Objetos deslocados

Conto de Miguel Sanches Neto
01/09/2004

FAÇA VOCÊ MESMO
Há impulsos que não controlamos. Entrando em uma papelaria, encontrei um lápis de carpinteiro. Sem saber para quê, comprei aquele instrumento e ele dorme apontado, em meio a dezenas de lápis comuns, em um pote sobre minha mesa. Nem experimentei seu grafite grosso e retangular, como ele próprio.

Há semanas convivo diariamente com este lápis e enfim descobri sua função. É um móvel da memória. Todas as vezes que o olho, lembro-me de meu padrasto, nos anos 70, aumentando o barracão de nossa cerealista. Ele ainda hoje se orgulha de saber várias profissões, entre elas a de carpinteiro. Levantou sozinho uma parte nova do barracão, feito também com tábuas, que serviu para estocar soja — era o início das lavouras mecanizadas em Peabiru.

O barracão ficou enjambrado, como tudo que ele faz. Mas ainda está em pé e serve hoje como depósito de semente. Eu era menino, e via-o trabalhando em andaimes, cortando tábuas e caibros, marcados com linhas grossas de grafite.

Ter meu próprio lápis de carpinteiro é uma forma de me manter ligado a este tempo em que o homem fazia ele mesmo quase tudo de que precisava.

PRODUTO DE EXPORTAÇÃO
No armário da sala, descansa uma machadinha indígena de uns 30 centímetros. Foi encontrada em nossa fazenda, em Peabiru, junto com outras menores. Meu padrasto estava colhendo soja, parou a colheitadeira ao ver a pedra pontiaguda, que ameaçava o pneu. Desenterrou-a, encontrando mais duas. A maior ficou comigo, como presente — talvez como única herança. Tentei saber onde ela fora encontrada, mas, prevendo que eu poderia fazer escavações, pois se trata, sem dúvida, de um sítio arqueológico, ele se negou a me dizer.

Sobre quantos resquícios de aldeias indígenas hoje plantamos soja?

O COMPLEMENTO DE SUA ELEGÂNCIA
Comprei um chapéu em Foz de Iguaçu e o deixo em uma chapeleira dos anos 30, no hall de entrada de casa. Em uma de suas visitas, Domingos Pellegrini me perguntou para que o chapéu?

É quase um enfeite, para ocupar um dos ganchos destinados à sua espécie no velho móvel de antiquário. O chapéu não foi comprado com este objetivo. Eu estava em Foz, ia percorrer as trilhas das cataratas e resolvi me proteger do sol. Depois foi para a chapeleira, que descansava vazia.

Agora, me vem a idéia de comprar outros chapéus, mas devem ser imemoriais, da época em que eu era menino, quando os homens saíam sempre com este necessário complemento.

Meu avô usou chapéu a vida toda. Eu passava pela loja de sapatos ao lado da igreja e via, nas vitrines de madeiras escuras, chapéus pretos, muito bonitos, e ficava esperando o dia em que também poderia ter o meu. O tempo estava emperrado na cidade, mas logo ela seria incorporada pela civilização. Um dos prefeitos instalara uma televisão na praça. A cidade se civilizou, eu cresci, os hábitos mudaram, nós começamos a ouvir rock, não houve jeito de eu usar chapéu.

Minto. Usava chapéu sim, mas de palha, desses com a parte superior redonda (tipo safári). Na cerealista, havia uma fileira deles, pendurados em pregos na parede. Nós os colocávamos na hora de carregar sacos na cabeça. Não tinham donos. Podíamos pegar qualquer um. Depois do serviço, tirávamos o chapéu, lavávamos os braços e o rosto em uma torneira e ficávamos descansando sobre a sacaria recém-descarregada.

Os chapéus de feltro e os panamás eram para a vida social e não para o trabalho. Talvez isto explique este meu desejo extemporâneo. Oh meu Deus, aqueles eram tempos tão chapéus!

ATENDIMENTO 24 HORAS
Acordo na madruga, mesmo tendo tomado meu ansiolítico. Todos dormem no bairro residencial em que moro, amanhã estarão bem cedinho no trabalho. Os olhos acostumam-se rápido com a escuridão, que ganha volumes. Quero ligar para alguém, falar longamente sobre coisas alegres para esquecer-me. Mas todos com quem quero falar estão mortos, estão mortos a esta hora da madrugada, hora absurda, de aranhas e baratas, de noctívagos neurastênicos. Poderia me levantar e ler, há livros no quarto. Mas estou cansado demais até para me mexer na cama, viro então o rosto para o criado-mudo, com muita dificuldade estendo a mão direita e aperto o botão do relógio digital — duas horas e trinta e dois minutos. O relógio permanece aceso mais uns segundos e logo se apaga. Eu, no entanto, não me apagarei. Imóvel, olho a escuridão dentro da escuridão. O sem tempo. O vasto mundo de sombras interiores. Quando encontro novamente forças para apertar o botão do relógio já são três horas e cinqüenta e quatro minutos. O tempo escorreu lento e rápido. É como se eu tivesse me ausentado e súbito voltasse ao quarto, uma hora e tanto depois. Nunca gostei de relógios e todos estranharam quando comprei este de cabeceira. Quiseram saber para quê. Para administrar minha insônia, respondi. Antes de deitar, viro-o para meu lado, aproximando-o o máximo. Depois de apagar a luz, acendo seu mostrador e olho as horas, e ele logo se apaga, aconselhando-me a fazer o mesmo. Este relógio tem sido minha mais constante companhia. O que já é alguma coisa neste mundo volúvel. Mas me atemoriza imaginar a noite em que sua bateria irá falhar e eu terei que passar sozinho esta pequena eternidade, sem ninguém para me dizer que não, ainda não está na hora do sol nascer, agüente só mais um pouquinho.

LIÇÕES DE DESENHO
Abro a gaveta de minha escrivaninha e encontro, no meio de documentos, desenhos de minha filha. Paro com o que estou fazendo e me perco nesta outra realidade, seus traços primitivos e coloridos, um sol descomunal, flores do tamanho da casa, uma menina segurando a mão de um homem. Noto que é a criança que ampara o adulto, pois neste desenho o pequeno é sempre maior do que o grande. Não só nesse desenho. Na realidade também, e se não vemos as coisas assim, é porque nossos olhos estão estragados.

Volto-me para a gaveta aberta e não me lembro daquilo que eu estava procurando com tanta urgência.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho