio. Gargalhei. Triste, muito triste.

Que é isso, Mateus, você não tem juízo, não? Se não pode chorar, pelo menos fique quieto, não faça escândalo. Absurdo esse, gargalhar diante da menina estendida no capim, morta. Será que posso me livrar disso, dessa menina, do corpo, do enterro? Ou bastaria arrancar os peitinhos e fugir para o fundo do rio, viver com os peixes dourados e podres? Pare com isso, Mateus, você só faz gemer e reclamar. Gargalhando. Pare logo, enfrente a situação, não se lastime, você está inventando sofrimento. Levante-se e trabalhe.

Não é o que eu quero, eu quero mesmo é me livrar logo disso, não suporto mais, não suporto, não, estou cansado, estou cansado de Biba, estou cansado da morte, cansado de mim, cansado de peitinhos murchos e de peixes dourados, não me agüento, não agüento ninguém, você está exagerando, exagerando muito, Mateus, deixe de ser filho da puta, está dramatizando, dramatizando o corpo jogado na beira do rio, um dramalhão desse só por causa da morte?

O policial gritando na minha cara, nos meus dentes, nos meus olhos.

Você matou, agora se levante e não chore, quando quis matar não pensou em nada, agora só treme, todo mijado, mas eu juro que vou sair com vida para matar esse policial de merda, a única coisa que eu desejo de todo o meu coração é matar essa besta, bate que bate sem pena nem compaixão, e eu sei que não matei a menina, isso eu sei.

Fiquei gemendo e pensando está bem, agora está bom, Mateus, está bem, você precisa se acalmar, juntar os pedaços e decidir. Acabe logo com essa latomia que não leva a nada. Sem susto. O que está feito, está feito, não se desmancha. Respire fundo, não, não, não, esqueça esse cigarro, você não fuma mesmo, você precisa é de juízo, você não é doido, é? Está querendo entrar em pânico e isso não resolve nada. Quer ficar louco, não é? Não, não fique não, Mateus, loucura é bom mas lhe tira a razão, você perde o direito a tudo, quando o juízo for apertando você pensa, ajusta, coloca tudo no lugar. Agora já passou, isso aí já passou, foi só uma crise, tenha forças para suportar a crise, faça de conta que não é com você, desconheça a loucura e pronto.

Ela só espera que a gente dê uma brecha, aí toma conta, aperreia, assume, golpe baixo, sem servir para nada, você já viu loucura servir para alguma coisa?, vire o rosto, Mateus, vire o rosto, olhe para o outro lado, isso mesmo, repita, faça de conta que não é com você, ande para um lado, ante para outro, desconheça, quando ela chorar você gargalha, quando ela gargalhar você chora, e não olhe nos olhos dela, loucura é serpente alada, com muito feitiço, e pode até se transformar em dragão, já viu não viu?, aqueles dragões imensos, com asas e tudo, voando, fugindo e avançando, igual à cobra dos olhos verdes, que vive no baú de sua casa, nunca abra o baú, jogue a chave fora e esqueça, é um perigo muito grande, afaste-se para bem longe, no momento em que ouvir um assovio lembre-se que é o dragão alado que está chegando, é a loucura que está chegando, é o pavio da morte que se aproxima, então corra meu filho, ouça o meu conselho.

Bastava ficar de pé e afastar a maluquice com a mão, mas deixei pra lá porque a vontade de fumar era grande, uma vontade imensa de puxar o fumo, e um novo soluço começou a se formar na minha garganta, o soluço magoava meu peito, parecia um bando de pássaros, precisei me controlar muito para não ter de gritar porque estava às vésperas da loucura, era possível sentir que ela vinha se apossando do meu sangue, passando pelo coração e balançando os meus cabelos, se atingisse os miolos aí estava tudo perdido, bati com a mão na cabeça duas ou três vezes, quer dizer, bati devagar, sem fazer escândalo e ela foi para trás da orelha, ai, meu Deus, tira isso daí, corria o risco de entrar pelo ouvido e além de doido ficaria mouco.

Então fechei a orelha com a mão aberta e o mundo ficou escuro e brabo.

Acocorado, segurei-me no capim e nas raízes, a sensação ruim de que estava ameaçado pelo vento, procurando respirar com força, repetindo sempre não matei Biba, eu não matei Biba, só beijei os peitinhos, os peitinhos murchos, os deliciosos peitinhos murchos porque ela morreu, pedindo a mim mesmo, implorando, me tire daqui, você não tem compaixão?, o policial cansou, me empurrou e esfregou meu nariz na parede, fala, fila da puta, quando esfregou meu nariz senti cheiro de cal, um cheiro de cal misturado com sangue, um cheiro de cal e de sangue misturado com cimento, como era que numa hora daquela eu pensava em cal, cimento e sangue?, pois a coisa imediata que me lembrei de perguntar foi assim o senhor não tem compaixão de mim, o senhor não tem, não, meu nariz está doendo, me tire daqui.

A mim eu podia dizer tudo, falar o que pensava e o que não pensava, o que era mentira e o que era verdade, e ao policial não, ao policial só devia falar o que me convinha, o que é que está pensando?, eu não sou doido ainda, puro ainda, estou às vésperas da loucura, não é assim sem mais nem menos que vou começar a falar, a dizer coisas, a mentir, só para não apanhar mais, para ficar no meu canto sossegado comendo doce e bebendo água gelada aqui na cela, foi o que ele me prometeu, fale tudo e você será muito bem tratado, com pão e cafezinho, ele pensa que eu sou doido, ó, deixa ele pensar assim.

Queria fazer um susto em Biba, que ela acordava e saía correndo, os peitinhos balançando devagar, porque um morto só precisa mesmo é de um susto para se levantar e começar a correr, o policial ia compreender logo que sou uma pessoa séria, estou falando a verdade, só uso mentira para casos especiais, quando já não tenho outra saída, o que também é mais uma mentira, na verdade estou dizendo isso para me enganar, o meu corpo está todo doído, não consigo nem me deitar nem me levantar, vou pedir uma trégua para demonstrar que não estou mentindo, apenas acocorado aqui na beira do rio tentando controlar a loucura que quer entrar pelo meu ouvido, e eu fico gemendo, com medo que o gemido se transforme em choro, o que não agüento mais e me controlando, dizendo a mim mesmo você é muito doido, Mateus, você é doido, uma bandeira desfraldada da mentira, um ser que é humano não pode ser assim, não, tome tento, homem.

Se quiser fumar, eu fumo, mas não posso endoidar, mesmo para me defender tenho que ficar com a consciência fria, tenho que manter o juízo no lugar, e não é que eu queira enlouquecer, nem quero, não penso numa besteira dessa, com sinceridade, posso ter um bando de defeitos, concordo, mas não sou louco, bem que gostaria, só um pouco, não muito. Ou não? O pior é essa sensação de que eu poderia ser uma boa pessoa, com juízo e tudo, quieto e guardado. Ela é que aparece aí incomodando, me incomodando, insultando-me, se houvesse uma só pessoa que quisesse me ajudar.

Estou ficando irritado primeiro porque sou mentiroso, depois porque não controlei meu juízo, e agora porque sinto que as lágrimas estão se formando nos meus olhos, o bando de pássaros feito soluços subindo para os meus olhos, descendo pelo canto do nariz, molhando minha boca, estou puto da vida, cansado, tão cansado, tudo porque não dormi direito fiscalizando Biba, que tem essa mania de morrer, que coisa mais estúpida, uma pessoa só tem uma vida e inventa de morrer.

É melhor morrer ou ficar doido?

Se eu pudesse preferir, preferia ela viva, nua na cama, queria estar beijando os deliciosos peitinhos saltitantes no silêncio do quarto, a menina quieta e livre, bela e pacificada, de onde minha mãe nem queria que me aproximasse, para isso você não é doido, não é?, o policial gritava, gritava o tempo todo, parece que ele não sabe falar direito, tenha educação, como é que uma pessoa recebe o preso na cela, os dois sozinhos, e começa a bater, murros, ponta pés, nariz esfregado na parede, devia ter civilidade, isso se chama civilidade, e basta consultar os outros para saber o que significa, de onde vem e para que serve.

A menina gostava de brincar, gostava muito de brincar, brincava, pedia quase implorando, falando assim fazia uma concha com a mão bem no meu ouvido, vamos brincar de beijar peitinhos, dizia fazendo cócegas. Corria para o quarto, deitava-se na cama, tirava a blusa sem sutiã, fechava os olhos, os seios pequenos saltando e eu ali beijando, beijando bem devagar, muito bem devagar, muito devagar, a língua escorrendo na pele, as carnes tremendo, as minhas e as dela, enfeitiçada. Enfeitiçados. Nem falava, nunca falava, deixava somente aquele riso afetivo e belo enfeitando o rosto.

Biba nunca devia ter feito uma coisa daquela.

Até que me levantei, me arrastando ali na beira do rio. Mais calmo me aproximei novamente do corpo roxo, ferido pelas pancadas nos ombros e na cara, peixes dourados na boca, os peixes podres, peixes mortos, cabelos ensopados, toquei nela e não senti o mesmo viço. Frio, completamente frio. Segurei-a pela mão. Precisava ser protegida. O dia estava amanhecendo. O claro do mundo rajando nas nuvens, avermelhando. Decidiria logo se a enterrava antes que o sol nascesse completo. Se a levava para minha mãe.

Ou se morreria junto com ela. Talvez.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho