Os benefícios da violência entre crianças

Conto de Yuri Al’Hanati
Ilustração: Thiago Thomé Marques
01/12/2024

Conta-se do caso de Leônidas Aguiar, até hoje pelos corredores do departamento do curso, expulso sob pontapés desferidos por membros de sua própria banca de doutorado, cujo tema da tese era Os benefícios da violência entre crianças para a constituição psíquica-social sob o jugo do Estado. Quem quer que dedicasse um segundo olhar ao doutorando não concederia à sua silhueta desengonçada e de movimentos vagarosos mais que uma criação que se fundia com sofás e copos insalubres de Nescau. Aguiar, um arrivista da Sociologia, considerado um tipo desagradável e excêntrico, passou a maior parte de sua vida acadêmica discutindo com professores sobre assuntos dos quais muito pouco ou nada sabia, e defendendo a legitimidade do confronto físico como forma peremptória de resolução de conflitos. Não existem boxeadores ressentidos, dizia ele com a certeza da amostragem psicopatológica de toda a liga estadual de boxe em mãos. Fazia caretas agônicas diante do conceito de comunicação não-violenta e mediação, certo de que tais discursos escondiam sob a nacarina de civilidade uma sociedade de seres inofensivos, para quem a palavra era o alfa e o ômega de toda questão. A matéria é decaimento, dizia o pesquisador, levantando dados pouco convincentes colhidos em entrevistas capciosas e conduzidas de tal modo que lhe permitisse concluir que a popularização da internet e a massificação da comunicação via computadores coincidiam com o total abandono da preferência pela porradaria — atualizando aí, ao menos na sua cabeça, toda uma discussão sociológica sobre a violência simbólica como parte constitutiva da modernidade que até mesmo os devotos mais fervorosos de Elias já haviam deixado de lado. Sobre este, Aguiar apontava a pacificação como subprocesso do processo civilizador, sendo a violência física substituída por uma violência simbólica autorizada. O célebre sociólogo, porém, não via a violência como uma virtude, de onde vinha a força da nova tese apresentada. Leônidas Aguiar propunha que a violência era uma qualidade formadora na infância que vinha sendo perdida com as inibições promovidas pelo processo civilizador. O ambiente intelectual desidratado e destituído de seus prolegômenos originais, neste novo meio, dava origem a um novo tipo de assujeitamento ideológico que reinseria o refugo humano no papel de agente althusseriano de controle discursivo por meio daquilo que viria a ser conhecido algum tempo depois de sua desastrosa defesa de tese como cultura de cancelamento — na época ainda chamada de linchamento virtual. Ainda segundo ele, o novo mal-estar da civilização ainda seria o velho — a eterna divergência, o pensamento transviado, silenciado não mais pelo draconismo do Estado vitoriano e seus agentes, mas pelo zé-povinho ansioso que desloca, de forma narcísica, a culpa e o mal para seu rol de objetos próximos. Em chave positiva, o mesmo tipo de controle exercido na infância preparava psiquicamente o homem moderno para um estado de constante autovigilância que terminaria por blindá-lo de situações consideradas ridículas dentro de um certo entendimento geral que, aos olhos dos examinadores, não escapava em nada à interseção quase completa com as noções de papéis de gênero do patriarcado — o que não colaborava muito com sua proposta para a aceitação acadêmica. Mas isso era coisa de fresco que fazia sarau de poesia, defendia ele à boca pequena para quem quer que perguntasse.

A gênese de sua pesquisa é desconhecida pela gritante falta de artigos científicos anteriores elaborados pelo mesmo autor que sugerissem uma continuidade de pesquisa — sua dissertação de mestrado, na área de Estudos Literários, envolvia uma dura crítica acadêmica a um autor em evidência com quem tinha uma relação pública de desafeto. É certo que muito do pensamento elaborado por sua curta e naufragante carreira acadêmica foi construído após assistir ao filme Clube da luta, baseado em um livro que não conhecia, e que passou a desprezar após tomar conhecimento de sua existência, por acreditar que certos autores são circunscritos a uma faixa etária e a um perfil psicológico dominado pela frustração e pelo ressentimento ao qual não queria ser associado. Há uma cena no filme em que o personagem principal instiga os membros do clube da luta a arrumarem brigas pela cidade afora, apenas para constatarem que o cidadão médio evitaria o confronto físico a qualquer custo. Foi só após uma camaçada de pau coletiva lecionada pelos frequentadores de um pé-sujo, cuja atenção conquistou com uma tática mista de pequenas inconveniências sociais, como falar alto e cutucar os outros, e transgressões sérias desde a época pré-socrática, como zombar de defeitos físicos e de hábitos alheios, que decidiu restringir sua práxis ao ambiente universitário. Numa ocasião em que reassistiu ao filme, pôde perceber, um pouco tarde demais, que os beligerantes do filme buscaram puxar briga com pacíficos vendedores de carros, padres e executivos, e apenas ele teve a ideia de engrossar o peso de sua tese em um estabelecimento comercial que concedia a seus clientes livre acesso a tacos de sinuca. Reformulou um pouco seu conceito ao ver que a dimensão física da violência estava bem viva fora do curral intelectual onde suas falas absurdas guardavam certa elegância exótica grotesca, como um acasalamento de aves de rapina filmado pela National Geographic, e decidiu, portanto, restringir o corpus teórico.

Em novas entrevistas capciosas, agora realizadas apenas entre acadêmicos e beletristas, um certo recorte da classe artística que, segundo o acadêmico, começava, diante de uma recente guinada social à direita, a transbordar suas incompetências corpóreas na forma de uma desaprovação ao armamentismo, Aguiar conseguiu constatar, sabe-se lá como, já que ninguém que leu seus métodos científicos foi capaz de chegar às mesmas conclusões, que o mercado de livros e pesquisas na área de ciências humanas estava dominado por criaturas fisicamente débeis, com polenguinho no lugar de músculos e água de salsicha no lugar de sangue, e que portanto a vida intelectual ou artística seria um refúgio para quem sofria de medo crônico da vida exterior. No mesmo parágrafo há uma breve e confusa comparação com a opção pela via monástica por jovens homossexuais de ambientes altamente repressivos que levavam a desastres consequenciais similares, de onde o pesquisador acreditou caber o paralelismo, e uma vaga menção — sem fontes — a um suposto apagamento histórico do papel da força física na construção da filosofia helênica, em que igualava a maiêutica socrática em força física àquela exercida por Michelangelo em suas esculturas, para quem o mármore já continha a forma final de sua arte, cabendo a si a obstetrícia da pedra. Admitiu posteriormente, durante a banca, antes das bicudas que levou na costela, que jamais havia empunhado um cinzel ou conhecido pessoalmente e a íntimo qualquer padre. Mesmo antes disso, porém, havia sido ameaçado, ao insinuar relações causais entre a homofobia social e o monastério, por um grupo de atletas que se autointitulavam Os Capoeiristas de Cristo, que acompanharam as ideias embrionárias de sua tese no Twitter, e que fizeram uma pequena vigília em frente ao seu prédio que durou dois dias inteiros, durante os quais o intelectual sobreviveu graças à eficiência dos aplicativos de delivery.

Ainda sobre as mesmas ponderações acerca de Elias e suas afirmações sobre a violência simbólica, concluiu também que a intelectualidade tratava de instaurar um primado do confronto argumentativo como forma de combate e metonímia da batalha. Há regra, há rivalidade, e há a excelência da performance fruto do treinamento, defendia. O que não havia, segundo seu texto, eram vencedores. Enquanto pugilistas que pediam alguns minutos no ringue mediante maiores discordâncias levantavam luvas enquanto oponentes eram socorridos, beletristas esgotavam-se sem conclusões definitivas e dedicavam-se ao silêncio ressentido, ao evitamento mútuo, à picuinha e à maledicência. Isso porque, concluía, bater boca não traz, ao espírito atormentado, a calma de levar um soco na cara. Daí advinha sua principal ideia. Seguia-se uma longa explicação com a devida emulação da linguagem acadêmica (que tão facilmente abriu as portas das instituições de ensino para as pessoas erradas) que parecia apenas três páginas de um elogio poético ao soco na cara. O soco na cara, escreve Aguiar, humilha na mesma medida em que elimina o rancor. Anuvia a fumaça densa que antes impedia um aperto de mão de despedida, o entendimento de que não é possível uma relação, mas que as diferenças ficaram acertadas. Após dar vazão a seus arroubos literários, concluía com a máxima que gostava de repetir toda vez que discutia sua grande tese em uma mesa de bar: não existem boxeadores ressentidos. E isso parecia resolver toda a questão para ele.

As mais de quatrocentas páginas de seu tratado confuso e poroso, conforme avaliado por um dos membros da banca, continham ainda alguns dados de amostragem e estudos interdisciplinares obscuros que correlacionavam infâncias potencialmente traumáticas e fisicamente violentas dentro de um certo limite e de recorte socioeconômico a noções comuns de felicidade posterior, como sucesso material, constituição de família nuclear e poder em seus mais variados graus, de onde Aguiar achou por bem trazer certos biografismos de famosos e implacáveis estadistas para solidificar o argumento. Também separava e agrupava, de forma um tanto maniqueísta, crianças capazes de infligir dano e crianças oprimidas em posteriores profissionais das ciências exatas e das ciências humanas, respectivamente. Terminava o tópico apontando o brilhantismo distribuído de forma equânime entre seus dois grupamentos, concluindo dali que a força física e a periculosidade do indivíduo não são de nenhuma forma castradoras de sua capacidade intelectual.

Diante de uma banca de doutorado estupefata, Aguiar defendeu seus argumentos com a calma e a insolência de quem se acredita superior aos examinadores. Quando seu trabalho começou a receber mais ataques do que julgava ser necessário, começou a mudar de humor. Acreditava que tudo transcorreria com a calma de um trabalho sólido e irrefutável, para o qual os contra-argumentos da banca seriam apenas rodeios protocolares de cortejo, como o acasalamento das aves do paraíso — pavoneamentos incontornáveis diante de tanta beleza. Em dado momento, percebeu que seu trabalho estava sendo vítima da violência simbólica que atestou ser a grande arma dos frangolinos da universidade — e, numa reação instintiva, colocou-se entre os papéis e os verdugos. Foi quando resolveu resumir tudo a um único argumento performático. A questão era muito simples e, diferentemente de outras teses de pouca contribuição na realidade imediata, poderia ter sua comprovação prática ali mesmo. Começou então a provocar seus examinadores como um pastiche de valentão de escola ginasial, não prevendo que todos ali tacitamente decidiram arriscar suas próprias carreiras em nome do rigor científico.

Enquanto Aguiar sorriu quando ouviu o arrastar das cadeiras para que seus examinadores se colocassem de pé, pareceu um tanto quanto confuso quando o primeiro soco, em ângulo reto com seu rosto, quebrou seu nariz. O que se seguiu foi uma versão reduzida e engravatada de um decimatio romano. Encolheu-se de forma fetal debaixo do pequeno círculo de paletós de tweed com cotoveleiras que lhe chutava e esmurrava com uma energia surpreendente. Aguiar descobriu naquele momento que mesmo doutos professores publicados em importantes revistas acadêmicas podiam dispender suas horas de lazer em academias de muay thai, ringues de boxe, dojos de jiu-jitsu e outras formas de exercícios físicos em artes marciais, e ponderou que talvez ele mesmo devesse praticar alguma coisa, ao invés de gastar seu tempo extraindo conclusões do éter, como apontou o nanico grisalho com um primeiro nome grego, coordenador do curso de pedagogia, que minutos mais tarde lhe fissuraria a mandíbula.

Deixou o departamento naquele dia cuspindo sangue pela boca e, com a ajuda do único mais-ou-menos-amigo que tinha no curso, conseguiu se enfiar num táxi rumo a um pronto-socorro. Quando a pró-reitora resolveu não levar o caso adiante, ninguém pareceu muito animado para questioná-la para além das três linhas que escreveu de forma protocolar. Mais tarde, entretanto, a revelação, diante de tantas especulações sobre a vida e a obra daquele lunático, que Aguiar jamais tinha apanhado na infância, resolveram convidá-lo para uma nova avaliação de seu trabalho. Talvez houvesse algo a ser dito sobre o assunto, afinal.

Yuri Al’Hanati

Mora em Curitiba (PR) desde 2004. É autor dos livros de crônicas Bula para uma vida inadequada (2019) e A volta ao quarto em 180 dias (2020 – finalista do prêmio Jabuti). Mantém o canal sobre literatura Livrada! no Youtube.

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