O sol no horizonte

Conto de Mayrant Gallo
01/01/2006

Foi meu pai quem me deu o recado, ao chegar em casa com o livro que eu havia lhe pedido pela manhã. Eu nem tinha idéia do que estava acontecendo. Ele apenas me disse, de esquiva, com aquela sua voz macia, incapaz de ferir:

“Seu irmão tem um trabalho pra você. Vá falar com ele”.

A escola para mim era agora uma sombra. Passava os dias enfiado nos livros: romances, poesia, contos. Às vezes rabiscava um ou outro. Portanto, qualquer trabalho de verdade seria bem-vindo. Meu pai ganhava o suficiente para vivermos, eu, ele, minha mãe e minha irmã, mas um filho em casa, sem estudar nem trabalhar, não vai bem aos olhos de ninguém.

Passei a noite lendo Hemingway. Quando cheguei à última página, o sol se levantava no horizonte.

Troquei de roupa e fui ver meu irmão, em Lus. Uma hora e meia de trem ferindo a paisagem. Minha cunhada veio ao portão, com um sorriso. Magra e silenciosa, tinha uma maneira bem própria de pôr a mão em meu ombro e depois me abraçar.

“Seu irmão já vem”, disse.

E quis saber de minha mãe, de todos lá em casa. E principalmente de minhas namoradas… Estávamos sentados na sala, e ela cortava algumas verduras dentro do prato posto sobre os joelhos. Me questionava de cabeça baixa, sem parar as mãos. Enfim se levantou, foi na cozinha e logo voltou com uma garrafa de cerveja e dois copos. Bebeu quase de uma vez todo o líquido. Depois ficou com a cabeça de lado, o olhar perdido. Sua expressão era de ausência, talvez de tristeza.

“Que trabalho é esse que Aldo me arranjou?”, falei, de repente.

Ela nada sabia.

Pouco depois meu irmão apareceu. Afagou minha cabeça, como se fosse meu avô, e eu ainda uma criança. Tinha na mão um leque de cartas, que me passou perguntando se não era um bom jogo. Se o trunfo era mesmo espadas, como eu desconfiava que fosse, era uma mão excelente. Aldo batia qualquer um na sueca, a não ser que seu parceiro não o acompanhasse.

Foi até a porta, olhou para os dois lados lá fora, depois voltou e disse, com expansão:

“Mas o cara que tá comigo é fraco, muito fraco. Vamos perder logo. E, aí, por que não fazemos a próxima dupla? Como nos velhos tempos?”

Aceitei. Era sempre um prazer jogar com ele, ganhar com ele. A faca ia dilacerando os vegetais, reduzindo-os a miúdos pontos de cor.

“Vejo que Magda já te deu um tratamento”, ele disse, apontando para meu copo. “E você poderia passar a noite conosco…”

Pensei que sim, mas sem muito ânimo.

“A gente joga um colchão aqui na sala e você dorme, sem problema”, acrescentou.

Depois me puxou pelo braço até o pátio, e atravessamos o longo e ensolarado jardim.

À sombra de uma mangueira, três caras esperavam sentados em volta de uma mesa. Duas garotas, a fisionomia nada satisfeita, varejavam sobre eles. Estavam de biquíni, como se assim pudessem pressioná-los a largar o jogo e segui-las até o mar. Eram bonitas, bonitas até demais, e certamente não estavam disponíveis.

Meu irmão me apresentou à mesa. Seu patrão era um gordo bonachão, e estava ganhando ao mesmo tempo no jogo e nas pernas de uma das moscas, a que parecia mais jovem e cujas coxas ele acariciava a cada intervalo das cartas. Tinha uma barba longa e confusa, e cabelos desgrenhados, como os homens que trabalham ao ar livre, de sol a sol.

“Ele joga?”, perguntou, sem nos olhar, baralhando as cartas.

“E como!”, Aldo respondeu, sério.

Faltava a meu irmão um dente na arcada superior, do lado esquerdo, já chegando ao fundo, e esse vazio escuro lhe conferia um ar abusivo. Não é difícil encontrarmos dentes que faltam em homens que jogam, sobretudo sinuca e baralho em bares de subúrbio. Meu irmão me lembrava esses caras, que não inspiram nem confiança nem afeto. O taco da sinuca serve, não raro, para quebrar a cabeça dos outros. Gente de quem não gostam por não gostar, de graça, apenas por olhar e cismar.

“Na próxima?”, o gordo insistiu.

“Com certeza!”

Uma garota chegou sonolenta, arrastando atrás de si uma cadeira, e sentou do lado oposto, colada ao parceiro de Aldo. O cara a beijou numa das faces, rápido, antes por obrigação que por vontade. Ela não lhe retribuiu o beijo, preferindo se concentrar no vôo das cartas.

Estava menos nua que as outras, com uma grossa bermuda que lhe escondia metade das coxas. A camiseta azul-claro lhe dava um aspecto de garotinha. Nas veias de seu pescoço, por sob a transparência branca da pele, o sangue corria espesso, lânguido. Seus imensos olhos verdes observavam a mesa com um descaso quase sexual. Vacilavam sobre as cartas e, para o meu conforto, de esguelha, me procuravam. De minha parte, eu a observava intimidado, sem me deixar envolver. Abaixo de seu nariz pequeno e atraente, como uma arrebentação aos pés de um promontório, a boca vermelha chamava, os dentes mal se deixando ver no fio dos lábios entreabertos, de avidez e fastio. Supus que aquele jogo diário, todas as manhãs, a exauria. O sol lá fora, sobre o mar, e aqueles homens, ali…

“Esta é Juliana”, o gordo disse, um pouco tarde, mas talvez com alguma ironia, por ter percebido que eu a observava fascinado.

Trocamos um breve olhar, e foi tudo.

Ao fim da partida, Juliana partiu com o perdedor, e então me apossei da mesa, dei as cartas e me espalhei com o trunfo, todo meu e vermelho…

• • • ­

Entrei decidido no quarto, apesar dos meus passos temerosos. Ela já estava deitada no chão. Eram mais ou menos quatro horas da tarde, e dentro das casas, espalhados, os naipes dormiam. Juliana remanchara na cama durante toda a manhã e por isso agora não tinha sono, estava ali, disposta, nua. Seu parceiro naquele verão também apagara. E duplamente: de cansaço e de tanto ser motivo de piada e riso. Sem ele, e comigo, meu irmão ganhara todas as partidas restantes, até que o jogo parou para que se servisse o almoço e, bebida solta em meio a novas brincadeiras, todos ficaram meio lesados, o patrão de Aldo sobretudo, amparado pelas mulheres em direção ao sono.

Desde o jogo vi nos olhos de Juliana o convite. Vi a certeza, o desejo, a vontade de se arriscar naquele quarto escuro, nos fundos do terreno, perto dos chuveiros, para onde ela se dirigiu quando todos já adernavam. Desconfiei que Magda percebeu a trama, ou melhor, soube o que faríamos, quando, da cozinha, lavando os pratos, viu no silêncio hipnótico da tarde Juliana passar, seguida por mim. Além de nós, só ela não estava dormindo, porque tinha de arrumar a pia, deixar tudo limpo e em ordem para a volúpia da noite.

Quando terminei e saí para o pátio, Magda me chamou da porta da cozinha. Parecia preocupada, tensa, embora conservasse o equilíbrio, a jovialidade.

“Vá tomar um banho”, ordenou, com evidente irritação.

E, sem me olhar, afastou-se, desaparecendo no quarto em que meu irmão roncava. Voltou com uma toalha, que me jogou sobre o rosto.

“Verão maldito!”, praguejou.

Eu enxugava os cabelos de pé na cozinha, quando Juliana passou de volta à outra casa, ao seu cara, mau jogador e amante. Magda a observou pela estreita janela que emoldurava uma fina fatia do pátio.

“Acho bom você não ficar”, recomendou, ainda com os olhos em Juliana. “Converse logo com seu irmão e depois, trem!”

No fim da tarde, Aldo me chamou para um passeio pela orla marinha. Lus era pequena e quase que só havia praia, mar. Paramos no Salitre, um bar simples e bem pouco freqüentado a qualquer hora do dia ou da noite. Aldo pediu cerveja. Bebeu de uma vez, um gole atrás do outro, com prazer, enquanto eu o observava, quieto. No minuto seguinte soube que não havia trabalho algum para mim. Que minha presença ali era um equívoco.

“O pai tem uma garota. Por isso se ausenta tanto, e dorme fora, como você mesmo sabe…”

De início, fiquei em silêncio, à espera, e nem um pouco chocado. Uma garota… Qual a novidade? Aldo concordou, admitindo que muitos homens, e até muitas mulheres, se embalam, variam o ritmo…

“Só que tem outro problema, mais grave…”

Olhei com curiosidade alguns turistas que tinham acabado de entrar e ruidosamente mexiam nas cadeiras, arrastavam as mesas, se acomodavam. Brancos europeus ansiosos por fotos. Homens e mulheres que andavam em separado, de flerte com a paisagem e com as antigas construções coloniais, abandonadas ao acaso do vento e do sol.

“O pai tá doente. Tem poucos meses de vida. E a garota tem sido sua vida… Peça à mãe que viaje, vá pro Rio, fique lá com as tias e deixe o pai sozinho; que facilite as coisas, colabore…”

A mãe já não ia ao Rio havia muito tempo. E não ia porque mais cedo ou mais tarde as viagens param, deixam de seduzir. Ou então — o que não era de todo improvável — já sabia de tudo sobre o pai e, pacientemente, aguardava o inevitável.

“Não lhe parece algo meio esquisito?”, falei, depois de um tempo.

“Esquisito é, sem dúvida, como a vida”, encerrou ele, solene.

Chamei o garçom e pedi um copo.

A caminho da estação, Aldo passou o braço em meus ombros. Quando o encarei, ele estava com os olhos úmidos. Fez questão de ficar comigo na plataforma, à espera do trem, e só se afastou quando eu, da janela em movimento, mal conseguia mais avistá-lo.

Foi a última vez que nos vimos. Aldo morreu dois meses depois, e bem antes de nosso pai. Uma queda tranqüila, sem dor, quase uma retirada. Chegou em casa, de volta de uma excursão à praia, sentou-se na poltrona e pediu água. Quando Magda voltou com o copo, ele estava imóvel, o olhar vazio.

Dentro do trem, para a minha surpresa, encontrei Juliana, que, obviamente, me seguira. Tão logo me avistou, saiu do seu lugar e veio sentar comigo. Agarrou minha mão e levou aos lábios, num gesto mais carinhoso que qualquer outro executado naquela tarde. Nada falara antes, quando meu corpo desabara sobre o seu, e nada falou então, ao meu lado…

O trem seguia, balançando. Ela finalmente perguntou se eu não estava satisfeito, e fiquei sem saber o que responder. Era evidente que ignorava minha dor, tanto quanto eu ignorava a sua, qualquer que fosse. Tentei a razão e pensei que a perda de meu pai, em breve, poderia ser compensada com aquela garota, tão interessada em mim que deixava para trás os favores do sol. Uma garota que jamais imaginei seduzir. Uma garota que em geral a gente só espreita e admira, nem mesmo deseja, como se desejar fosse uma ofensa.

“Não, não está”, ela concluiu, rouca.

Lá fora a cidade ia ficando imprecisa, substituída pela paisagem rural, maculada aqui e ali pelas casas humildes, confinadas à espera, como homens agachados no pátio de uma prisão.

Não retruquei. Logo o sol morreria no horizonte, e manchas de luz e sombra encheriam o céu, a assinalar, aos poucos, a única verdade: que vamos morrer.

“Os caras jamais ficam satisfeitos”, lamentou.

Não, nem poderiam, pois o êxtase não passa de um instante, enquanto a vida vai nos apertando, apertando, sem piedade.

“Passagens!”, gritou o agente do trem, munido de seu alicate.

Mayrant Gallo

É autor de O inédito de Kafka (CosacNaify, 2003).

Rascunho