A janela estava aberta e escutavam-se saltitar as primeiras folhas caídas polo caminho. Transcorrera um ano. O armário lembrava a roupa que ele arrumava devagar desocupando a mala em cima da cama. Arrumava também os seus pensamentos e tentava lembrar. Os vincos da madeira, os seus desenhos, eram como o sorriso antigo que reconhecemos no rosto da mãe. O mesmo brilho nos olhos, a mesma elipse nos lábios, mas a pele gasta e os cabelos. A madeira é a mesma, mas o seu tacto deixa nas mãos o tempo transcorrido. Transcorrera um ano. Suficiente para que o quarto de sempre quase se deformara na memória, e as paredes foram agora menos brancas, e as nódoas fossem muito mais velhas. Um ano. Tentava arrumar os seus pensamentos ao tempo que recolhia a roupa da mala. Correra muitos quilómetros, atravessara um largo mar. Conhecera rostos, vozes, acentos, mãos, fatos, sapatos, gravatas, ideias, praias, aulas, gabinetes, recepções, poltronas, escritórios, alunos, professores, índios, computadores, vinhos, corredores, montanhas, céus, carros, aviões, comboios, filmes, livros, e todos estavam agora alinhados na sua memória, a traçar uma narração que, na cozinha, preparando o jantar, esperava a sua mãe. Ele era o filho, o herói. Ela a mãe, a espera. Acariciou a madeira do armário, como um saúdo, e percebeu o seu cansaço. Terminou de esvaziar a mala e fechou a porta. O cheiro da cozinha, cebola e pimentos a frigir, fizeram com que o tempo encolhera de pronto, como se um ano coubesse apenas num domingo, e a sua viagem tivesse acontecido num fim de semana qualquer. Nada em realidade se tinha passado. No espelho ele era o de sempre. O filho. Diante das panelas também ela era a de sempre. A mãe. Mas juntos os dois na mesma casa tinham criado um olhar diferente para se verem e também um silêncio novo para se escutarem. As mãos é que eram as de sempre, embora as dela fossem um bocado mais fracas, e as dele um bocado mais grandes e com um jeito mais demorado no esvoaçar.
Desceu para a cozinha arrumando ainda os pensamentos, preocupado com a arquitectura da sua narração, com a ordem dos factos para contar, com a ênfase que haviam de ter as suas palavras para que ela soubera da sua vida, para que estivera contenta do seu filho, para não aparentar nada mais do que em realidade tinha sido. Um ano no estrangeiro, tão longe. Tão longe da cozinha. A mesa estava disposta, jantaram os dois. Falaram, o inverno fora frio e chovera muito. Doeram-lhe os joelhos de tanta humidade, a verdade é que ia velha. Mas depois o verão fora seco demais e a figueira estava a dar uns figos cativos que dava o riso de olhar para eles. E então, como era o mar de grande? E ele contou. E teve que contar como era o mar de grande, o tempo que levava atravessar o mar. Falou de pessoas importantes, de lugares longínquos, de aviões e de publicações, de conferências, de público e aulas, falou de jornais e até de embaixadas, falou de montanhas de onde se via o mundo pequenino, de praias onde o mar era verde e quente, de mãos que estreitara, de uma menina morena com sandálias brancas que queria casar com ele depois de ler o seu livro, da noite que ceara vestido de etiqueta, do cantar que aprendera a noite que dormiu na selva… falou. Falou diante dos olhos da mãe que escutava o seu filho como que reza. Falou e a tarde se foi fazendo pequena até caber na cozinha, e a cozinha ficou apenas com o olhar dela a brilhar na sombra que já entrava pela janela. E então ficou calado, com um copo de água entre os lábios sem mais nada que poder contar. E ela, ainda com os olhos sorrindo desde mui longe, disse de pronto: e tu, meu filho, lembras aquele forte de soldados que te trouxéramos pelo Natal? Que feliz foras aquele dia!
E assim, quase sem luz, as mãos dela eram as mesmas porque a face da sua criança ainda colhia inteira no oco da sua carícia.