Desligou a luz e a escuridão fez bem aos olhos. Abriu e fechou os dedos, as juntas doíam. Deixou a caneta sobre a mesa e tateou até chegar ao quarto, seguia devagar. Não tinha pressa para deitar na cama e não conseguir dormir. Sabia que quando todo o ritual estivesse terminado, olhos fechados, a mente não retiraria os muros para que os sonhos a invadissem e tudo o mais ficasse para trás.
Contra sua vontade as letras apareciam e formavam palavras, estas se organizavam e formavam frases que se uniam para formar o parágrafo. A estória seguia, era impossível pará-la. Depois de tantas noites já estava resignado e olhava imóvel para o teto até que os primeiros raios do sol entrassem e mecanicamente levantasse. Tinha experimentado permanecer acordado, fazendo algum tipo de atividade, mas parecia que ficar deitado e esperar o dia era mais confortável. Ao menos sentia uma normalidade familiar quando levantava e tirava o pijama.
Com o tempo se acostumou com as palavras martelando em seu cérebro e conseguia, razoavelmente, fazer o necessário para sobreviver.
Durante o banho era até possível cantar, evidente que as letras estavam erradas, substituía as originais pelas frases de sua estória, entretanto considerava um avanço. Era comum durante o jantar montar palavras com as batatas fritas, teria feito uma frase toda, mas a fome acabou com a matéria-prima. As dificuldades começavam quando precisava conversar com alguém, por exemplo. Quase teve problemas ao ameaçar de morte a moça do telemarketing de um banco, não que algumas ligações desta natureza não o mereçam.
A princípio tentou livrar-se daquela condição, não ousava chamar de doença, porém nenhum médico, analista ou psicólogo acreditou em suas palavras e ele logo desistiu da idéia. Com os amigos também não teve sorte, de fato todos acharam que ele era um afortunado. Um escritor que tem uma fonte inesgotável, uma estória em sua cabeça. Por que ele estaria descontente? No fundo, sabia que seus amigos também não acreditavam em sua história. Ele mesmo às vezes sentia dificuldade em acreditar.
Só lhe restava uma opção: escrever.
Passou uma tarde que parecia interminável, foi preciso toda a sua concentração, para finalmente analisar o que tinha escrito. Encontrava grande dificuldade em ler cada palavra no papel, quando tantas outras ululavam em sua mente. Ao final leu as 37 folhas escritas com uma letra apressada, usar um computador seria loucura, a velocidade que tinha que anotar não era acompanhada pela sua agilidade com o teclado.
Ficou surpreso quando colocou a última página na mesa ao lado da poltrona. Até que a estória não era ruim. Precisava de uma revisão, a qual ele não tinha a menor idéia de como faria, mas não era o momento para se preocupar com isto, afinal não sabia o que iria acontecer quando a estória chegasse ao fim. O importante é que existia uma chance de que quando tudo passasse, teria um bom material, quem sabe até um livro publicável.
Assim foi vivendo, os dias se organizando em semanas e estas em meses e com o tempo veio a experiência. O conhecimento para conviver melhor com sua condição. Descobriu que o melhor lugar para estar era em uma sala de espera. Passou a freqüentar consultórios médicos, ia toda semana fazer exames, qualquer dorzinha era recebida com alegria. Pois no tédio da espera, a estória seguia adiante, fluía com uma boa velocidade e, o mais importante, sua condição passava a ser uma vantagem em relação aos outros que tinham que esperar sem nada para se distrair.
O banco também tinha se transformado em um de seus lugares favoritos. Fazia questão de fazer um pagamento por vez, uma fila para cada conta. Cancelou todos os débitos automáticos e pagava todas as consultas com boleto. Sem utilizar o caixa automático. Passava horas nas filas com seus cadernos, escrevendo sem parar. Isto causou calos e dores terríveis em seus dedos, mas ele gostou, era mais uma razão para visitar um consultório.
Foi com o tempo que encontrou em sua protagonista uma ótima companhia, travavam conversas intermináveis. Inconscientemente, inventara um personagem que refletia a imagem que tinha de si. Sabia que os longos diálogos prejudicariam o ritmo e a estória. Não se importava. O prazer era maior do que o livro, na verdade era a única forma que tinha de ter uma conversa onde estava totalmente concentrado em suas palavras e nas de seu interlocutor.
Negava no seu íntimo que conversava sozinho, o texto tinha vida própria, sua protagonista tinha uma voz própria. Porém é preciso elogiar sua atitude, qualquer um teria uma boa chance de acabar louco se estivesse na referida condição.
Jantares, passeios e até uma viagem internacional. Nunca tinha sido tão feliz em sua vida. Tentou até ir ao cinema com Matilda, o nome era uma homenagem a sua avó, mas a experiência não foi das melhores. Certa noite, depois de jantarem em um restaurante italiano, ele estava deitado em sua cama quando se beijaram pela primeira vez. Estava apaixonado, não tinha como negar.
Estava na fila do mercado, perto de sua casa havia um mercado com filas inacreditavelmente longas, a qualquer horário. Comprava todo dia alguma coisa ali. Três horas da tarde, com apenas dois caixas funcionando e a fila enchendo quase todo um corredor, a pequena caixa de sabonete por pouco não escapou de seus dedos. Foi a primeira vez que conseguiu antever sua estória. Claramente teve uma pista do caminho que ela seguia.
Decidiu ignorar o fato. Nunca aquilo tinha acontecido e talvez ele estivesse errado. Seguiu a sua rotina de médicos, bancos e mercado. Estava no banheiro, outro local ideal para sua condição, quando aconteceu pela segunda vez ele não teve dúvidas. Era para valer.
Ficou desesperado, jamais tinha perdido o controle desde que estava naquela condição. Imediatamente tentou conversar com Matilda para alertá-la sobre o futuro. Sobre sua morte. Mas por alguma estranha razão ele não conseguia comandar o diálogo, seu personagem secundário não dizia as frases que ele desejava. E a estória caminhava.
Não conseguia pensar direito no que poderia fazer para salvar sua amada. A mente não raciocinava. Decidiu que primeiramente faria outras atividades para tentar retardar o fluxo de palavras. Começou a fazer contas e por um breve período funcionou. Diante dos números as palavras ficavam mais lentas. Mas não demorou para que a mente se acostumasse com a situação e as palavras voltassem a sua velocidade normal.
Apelou novamente para os médicos, consultar o melhor psicólogo da cidade, infelizmente teve que esperar um bom tempo e a estória caminhou bem. Sentou-se diante do analista, um homem com certa idade, cabelos brancos espetados e um óculos de aro preto redondo. Ele o conduziu até o divã e pediu que contasse a sua história. Ele falou sobre sua condição, contou tudo nos menores detalhes e revelou que não poderia permitir que Matilda morresse. O doutor pensou, releu suas anotações e finalmente perguntou se a estória era boa. Ele retrucou que era estupenda, apesar dos longos diálogos.
Depois de muitas perguntas o tempo terminou e tudo que restou foi uma promessa de que no próximo encontro teria uma resposta definitiva. Saiu sem entender nada do que tinha se passado. Só sabia que seu problema ainda estava sem solução.
Esperava pelo sinal abrir quando novamente, e desta vez teve certeza, pôde ver à frente da estória. Estava acabando, não tardaria para começar o último capítulo. Começou a correr pela rua, queria chegar o mais rápido possível em casa. Precisa se concentrar, parar toda aquela loucura antes que fosse tarde demais.
Quase corria pela praça movimentada quando uma cigana segurou seu braço. Suas roupas coloridas estavam sujas e os penduricalhos dourados gastos, mas o aperto era forte e ele não conseguiu se desvencilhar. “Você tem um problema.” Normalmente a abordagem não teria nenhum efeito, ele sacudiria a cabeça e continuaria o seu caminho. Mas hoje, especialmente hoje, ele parou.
A velha segurou sua mão com força, começou a passar a ponta dos dedos ásperos na sua pele. Os olhos permaneciam fechados, ele sentiu uma leve coceira, mas não ousou sorrir. “Eu vejo uma morte”, ela balbuciou como sempre dizia, ele tremeu ao escutar a palavra que tanto martelava em sua cabeça, “mas vejo também que existe uma saída e uma grande alegria o espera ao final”. A cigana abriu os olhos e estendeu a mão esperando por sua recompensa.
Retirou uma nota de seu bolso e entregou para a velha que rapidamente a guardou e foi abordar outra pessoa que passava por ali. Apressou o passo, o interesse nas palavras da cigana tinha terminado antes mesmo de o dinheiro trocar de mãos.
Chegou em casa e sentou-se na poltrona. Fechou os olhos e respirou fundo, precisaria de toda sua concentração para interromper aquela loucura. Sim, pela primeira vez ele admitia que era uma loucura. Lentamente começou a tentar deixar a mente em branco, mas as palavras continuavam, apertou os olhos fechados. Mais palavras, tentou até os dedos rasgarem o tecido da poltrona. Palavras, frases e parágrafos.
Gritou com raiva. Impossível. Levantou com um pulo. Andava rapidamente pela sala. Tentava em vão encontrar alguma solução. Precisava dar um jeito. Não conseguiria viver sem Matilda, sem sua amada.
Desde que decidiu sair daquela condição, foi obrigado a prestar mais atenção na estória em sua cabeça. E agora conseguia compreender as frases, lembrar dos parágrafos, entender a estória. E era boa. Estupendamente boa. A melhor que ele já tinha escrito.
Por mais de uma vez, sua vontade era sugada pela curiosidade e toda sua concentração voltava para a estória. E assim ele se tornava um leitor, experimentava a sensação que era ler sua própria estória, ler a sua mente. Sabia que quando lia, as palavras corriam e se aproximavam do desfecho. Da morte.
Depois de tantos capítulos, tinha consciência de que ele, ou melhor, a personagem que tinha criado para ser ele era importante para o enredo e não apenas o namorado da protagonista. Suas ações geravam conseqüências e em alguns casos eram o fator que levava a estória adiante. Até suas longas conversas com o protagonista tinham agora um caráter interessante e se transformaram em um dos pontos positivos. Para seu orgulho, teve um parágrafo todo de que apenas ele participou.
Então um sorriso nasceu em seus lábios e permaneceu ali durante um tempo. Sabia como resolver o problema. A cigana estava errada. Não haveria morte nenhuma. Ele poderia mudar a estória, sua personagem poderia encaminhar a estória para onde ele desejasse. Sentou-se novamente e relaxou, deixou que a estória corresse livre por uma última vez.
Sua primeira ação, agora como personagem, foi convidar Matilda para um café, precisava alongar a estória. Desde que isto não comprometesse a qualidade. Apesar de desejar muito que sua amada sobrevivesse, jamais poderia estragar a estória. Isto estava fora de questão.
Foi durante o diálogo que descobriu algumas informações imprescindíveis para poder arquitetar seu plano. Não seria nada complicado, queria uma trama simples e eficiente. Na última troca de frases já tinha tudo pronto e estava confiante. Matilda estava salva.
O momento pedia por uma atitude drástica, o livro original já estava entrando em seus capítulos finais. Abandonou as filas e salas de espera, decidiu ficar em casa e escrever. Passava todas as horas em sua cadeira até que seus dedos não agüentassem mais. Alcançou tamanha prática que colocava as palavras no papel quase com a mesma velocidade que elas fluíam em sua mente. Tudo seguia bem. Suas ações, como personagem, estavam tendo as reações e impactos desejados. Depois de dois capítulos e uma noite em claro, tinha conseguido. O controle da estória era seu.
Desde que sua condição tinha começado era a primeira vez que se sentia inteiramente feliz com aquilo. Escrevia sem parar, não por desespero, mas por prazer. Não importava mais as noites em claro e todos os outros incômodos. Vivia para escrever a sua estória, sem se preocupar com a sua história. Sabia que estava realizando um feito colossal. Uma grande obra. De fato, sentia pena dos outros escritores que não tinham a sorte de ter sua condição, que agora chamava de dom.
Sabia que o fim estava próximo, três capítulos no máximo. Acreditava que a trama seguia os trilhos que ele tinha traçado. Porém como todo o bom livro, uma virada inesperada, sem dar nenhuma pista, chegou. Ele não estava preparado para isto. Apesar de o plano ter sido executado à perfeição, a protagonista, sua amada, a mulher de sua vida, iria morrer. Precisava morrer. Pela estória a protagonista deveria morrer no próximo capítulo.
Sua mão parou. Entretanto desta vez o desespero não veio. Finalmente tinha compreendido. Jamais teve o controle. Nenhum escritor tem. O único controle que um escritor tem é sobre a sua história. Mas ele não tinha tempo para refletir sobre isto, se a trama seguisse seu curso normal, a protagonista estaria morta ao amanhecer. Ele tinha uma noite para resolver o seu problema.
Pela manhã sua caneta estava largada sobre a mesa, no papel uma frase incompleta. As palavras não surgiam mais, sua mente estava vazia pela primeira vez há muito tempo. Ele finalmente admitiu sua mediocridade e soube que nunca seria um dos grandes. Restou-lhe somente uma opção, a única que os personagens secundários têm quando o protagonista está ameaçado. Deixou a estória incompleta e deu um fim à sua história.