Oito dias

Conto de Luís Pimentel
Ilustração: Daniel Klein
01/05/2004

Dia 1
Saí do hospício ainda há pouco. Quem me olhar vai reconhecer o brilho translúcido e confuso nos meus olhos. Quem me cheirar sentirá todos os cheiros azedos que trago lá de dentro. Entrei na primeira papelaria que encontrei no caminho, comprei este caderno e comecei imediatamente a escrever este diário.

Não saí fugido. Deram-me alta. Não me disseram o motivo repentino da alta, como também não me disseram, em momento algum, por que me internaram. Também não sei quanto tempo passei lá dentro, mas sei exatamente há quanto tempo estou aqui fora: o tempo exato de escrever estas seis ou sete linhas.

Minha casa está do mesmo jeito que deixei. Só um pouquinho mais empoeirada. Acho estranho encontrar esse prato sujo sobre a pia, mas não me incomodo. Talvez tenham me levado para o hospício no momento exato em que eu fazia uma refeição. Talvez eu tenha me apresentado espontaneamente. Por enquanto, não lembro de nada. Mas tenho certeza de que lembrarei enquanto estiver fazendo este diário. Palavra puxa palavra, que puxa lembrança, que pode ser boa ou ruim.

Querido diário. Seja minha luz. Ou meu calvário.

Dia 2
Começo por tirar a poeira dos móveis. Em seguida, dou uma geral em meus discos e livros. Concluo que está tudo no lugar. Um disco no aparelho de som, com a capa jogada em cima da mesa. Um livro com a página marcada sobre o sofá da sala. Talvez eu estivesse lendo ou ouvindo música ou as duas coisas, quando me seqüestraram. Talvez eu tenha sido seqüestrado. Ou não.

Na caixa de Correio há contas para pagar, folhetos de propaganda de lojas e restaurantes e uma carta de minha irmã. Não lerei já. Pretendo esperar melhor momento. Preciso ir até a mercearia, ou à padaria, ou ao supermercado. Mas não tenho forças. Prefiro me jogar na cama, assim mesmo, suado e de estômago vazio.

Amanhã acordarei cedo, tomarei café reforçado e banho morno, se o gás não tiver sido ainda cortado. Não sei quanto tempo eles demoram a interromper o fornecimento de gás. Também não sei quanto tempo fiquei ausente e deixei de pagar as contas. Depois do banho, ponho roupas limpas, devo ter ainda alguma, e vou procurar emprego. Mas antes faço a barba e esfrego na cara escanhoada a loção de alfazema, com cheio de infância, de que eu gosto tanto.

Dia 3
Três horas na fila, com a documentação dentro do envelope pardo. Cópia em xerox da identidade, do CPF, título de eleitor, carteira profissional, atestado de residência, PIS, Pasep, o cu da mãe, tipo de sangue, suor e lágrimas. E só durante a entrevista fico sabendo que deverei ganhar, se conseguir passar a perna nos milhares de infelizes concorrentes, uma merreca que mal dará para o aluguel.

Respiro fundo e respondo a todas as perguntas que me são feitas, uma por uma, sem perder a paz nem a calma. Dou respostas elegantes e corretas até quando o filho da puta me pergunta se tenho aids e se tenho parceiras e ou parceiros regulares.

Sim, não, claro, é assim, é assado, e quarenta minutos depois tomo o ônibus de volta para casa. Atiro-me na cama, sem sequer afrouxar o cadarço do sapato, e ouço a voz de minha mãe dizendo: “Reza, meu filho, para Deus te ajudar. Reza mesmo deitado”.

Só Deus. Só mesmo Deus.

Dia 4
Tomo o café na padaria da esquina, folheando o jornal de crimes. É o mais barato que se encontra na banca de jornais e revistas. Marido traído enfiou duas balas nos cornos do Ricardão e um cabo de vassoura no rabo da infiel. Pastor comia meninas menores de idade e foi em cana acusado de pedofilia. Aposentado encontra bala perdida durante assalto a uma farmácia. Tiroteio entre polícia e bandido ou entre bandido e polícia pára o trânsito por algumas horas na principal avenida da cidade.

Ligo do orelhão da esquina e fico sabendo que fui aprovado no trabalho. Posso me apresentar amanhã, com todos os documentos, que a merreca mensal estará garantida. Faço as contas: dá para ônibus, o café, o cigarro e a compra de supermercado para encher a marmita. Só que terei que arrumar tempo para cozinhar o que botar na marmita.

Deus me perdoe, mas no hospício eu tinha menos trabalho.

Dia 5
— Aqui não tem mesa de canto — diz o chefete.

E todas as mesas ficam no centro da sala, todo mundo de frente para ele e de lado para todo mundo. Recebo a primeira tarefa: revisar um texto escrito pelo chefete do chefete, que recebe ordens diretas do chefe e este do chefão. É um memorando informando a não sei quais prezados senhores que não sei que comunicação deve ser feita sempre antes de não sei que horas, para evitar atropelos. Tudo isto, em um texto atropelado e confuso.

Pego um lápis e começo a corrigir os absurdos. O chefete se aproxima e pergunta o que estou fazendo. Digo que estou tentando melhorar a redação, para que a comunicação se dê de maneira mais direta.

— No computador — diz.

Pergunto como assim e ele esclarece que as correções devem ser feitas no computador, “pois aqui”, naquela porra, “neste escritório”, naquela merda, “nada é feito à mão”. Percebe o meu embaraço e me dá 24 horas para aprender a trabalhar no computador, “se não quiser ceder a vaga para o segundo colocado”.

Agradeço comovido. Bom homem, o chefete.

Dia 6
Como não tem mistério, aprendo em poucas horas a mexer com o computador. Qualquer macaco com um parafuso a menos na cabeça mexe com essa porcaria que os especialistas acham a coisa mais complicada do mundo. Corrijo o texto, emendo, remendo, reviso, salvo, imprimo e entrego para o chefete com cara de bunda, que encaminha para o chefe com cara de merda e que deverá fazer chegar urgentemente ao colo do chefão, que deverá ter cara de cagão.

Passo o dia inteiro sentado, escrevendo e corrigindo besteiras, e no final da tarde pego o ônibus para casa. Ônibus cheio de doer. Nunca vi tanta gente fedorenta neste mundo. Nem no hospício.

O sujeito suarento em minha frente tem uma mancha enorme de sujeira no meio das costas e um cheio insuportável no corpo, que se espalha pelo interior do ônibus toda vez que ele levanta o braço.

Chego em casa muito cansado, mas sinto vontade de escrever um poema, que começo assim: “Estou cansado, cagado e infeliz”.

Amanhã continuo ou não.

Dia 7
Os sonhos são tenebrosos. No primeiro, estou dentro de um enorme buraco escuro, não sei como fui parar ali. Ouço gritos lá fora, sirenes ligadas, latidos de cães danados, vozes de caçadores autoritários. Procuram-me, me perseguem e já descobriram que estou escondido no buraco escuro.

Um diz “joga uma bomba que ele sai correndo”. Outro ordena que espere, porque “mais cedo ou mais tarde o filho da puta vai sentir fome e botar a cara para fora”. Uma terceira voz berra “mata logo esse bosta e vamos embora daqui”. Sinto uma vontade louca de urinar. Saio às pressas do sonho e quando me dou conta já estou no banheiro, me aliviando, graças a Deus acordado.

O segundo sonho é com minha mãe, dizendo “reza, meu filho, reza mesmo dentro do buraco, reza pra Deus te ajudar. Procura sempre estar no lugar onde te sentes feliz”. Ouço a voz de Deus, a rouca e pesada voz de Deus, dizendo este aí nem reza salva”. Acordo com dor no estômago e lembro que fui dormir com fome.

Não quero voltar a dormir. Deus me livre.

Dia 8
Lembro das palavras de minha mãe, em meu sonho, dizendo que devo procurar sempre estar no lugar onde me sinta feliz. E com este pensamento e as palavras de minha mãe em meus ouvidos eu faço café, esquento pão e tomo café, depois lavo a xícara e tranco a porta de casa. Coloco as chaves no bolso da bunda e atravesso a rua de cabeça erguida, entro no ônibus de cabeça erguida, desço de cabeça erguida no ponto mais perto do escritório e de cabeça erguida vou até a mesa do chefete. Paro diante dele e digo “bom-dia”.

— Bom-dia — ele responde, sem sequer olhar para mim.

— Acho que você é um grandíssimo filho de uma vaca arrombada — eu digo, serenamente.

O chefete me olha com os olhos esbugalhados, está amarelo de dar pena. Ameaça gaguejar alguma coisa, mas não diz nada.

Saio do escritório pensando nas palavras de minha mãe em meu sonho, cada vez mais convencido de que o homem deve procurar sempre o lugar onde se sinta feliz, e entro em outro ônibus. Pouco depois já estou na porta do hospício, de onde saí faz só uma semana e parece que já tem tanto tempo.

O homem da guarita abre a porta de aço e pergunta se está tudo bem comigo. Digo que está tudo bem comigo. Pergunto se está tudo bem com ele e estiro os braços para os dois enfermeiros que se aproximam. Eles enfiam em mim a camisa-de-força e um terceiro vem chegando com a seringa na mão. Olham-me com profissional desinteresse, mas percebo o pequenino sorriso de vingança. Ofereço o corpo e a veia, não crio qualquer dificuldade. Aprendi a conviver com essa gente.

Luís Pimentel

Nasceu em Itiúba (BA), em 1953. Jornalista e escritor, tem obras publicadas em variados gêneros (romance, contos, poesia, teatro, música e infantojuvenil). Seu livro mais recente é Alguém vai ter que pagar por isso (Faria e Silva).

Rascunho