O último bloco

Conto inédito de Maria Helena Mossé
Ilustração: Eduardo Mussi
01/07/2022

Quando a cachorrinha chegou, bola fofa cheirando a leite, Zilda implicou de cara Uma fêmea… Vai entrar no cio, e em outras chatices pensou, mas não disse; não queria desapontar a filha mais uma vez. A menina lera na Claudia que bicho faz milagre. Filha única recebia, sem trégua, o vendaval de mau humor da mãe que, ainda por cima, entrara na menopausa. O animal canaliza a energia ruim, dizia a revista. E na hora do quebra pau — quem espatifou o copo?, quem sujou o sofá?, quem sentou nos óculos da vovó? — as acusações irão para o último da Lista dos Mais Fracos: o cãozinho!, deduziu a menina, decidida a pedir ajuda ao pai, que, casado com outra, andava sumido. Quem sabe a mãe se apega à nova moradora, um bassê tipo salsicha, perna curta, olho vivo e rabo comprido e fino que ameaçava constantemente os bibelôs da casa. A criatura precisava de um nome, e, coisa mais sem graça, o nome escolhido foi Salsicha. Ao menos uma vez na vida, Zilda não deixou pra lá. Deu crédito à filha por tentar desanuviar o astral da casa. Até ficou agradecida ao ex-marido, que fez seu dever de casa: de pai. Há meses nem telefonava para saber da filha.

O tempo passou. A menina cresceu e, com alguns diplomas na mão, conseguiu emprego fora do país. As vindas ao Brasil ficaram mais esparsas, o trabalho era intenso, nos Estados Unidos as férias não são como as daqui, mamãe! Zilda não tinha dinheiro para viajar, e nem arranhava o inglês! Tomar conta de neto, que saco, Deus me livre. Nunca foi chegada a criança.

E, além do mais, o que fazer com a Salsicha? Deixar com quem? A cachorra era cheia de manias, só mijava na rua se fosse com a dona. Mesmo assim, Zilda dava-lhe carinhos que nunca imaginou dar à filha. Ao longo dos anos, a culpa transformara-se em pensamentos sólidos, sem nitidez, mas pesados. Zilda engordara, suas costas ficaram largas, as pernas sempre inchadas. É preciso andar, diz o médico, não basta ir só até o metrô. Ainda bem que a senhora tem a bichinha para levar à rua. Vai passear, dona Zilda!

Ao se aposentar do serviço público, e por insistência da Creusa, Zilda começou a pensar em sair de Botafogo. A amiga dizia que passear com cachorro no calçadão é muito divertido, dono de bicho troca conversa, pergunta qual a melhor pet, dá receita de remédio caseiro para pulga. Vem pra Copacabana, você não vai se arrepender!

Zilda foi. Mudou-se para o mesmo prédio da amiga. Era com ela que falava mal do ex-marido, era com ela que comentava as novelas, com ela procurava as ofertas no supermercado. E mais: com ela transbordava um leito de lamúrias que corriam em busca de acolhimento. Creusa era as margens desse rio.

A dona Creusa teve um ataque fulminante, disse o rapaz da ambulância, sem notar o rosto crispado e os olhos molhados da vizinha. O tempo retomou seu passo lento e ressecado. Zilda buscou novamente o médico. Esvaziou o peito. Doutor, eu acordo tão triste… Teve que se contentar com um silêncio respeitoso e a letra ruim no papel timbrado. Acostumou-se a uma vida menos sofrida, sem sobressaltos. A aceitação calada, sua velha companheira, voltara a cobrir o cotidiano da vida. E não tinha mesmo com quem falar.

Sai pra lá, sua gorda! Salsicha nem se mexe. Dá um bocejo, se espreguiça e fica onde está. Zilda repara na pelagem cor de doce de leite queimado começando a ficar riscada de branco, aqui e ali, no bigode. Além de gorda, velha. O verão fumegante de fevereiro; verão, fevereiro e Carnaval fulminam a possibilidade de saírem para passear.

Mesmo assim, Zilda se abaixa para colocar a coleira na cadela, que faz corpo mole, adivinha o que a espera. A mulher sente o calor inchando as pernas, os joelhos reclamando. Com esforço, arrasta Salsicha pelo corredor dos fundos, rabo murcho. A cadela deu para latir mais alto, que medo de encontrar os vizinhos!… Salsicha aponta seu focinho comprido na direção do cenho franzido de Zilda. Fazem acusações mútuas.

Lá fora a tarde desce calma, o último bloco de Carnaval deixa seu rastro de lixo e mijo. Um folião atrasado e bêbado levanta os braços: Vou beijar-te agora, não me leve a mal… hoje é Carnaval! O refrão bate no peito de Zilda, perfura a carne e se aloja no coração. Ai! Poderia trazer à tona uma lembrança colorida, daquelas boas para contar à Creusa, onde quer que estejam as suas cinzas.

Salsicha inicia seu lento caminhar. Além de gorda, velha. Atravessam a rua. E se a bicha se soltasse da coleira e corresse pra baixo de um carro? No fim da corrente esticada o corpo retesado, a cauda por baixo das pernas, os olhos pedindo para não existir. Um arrependimento sacode as costas de Zilda, que firma o corpo e levanta a cachorra do chão. Lá vem a Comlurb assoviando a limpeza. Uma brisa inesperada arrepia os corpos suados dos que ainda restam na avenida pontilhada de confete verde, amarelo e branco.

De volta à calçada, a cadela retoma o andar rente à dona. Quase não se ouve mais o batuque do bloco ao longe. Zilda seca as gotas de suor que descem pelo peito onde, há pouco, um coração descompassado quase arrebentou com a lembrança perigosa de um beijo. Quase. Olha a companheira, que bamboleia os quadris. Seguem as duas rumo ao Posto Seis, onde o entardecer do verão joga trapos rosas e lilases sobre o mar.

Maria Helena Mossé

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ). É psicanalista e atua na área clínica. É autora do livro de contos Batom no dente (7Letras, 2016).

Rascunho