O senhor do lado esquerdo

Trecho do romance de Alberto Mussa
01/05/2011

O crime que vitimou o secretário da presidência da república, no governo Hermes da Fonseca, aconteceu no velho bairro imperial de São Cristóvão, na antiga rua do Imperador (atual avenida Pedro Segundo), onde se erguia a lendária mansão denominada Casa das Trocas.

A Casa das Trocas, que foi residência da marquesa de Santos, depois propriedade do barão de Mauá, foi adjudicada, em última instância, ao médico polaco Miroslav Zmuda — polêmico defensor do aborto e da esterilização feminina, que tomou posse dela em 1906.

Esse fabuloso palacete foi ainda sede do Ministério da Saúde e Museu do Quarto Centenário, abrigando, hoje, o Museu do Primeiro Reinado. No dia em que nossa história começa — sexta-feira, 13 de junho de 1913 — parecia funcionar nele a soberba clínica do polonês.

Disse que parecia funcionar. É exagero: funcionava, realmente, naquela casa, apenas no período da manhã, na ala esquerda do pavimento térreo, o consultório clínico do doutor Zmuda, que também dispunha de uma sala de partos, usada muito raramente. Todavia, oculto sob aquela fachada, existia ali também um magnífico prostíbulo — cujos mistérios se encerravam no andar superior.

O prostíbulo do doutor Zmuda foi, no gênero, o estabelecimento mais singular da história da cidade. Porque não era apenas um lugar onde homens alugavam prostitutas: mulheres também podiam fretar serviços masculinos. Aliás, eram permitidos todos os arranjos, todas as combinações, todas as permutas.

E nem sempre havia prostituição: iam à Casa amantes gratuitos, espontâneos (e o preço para acobertá-los estava até entre os mais altos). Também havia os que buscavam amores aleatórios, que estabeleciam relações com desconhecidos — e assim se expunham a intimidades coletivas, nas noites de orgia, em festas promovidas só para casais. E por isso, por essa última particularidade, é que ficou sendo — para esse grupo — a Casa das Trocas.

Freqüentada por gente importante, mantida com rigorosa discrição, protegida por autoridades e principalmente amada pelos seus fregueses, a clínica do doutor Zmuda não teria resistido — não fosse isso — ao tremendo e inesperado abalo que foi a morte do secretário presidencial, em suas dependências.

As testemunhas foram quase sempre convictas e afirmativas, e apontavam uma única suspeita — a prostituta conhecida como Fortunata.

Foi ela quem esteve no quarto com o secretário. Era uma das “enfermeiras” — como eram chamadas, na Casa, as meretrizes fixas, que dispunham de uma carteira de clientes. Seus movimentos, no dia, foram normais: atendeu a dois senhores antes da vítima; e — quando recebeu o secretário, às quatro horas — foi logo acomodá-lo num dos quartos, de onde desceu, minutos depois, para pegar taças e vinho tinto.

Ninguém estranhou quando, perto da Ave-Maria, Fortunata apareceu, cheia de pressa, no salão oval do andar superior, onde normalmente descansavam as enfermeiras. Disse estar muito atrasada, chegando a recusar, com jeito malcriado, um cálice de licor de caju — antes de sair, pela porta da frente.

Só duas horas mais tarde, quando consideraram excessivo o descanso do secretário, foram bater no quarto. A enfermeira que descobriu o crime, felizmente, não gritou.

O corpo tinha punhos e tornozelos fortemente amarrados às grades de ferro da cama, de uma maneira que — segundo a perícia — impediria a vítima de se libertar sozinha. O pescoço exibia ainda a marca profunda dos dedos do assassino. O laudo médico-legal (que permaneceu secreto) confirmaria a esganadura como causa mortis — embora a força empregada ultrapassasse, comumente, a de uma mulher.

Aparentemente, nenhum objeto de valor faltava: estavam lá o anel de ouro com seu vistoso rubi, o relógio de bolso e sua longa corrente, feitos do mesmo metal, e o camafeu de marfim incrustado no prendedor da gravata, além de onze mil-réis em dinheiro — o que logo eliminou a hipótese de latrocínio.

Uma circunstância constrangeu as pessoas: o secretário da presidência jazia amordaçado e com os olhos vendados por uma tira grossa de pano preto. E um chicote de cabo de prata estava caído no chão, perto da cama — o que explicava as fundas lacerações nas pernas e na área do púbis.

Alberto Mussa

Nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. É autor do romance O senhor do lado esquerdo, vencedor do Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional e eleito pela Academia Brasileira de Letras o melhor livro de ficção publicado em 2011.

Rascunho