Remorsus Perjurii
Obra auto-atribuída a Plotino, teria sido impressa na tipografia dos sucessores de Gutenberg e, supostamente, pertencido a Maria Catarina III, da Suécia. Tratar-se-ia de uma obra valiosíssima, se todos esses atributos correspondessem aos fatos. Confesso que foi movido pela sede de lucro que a troquei por uma camisa do Flamengo, com um cacique txucarramãe, delegado da educação indígena, com quem dividi quarto na I Conferência Nacional da Educação Básica, em Brasília. Ele me contou que havia encontrado tal livro numa fazenda abandonada às pressas, perto de sua aldeia.
Dias depois, já em casa, analisando cuidadosamente o opúsculo, percebi que não passava de uma grosseira falsificação. Além de escrito em latim vulgar típico da baixa Idade Média, constatei graves erros conceituais quanto à tradição neoplatônica agostiniana.
Como que por coincidência, uma notícia no jornal, relatando a perseguição, na Amazônia, ao estelionatário internacional Romarick Dartenn permitiu-me deduzir toda a trama.
Talvez o leitor não se lembre. Ele foi o único sobrevivente do suicídio coletivo da seita do pastor Jim Jones, há mais de 30 anos, na Guiana Inglesa. Dartenn, dentre centenas de membros, sobreviveu, pois foi o único a simular a ingestão do suco de uva envenenado. Pior ainda, faturou muito em cachês, participando de programas de televisão e dando entrevistas a jornais por todo o mundo, narrando o fatídico episódio. No Brasil, chegou a gravar uma participação no “Programa do Jô” — ainda no SBT — que não foi ao ar, pois o coronel Meireles (me escapa seu primeiro nome), censor de informações e costumes, se indignou diante de tão ignóbil depoimento.
O que me aguçou a memória foi uma nota de repúdio lançada pela UNE — Viva a Frente Sandinista, o Fascismo não passará! — que panfletei na Cinelândia. Equivocadamente, na época, protestamos por entender que a censura fora movida por razões ideológicas, pois o tomamos por um correspondente da BBC expulso da Nicarágua pela ditadura somozista.
Relacionando esses fatos, pude entender que o livro em minhas mãos valia mais como índice da vilania humana do que, propriamente, como obra filosófica. Na verdade, Dartenn utilizou a traição de Judas como metáfora de sua própria baixeza. Assim, até mesmo seu título — O remorso de um perjúrio — não é sincero. Pretendia faturar, mais ainda, com a venda do pseudotexto medieval.
Todavia, uma batida da Polícia Federal, na operação “Saci Pererê”, obrigou-o a fugir às pressas, abandonando seu simulacro e sua propriedade. Ali, dedicava-se à prostituição de indígenas, contrabando de animais em extinção, além da extração ilegal de mogno.
Não sei se essa obra interessará a alguém.
ABC do Comunismo, revisado por Karkoloff
A obra, em si, não é rara, mas meu exemplar o é. ABC do Comunismo é um típico manual marxista soviético dos anos 30. Foi escrito pelo líder bolchevique Bukharin, que, ao cair em desgraça, se não me falha a memória proletária, foi fuzilado em decorrência dos Processos de Moscou, em 1935. Por inspiração de Joseph Stálin, o livro foi revisado pelo Comitê Central do PCUS, nos anos seguintes, por Leon Sagatinov, e Konstantin Alexsevski, também sentenciados à morte, respectivamente, por enforcamento e asfixia.
Já na década de 40, um ajudante de ordens do general Zukov, o burocrata do partido Dimitri Karkoloff, que se notabilizou não tanto pela coragem nas batalhas, mas pelo fervor com que denunciava os camaradas, se deu ao luxo de fazer a “revisão definitiva” do livro de Bukharin, em pleno cerco a Stalingrado.
Posteriormente, com as denúncias ao stalinismo, no XX Congresso do PCUS, o próprio Karkoloff caiu em desgraça. Sua revisão foi considerada “um típico exemplo de deformação mecanicista do materialismo dialético”.
Seu sumiço só foi esclarecido com a Perestroika e, pode-se dizer, é curioso. Divulgou-se que foi enviado ao espaço, juntamente com a cadela Laika, e suas últimas palavras — de Karkoloff, é claro — teriam sido: “Compreendes agora, querida amiga, por que abomino a paternidade e os espelhos?” A gravação registra que, diante do silêncio de sua interlocutora (segue-se apenas um leve rosnar, sideral e canino, quase inaudível), teria completado: “Porque multiplicam os seres humanos”.*
Bem, leitor, imagine minha surpresa ao receber de presente de meu sobrinho, que fez um estágio em microbiologia, em Londres, exatamente um exemplar, autografado pelo autor, dessa edição que se tornou raríssima, pois foi quase toda confiscada e destruída, durante o governo Kruschev. Ele a encontrou num sebo londrino, classificada como construtivist alphabetization (também, entre nós, já vi erros semelhantes: Raízes do Brasil, em botânica; Cidades Invisíveis, em urbanismo; Dialética do Concreto, em engenharia civil). Apurei, pela internet, que fora desprezada por um neto de Karkoloff, que mora em Londres, onde integra a equipe de segurança pessoal do controvertido magnata do petróleo russo, presidente do Chelsea Football Club.
Imagino que tal preciosidade interessará sobremaneira aos estudiosos com formação em história e/ou marxismo.
Didática Rígida
Creio que este livro despertaria grande interesse, especialmente entre educadores, pois é um marco, ainda que tristemente célebre, na história da educação chilena. Mas, infelizmente, pelo que narrarei, não poderei disponibilizá-lo.
Escrita em caracteres incaicos, com inflexões nhambiquaras do alto Juruá, essa obra pedagógica foi encontrada em escavações no deserto de Atacama, quando da construção do observatório astronômico de Palomar. Especulou-se, a princípio, que seria uma psicografia de Comenius. Não comungo de tal hipótese.
Devo adiantar que o que se encontrou da Didática Rígida foi apenas uma parte. Avalia-se que mais de 2/3 se perderam, provavelmente devorados por lhamas famintas. Parece que as metáforas gastronômicas da leitura tocam apenas os humanos, os animais as realizam. Ainda assim, uma comissão de especialistas reunida pelo ministro da Educação do regime Pinochet — o general de artilharia Gastón Valderrama — chegou à surpreendente conclusão de que tal diminuição, ao invés de debilitar a obra, a havia aperfeiçoado. O relatório foi enfático a esse respeito: “… se pierde el accidental, pero queda el esencial”. Apesar de subscrito pelo próprio ministro, sempre se desconfiou que sua redação coube a algum ex-seminarista cooptado, pois Valderrama, considerado rude e simplório até mesmo por seus pares, tinha mais intimidade com o manejo de instrumentos de tortura do que com conceitos aristotélicos, ainda que os mais elementares. Parece que o adjetivo “rígida” foi o que, efetivamente, atraiu a simpatia do general, que tornou a Didática Rígida, mesmo tão mutilada, a fundamentação de uma reforma educacional duramente criticada pelos educadores sobreviventes, no país ou exilados.
Suponho que devo esclarecer uma questão que considero legítima ocorrer ao leitor: como uma obra tão importante para a política educacional da ditadura Pinochet veio parar em minhas mãos? É nesse ponto que entra na história meu ex-vizinho Ignácio Rojas, um argentino originário da Província de Jujuí, antigo militante da Juventude Peronista, que aderiu à luta armada e se exilou no Chile, durante o governo Allende. Com o golpe militar, Rojas foi preso e torturado no Estádio Nacional. Ali, conheceu o sargento Hermano Gutierrez, ordenança do ministro. Rojas e Gutierrez, malgrado o afastamento ideológico, tinham algo de muito forte em comum: suas raízes incaicas. Gutierrez, natural de Antofagasta, padecia de um imenso incômodo, pois fora criado dentro de uma tradição que impunha que os códigos, como a Didática Rígida, deviam ser deixados ao relento, pois assim é que seus ensinamentos fluiriam pelo mundo. Pode-se imaginar, portanto, o dissabor que o acometia, diariamente, ao ver o livro sagrado sobre a mesa do general. Após alguns meses de hesitação, tomou uma decisão radical: possibilitou a fuga de Rojas com a Didática Rígida, sob o juramento de conservá-la segundo os preceitos de seus antepassados.
Há alguns anos, Ignácio Rojas, ao tomar conhecimento de que estava acometido de uma doença terminal e que teria apenas uns poucos dias de vida, confiou-me seu segredo e sua missão. Confidenciou-me que me escolhera por ser um educador.
Desde então, observo a lenta degradação desse livro. Resume-se, hoje, a apenas 18 folhas e calculei que no ano 2017 cumprirá seu destino: não restará sequer o título.
Afinal, esse é o ideal de educação legado pelo deus Sol. As maiores lições estão na vida, não nos livros
* Essa versão não parece ser digna de credibilidade. Com certeza, não o são suas supostas “últimas palavras”, na verdade um plágio de Jorge Luis Borges. Basta confrontar com Obras Completas I, Ed. Globo, p.358.