O rato na balança

Conto de Deonísio da Silva
01/01/2004

A luita foi no pátio do Grupo Escolar. Talvez eu o vencesse, mas Carlinhos, meu colega de classe, era muito esperto e começou a bater em mim com um fio elétrico, deixando minhas pernas cheias de manchas vermelhas. Doeu muito. Mas doeu ainda mais ser vaiado por seus comparsas. Naquele dia todos os meus poucos amigos haviam faltado à aula.

Carlinhos jogava no time que dali a alguns dias enfrentaria o nosso e não perderia por esperar. Eu era meia-direita, meu modelo era Didi. Sabia que o príncipe etíope era uma elegância só. E procurava imitá-lo em campo. Mas eu só sabia dele pelo rádio. Jamais vira uma única jogada de Didi.

Na semana seguinte, meninas e meninos foram à beira do gramado para a sensacional peleja. O nosso goleiro era Semenrique, enorme e gordo e, coisa surpreendente, com uma agilidade extraordinária. Seu modelo era Gilmar. “Agarra, Gilmaaaaaaaar!”, ele gritava quando pegava qualquer bola, por mais fraca que fosse.

Naquele dia, porém, não sei qual foi o espírito de porco que amarrou dois pés de capim à direita de onde ficava o goleiro. A jogada começou assim: tomei a bola de Arturzinho e passei a Moacir. Este começou a rir do tombo que Cacildo tomou quando correu em sua direção. Enquanto ele ria, Carlinhos tomou-lhe a bola e disparou no rumo do gol. O campo era pequeno, tudo foi muito rápido. O chute saiu fraco, mas Semenrique, o nosso goleiro, tropeçou no capim amarrado e caiu com a cara na grama, de uma forma ridícula. E ainda por cima começou a chorar.

A juíza era uma das professoras, a dona Estela, a primeira a usar calça comprida naquela cidade. Apitava as partidas vestindo eslaque. Não procurem no dicionário. Era slack, que em inglês significa frouxo. Designava as primeiras calças compridas que as mulheres brasileiras mais moderninhas começavam a usar, tão logo terminara a segunda guerra mundial.

Corremos para dona Estela, o nosso Armando Marques de saias. Linda aquela mestra! Eu tinha paixão por minhas professoras, mas a minha preferida era outra, que tinha um cheirinho bom e me alfabetizara. Seria fiel a ela a vida inteira porque os prazeres que a escrita me deu, sem exagero posso dizer que poucas mulheres me deram ao longo da vida. Quem ama de verdade, antes mira e admira, como se sabe. Antes e depois. Se não tivesse misturado leituras e prazeres, não teria aprendido a amar nem aquelas de minha infância profunda, quando nasciam em mim os mais puros dos amores, sem sexo, com toques e carinhos, nem todas as outras que vieram depois, com sexo, sem toques nem carinhos, e com sexo, toques, carinhos e outras essências que descobri mais tarde e que apenas umas poucas tiveram. Uma delas ficou minha namorada para sempre. Para sempre, eu digo, é até agora. Porque também na vida, como no futebol, uma jogada de uma fração de segundo pode mudar uma partida inteira.

Voltemos a dona Estela. Passou a mão em meu rosto suado, esfregou meus cabelos e disse: “aprenda uma coisa, menino, você que não é tão burro: futebol tem regras e o juiz não pode apitar falta de capim amarrado, entendeu? O que não é proibido, pode fazer! E não é proibido amarrar o capim que o goleiro pisa!”

Deveria ser por razões análogas que ela namorava o farmacêutico, um homem casado. No regulamento do Grupo Escolar não havia nenhuma regra que proibisse dona Estela de namorar farmacêuticos ou homens casados, nem que os dois ofícios fossem combinados.

E para o segundo gol, qual foi a desculpa de Semenrique? Um frango daqueles, a bola veio rolando, rolando, rolando e passou entre as pernas gordas de nosso goleiro. Ele disse: “eu ia pegar ela, mas ni que eu vi, puft, ela passou redondinha, vai ser difícil virar esse jogo!”

Virar? Tomamos mais dois logo no início do segundo tempo. Fiquei distraído com aquele carinho de dona Estela e passei a jogar perto do juiz, se é que me entendem, porque a blusa saiu para fora do eslaque e eu passei o tempo todo de olho na barriguinha e nas costas de dona Estela. Jamais pensara que professora também tinha umbigo!

No segundo tempo fiquei mais atento ainda a outros movimentos: o dos seios de dona Estela, balouçando entre os meninos.

Mais tarde vim a compreender todos os encantos daquela professora, sobretudo os ocultos, porque o farmacêutico separou-se da mulher, matou um homem que mexeu com sua amada, saiu dali e foi viver no costão, plantando banana, milho, feijão, uva. E dona Estela amarrava um lenço na cabeça e sem perder a elegância ia para a roça. Tiveram dois filhos. Nos fins de semana, os filhos do outro casamento do farmacêutico iam visitá-los, a criançada brincava feliz que nossa! O único que os amaldiçoava era o padre, mas este amaldiçoava todo mundo que não concordasse com ele. No começo, ele tinha grande autoridade, mas depois que o povo descobriu que ele se encontrava às escondidas com a mulher do açougueiro atrás do altar, pediram para que o Bispo o transferisse dali e mandasse um padre velho, porque padre novo dava muito problema. “Que problema?”, ousou perguntar um dia uma senhora desavisada. “Os problemas da carne”, respondera uma senhora do apostolado da oração. Na época, muitos de nós pensamos em roubo de peso no açougue, porque o açougueiro era muito amigo do padre e dava carne de graça para ele todos os dias. Sempre o melhor pedaço. Também era o melhor pedaço que sua esposa oferecia ao padre nas tardes vazias daquela cidade tão pequena e, por isso mesmo, tão cheia de fofocas.

Dona Estela chegou-se perto de mim, não precisou se esforçar muito, eu estivera toda a partida ali por perto dela, e me disse com aquela sua voz de cetim, seus grandes olhos negros: “e tu? Não vais fazer o teu gol?” “Tenho medo do Carlinhos”, eu disse, “ele é muito bruto e semana passada me deu uma surra com um fio elétrico”. “Mas aqui no campo é diferente, se ele te bater ou derrubar, é fau. Naquele tempo não se dizia falta, se dizia fau. O inglês ainda dominava o futebol. E mesmo Semenrique, quando escolhia a posição, não dizia goleiro; berrava: “o quíper sou eu!”

Recebi a bola de Moacir. Não pude dominar direito, então toquei ao lado de um zagueiro deles, corri pelo outro lado, tomei a bola adiante, esse drible era chamado de meia lua, o zagueiro escorregou, todos riram muito e gritaram, segui em disparada em direção ao gol deles, eu queria fazer o meu de qualquer jeito, o Moacir apareceu de repente ao meu lado, pedindo a bola, livre dentro da grande área, mas eu não passei a bola para ele e — vejam só! — quem aparece na minha frente, o último menino antes do goleiro? Justamente o Carlinhos! Não sei quanto durou aquele pequeno momento que eu não sabia ainda medir na vida, frações de segundo, mas eu era péssimo em frações na aula, aqueles números em cima e embaixo de travessões me confundiam, não eram como as letras, que a gente só precisava cuidar bem delas na caligrafia, num caderno de pautas, que trazia dois carreirinhos, um para cada tipo de letra. Só sei que eu fiz que ia e ouvi o Carlinhos ameaçar “tu faz que vai, mas não vai e eu te pego pelo outro lado”. Mas eu fui pelo mesmo lado porque num daqueles minúsculos e exatos momentos me lembrei do Garrincha, que ia para aonde ameaçava ir, pela direita, por onde sempre saía, fiz o mesmo e chutei de pé esquerdo, mesmo não sendo canhoto, porque não dava tempo de trocar. A bola saiu mascada, mas passou pelo Carlinhos, que ainda teve tempo de se virar, passou pelo goleiro deles e entrou enviezada e torta lá no cantinho. 4 x 1 para eles, mas o meu eu fiz. Corri para dona Estela e nunca mais me esqueci daquele abraço.

A psicóloga disse que nasceu aí minha paixão por mulheres mais velhas do que eu. Não posso vê-las, sinto um aperto no coração, vontade de celebrar alguma coisa. Na última vez que fiz isso na rua com uma desconhecida, eu disse: “posso abraçar a senhora? É sem maldade!” “Mas aqui?”, ela disse, “aqui no meio da rua?” “Onde a senhora quiser”, eu disse. Ela falou de soslaio: “você disse que era sem maldade!” “Mas é sem maldade”, eu disse, “pode ser ali naquele cantinho, perto do Banco do Brasil, em frente ao correio”.

Entardecia. Agarrei aquela mulher de blusa branca e saia preta, de cabelos molhados, ela também me abraçou e disse: “eu não entendo mais os homens”. Eu disse: “eu também, eu não entendo mais o mundo, como ele é diferente do que eu imaginava em minha infância!”. “Sua infância?”, a mulher perguntou. “Sim”, eu disse, “sim, sim, sim”, eu repeti bem agarradinho, “sim, dona Estela, eu jamais esqueci da senhora!”

Por que fui dizer isso? Estraguei tudo, como homem é bobo, mulher gosta de segredo, é por isso que todas escondem a idade, para terem pelo menos um segredo, e eu só confio em mulher que esconde a idade, porque é capaz de guardar uma confidência. Ela me empurrou, soltou-se daquele abraço, porque abraçado a gente só vê as costas e a bunda da pessoa, e ela queria me olhar nos olhos, e me disse com seus dois grandes olhos negros molhados daquela luz eterna que a alumiaria a vida inteira: “é você?” Eu falei: “sou eu, a vida continua de 4 x 1 para eles, mas o meu eu fiz, o meu eu venho fazendo sempre que posso!”

Dona Estela saiu caminhando pela calçada, depois que me deu seu telefone. Os mesmos saltos, o mesmo taque-taque nas pedras. Apesar de eu preferir a música dos clássicos para escrever, me vieram à mente esses versos: “Garrincha, Didi, Vavá/ na linha são os primeiros/ com Zagalo e Pelé/ atacantes pioneiros”.

Jamais tive oportunidade de dizer a Garrincha, a Didi e a Vavá que eles me ajudaram a ser escritor, a ser professor, a estudar, a lutar, a virar partidas, ou ao menos a fazer o nosso! Eu torcia para o Botafogo. A linha de nosso time era a da seleção brasileira: Garrincha, Didi, Quarentinha, Amarildo e Zagalo. Carlinhos torcia para o Santos. A linha do Santos: Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Carlinhos não era fraco, não!

Mas a memória, que em mim brota todos os dias, às vezes mistura as datas. Pois em 1962 foi quase a mesma coisa. Em 1970, de novo. Demos um baile no Chile, repetindo o glorioso feito da Suécia, e depois também no México, devem estar fazendo Comissões Parlamentares de Inquérito até hoje na Suécia, na Tchecoslováquia, na Itália, no Japão e na Coréia para levantar os verdadeiros culpados daqueles cinco países que entregaram o jogo para a gente: 5 x 2 na partida final na Suécia, contra os donos da casa; 3 x 1 em cima da Tchecoslováquia; 4 a 1 sobre os italianos em 1970. Nos EUA, quando ficamos tetracampeões, não teve a mesma mágica porque já andávamos muito exigentes num tempo em que não podíamos exigir tanto, e também porque empatamos com a Itália, decidindo o título nos pênaltis. Ou porque éramos outros, não sei ao certo. E em 2002, na Ásia, vencemos os alemães na final e todos passaram a dizer: todo mundo tenta, mas só o Brasil é penta.

E sabem o que dona Estela me disse a última vez que nos encontramos? Que Carlinhos é cartola! “Ele era boiola”, eu disse, “ele e o Semenrique, todos sabiam”. “O Semenrique é cabeleireiro numa cidade aqui pertinho, eu já arrumei meu cabelo lá”. “Ele deve ser um grande cabeleireiro”, eu disse, “se bem que com a senhora é fácil deixar seu cabelo bonito, porque a pessoa inteira é”. “Pára com isso”, ela me disse, “você disse que era somente um abraço”. “Agarra, Gilmaaaaaaar!”, eu disse, mas dona Estela ponderou: “cuidado, o outro ficou boneca”. “Não ficou quem sempre foi”, eu disse.

E tudo isso escrevo para dizer que eu nasci em 1958. Dez anos depois de ter vindo ao mundo.

Mas dona Estela, que veio me esperar em outra idade, quando nós dois também já éramos outros, sendo os mesmos, que me tem dito e feito coisas prodigiosas, depois de nosso célebre reencontro, tem outra explicação para tudo. “Como é mesmo o nome daquele autor que você citou outro dia, dizendo que a gente nunca sai da terra?” “São João”, eu disse. “Você lembra a frase inteira? Aliás, do que você esquece?” “O que é da terra, fala da terra, volta para a terra, não sai da terra”, eu disse. “E o autor ainda ficou santo!”, me disse ela. “Santo não é aquele que foi para o céu?” “Pode ser que o céu seja na terra”, eu disse, “pois quando amamos de verdade, é nele que parecemos estar, pelo menos é assim que nos sentimos, não é?”, perguntei afirmando. “Nada disso. Você, naquele dia em que nos abraçamos, lembra como oscilamos de leve, sem que os outros ao redor percebessem? Você balançava meu corpo devagarinho, balançava o seu, fazendo balançar tudo ao meu redor, eu deveria saber, mas quando fui sua professora jamais liguei uma coisa com outra, você é Libra, o outro nome de Balança, faz balanço de sua vida a vida inteira e um dia vai me abandonar, embora me diga o horóscopo que Libra é fiel. Fiel ao modo dos nascidos sob esse signo. Voltam sempre ao mesmo porto de onde partiram, mas o que mais sabem fazer é navegar mar afora, navegação de cabotagem, sem grandes aventuras. E no chinês você é Rato. Rato da Terra. Ai, meu Deus, estou perdida! E um dia vou te destruir, está escrito nas estrelas do zodíaco, previsto por antigos sábios da China e da Babilônia, que nós dois não combinamos”.

Falou tudo de um jato só. Era ao entardecer, a hora mais agradável do dia, pássaros gorjeavam na varanda onde estávamos, um chinchila nos contemplava silencioso. E aquela não era a primeira vez que ela se feria ao falar de nós.

“À semelhança do morcego, eu também sou mamífero. Mamífero é assim, precisa de carinho, ainda mais sendo bicho voador, de hábitos noturnos”, disse eu. “Estela, minha estrela, posso dizer com segurança, como fez Maria quando sua prima Isabel a visitou, a senhora faz em mim maravilhas!”

Minha amada era muito querida e demonstrava isso com shows de delicadezas, a começar pela atenção que prestava às palavras que eu dizia. “Como todo homem diante das mulheres, qualquer que seja ela, mas muito pior se for a sua amada, o morcego não vê nada na noite escura, pois é quase cego. Como se salva, então? Faz como São João da Cruz, que se salvava rezando? De jeito nenhum. Morcego, palavra que veio do latim e significa rato cego, emite ondas para desviar-se de obstáculos durante o vôo. Posso dizer, então, que ele se desvia da maldade, escutando seus inimigos.”

“Morcego? Escutando? Você, o que mais faz é falar como um papagaio! E eu sou seu obstáculo?”, me perguntou Estela, sorrindo com verve, como sempre.

“Sim, você é meu grande obstáculo”, eu disse, “a principal barreira que tenho na vida, é o baluarte que me impede que eu abrace o abismo e mergulhe nas trevas infinitas de onde todos viemos, reintegrando-me à divindade cujos desígnios insondáveis me trouxeram ao mundo”.

“Afinal, você é rato, morcego ou deus?” “Todos somos deuses”, eu disse, “mas só quando queremos, pois todos os dias fazemos tudo para negar a transcendência que nos foi dada como o maior presente desta vida”.

Deonísio da Silva

É escritor. Autor de Avante, soldados pra trás, entre outros

Rascunho