Anoto os sonhos para num dia vazio encontrar neles um conto. Aconteceu recentemente. No clímax, eu fugia das patas cabeludas de um cavalo percheron gigantesco na beira-mar. Eliminei a cena hiperfantástica, mas não o medo de morrer. E o conto prosseguiu com o homem num táxi em Montevidéu ou qualquer cidade onde uma grande avenida acompanhe o mar. Rio de Janeiro, Florianópolis, talvez. Olhou pela janela traseira do carro e, lá embaixo, viu ondas quebrando em espumas sobre a estreita faixa arenosa, bege, sombreada pela montanha percorrida pelo táxi. Havia proteção entre a avenida e a praia, as grades passavam tão rapidamente que, para o homem, sequer existiam. Era fim de tarde, o céu de um azul chuvoso. A chuva já caía de uma nuvem que, vista de longe, no alto-mar, assemelhava-se a uma ducha. Lembrou-se, estava indo para um hotel. E o táxi de fato aproximava-se da ruazinha perpendicular à avenida, onde ficava o velho hotel. Na fachada há três arcos, o do meio é a entrada.
O carro não diminui a marcha, prossegue. Na mesma velocidade. O homem ergue-se do assento e, com educação, avisa ao motorista que houve um equívoco, e virando-se para trás consegue ver a mulher sob o arco do meio. O motorista diz que só contornar a cidade, não demora nada. E o homem, numa indignação impotente, volta a sentar. Contempla o mar — seria um lago? — enquanto o carro faz a curva à esquerda e começa a subir um viaduto.
No começo, o táxi venceu a gravidade sem esforço, mas o viaduto foi se mostrando íngreme, tão excessivamente íngreme que o motor começou a fraquejar. Através da janela, o homem viu na outra pista um, dois carros voltando de costas, e outros tantos caindo pela beirada do viaduto; numa queda de cinco segundos, se chocavam contra a areia da praia.
E o táxi passou. Estavam enfim no outro lado. Agora não demorava, disse o motorista. A avenida plana margeava prédios antigos, paredes com marcas de seguradoras falidas no alto, e também um muro infinito, grafitado como o da Mauá em Porto Alegre, embora o homem tivesse certeza de que não estava em Porto Alegre. O táxi voltou para onde o sonho começara, portanto há o mar ou o lago, a velocidade constante sobre o asfalto, a alegria de chegar ao hotel, e a mulher (agora ele sabia) esperando-o.
E viu: ela se aproximava de uma ponte, a meio caminho da balaustrada. Foi uma visão veloz, a beleza de uma fotografia de Boris Kossoy passando de repente na televisão — pronto, acabou —; um pássaro se chocando contra a vidraça do escritório, deixando ali a marca do corpinho já morto — pronto, acabou. O táxi, mais uma vez, não entrou na ruazinha. O tempo estaria terminando, ou teria enfim terminado, então ele gritou com o motorista, e este, placidamente, pediu que se acalmasse. Coisas que acontecem, fariam a volta.
O mar, ou o lago, havia recolhido as águas na beira, na areia à mostra jaziam carcaças de carros. A subida, tão íngreme quanto uma parede, era ainda mais mortal. Carros voltando, carros despencando pela borda. Cinco segundos, a queda, contava ele enquanto subia.
Quando chegaram ao outro lado, o alívio foi menor (um pouco) porque o homem aprendera (um pouco) a confiar no motorista. Mas a sensação foi igualmente boa e ele sorriu e disse: agora me deixe no hotel. O motorista fez um sim contrariado com a cabeça.
Edifícios novos à esquerda. Diante da ausência da amurada, não se surpreendeu, era outra cidade, apesar de a avenida continuar a mesma e no mesmo sonho: a areia sombreada, a proteção invisível, a ruazinha, a mulher. E um táxi que não parava nunca, seguia na direção do viaduto mais íngreme do mundo. Abriu a janela, ia pular. O desespero era menos por saber que logo enfrentaria uma altura assassina do que pela nova imagem da mulher. Enxergara-a na balaustrada, olhando para baixo. A chuva não conseguia molhar seu rosto desfocado e não havia problema nisso, só assim era complexo o olhar sobre o abismo — tão longe, como pode ter notado o olhar que a fotografia borrou e, querendo ou não, acabou inventando a solidão imensa, meu Deus, tão imensa, e no homem a coragem.
A queda durou cinco segundos no ar de Montevidéu, Rio de Janeiro, talvez Porto Alegre, não estava bem claro em que cidade ele caía. Conhecia tantos lugares. Compreendeu que em apenas num haveria uma mulher que se encaixava no que agora era a lembrança do olhar sobre o abismo.
Na bochecha, a areia úmida. Ao longe, vindo em sua direção, os cavalos. O solo tremia, o tropel refletia-se na película da água. Ele não conseguiu levantar, e havia pânico, agora, eram gigantes os cavalos. Um deles, cujos cascos sozinhos eram maiores que eu, e que por desprezo à fantasia excluí do conto, salvou-o: abocanhou-o de modo muito sutil para que não o machucasse gravemente, e correndo pelas ruas entre edifícios novos e antigos, como um semideus, levou-o para o hotel.
E o sonho está quase acabado. Ou o conto. De resto, esta é a lembrança: não havia ninguém ali. A mulher não estava sob o arco nem debruçada na balaustrada da ponte. A rua era um deserto de paralelepípedos molhados. O homem subiu para o quarto, no hotel. Havia fotografias nas paredes, ameaçaram se desprender no que ele notou, entre elas, a mulher: casaco, saia, cabelos negros, o olhar inclinado para baixo, além da ponte, seria um viaduto? Está levemente fora de foco, o olhar, não a mulher. O homem de alguma forma terá sentido que será esse o olhar que as lembranças têm sobre nós, quando as buscamos e buscamos.
Entrou no banheiro. Num espelho quadrado, as bordas de plástico, viu seu rosto desfocado em primeiro plano, e em segundo, nítido, surgir um outro eu. Esse outro eu — ele, talvez — se aproxima por trás e, enternecido, encosta a cabeça em seu — meu — ombro. É o que vemos no espelho, dois rostos como duas montanhas gêmeas. Uma delas chora.