O que se desloca

Conto de João Filho
João Filho, autor de “Um sol de bolso”
01/11/2005

Para Nelson Provazi

Por mais que se mova a irrealidade é estática. isso pode acontecer dentro do ônibus, no avança-pára dum tráfego intenso na boca da noite. dá a impressão de ser um estado aberto do mundo, mas é bolha que sonha que é uma bolha que sonha. inegavelmente sangra, se descuidada fede, qual bolha não? o ar-condicionado o irrita pelo contraste com o calor litorâneo da avenida, ele salta na muvuca do ponto com a bagagem que inconfortável ocupa-lhe as duas mãos, anda em direção à passarela e, esbarrando no contra-fluxo, começa a atravessá-la. ele pensa enquanto passa nas caras que o ligeiro foco da passagem fixa, e tem no mesmo instante nojo, raiva, dó, fé, fascínio e autocomiseração.

quantas ficções que se cruzam num desdém só intervalado pelos olhares de cobiça nas cadeiras, que nem deu pra ver se eram assim tão boas. nalguns espaços da passarela mendigos cuiam seus níqueis, pastores e ambulantes apregoam, e o panfletarismo do capital. quantas ficções suspensas sobre a dupla rodovia. o vento largo no inferno sonoro, o peso da correnteza na formigância, estremece a estrutura da passarela, e esse, um dos que vão no contrafluxo, de tênis e bermuda, pressente mas não mira, evitando um fatal desequilíbrio, a maré de autos sob.

no exercício da travessia se sente vivo, não que fosse um sedentário ou que sua vida tenha sido um aburguesamento enfadonho. muito menos lhe roía a nóia dos desbravadores, que são, de resto, homens que em vez de escalarem pra dentro, o fazem pra fora. tampouco a adrenalina calculada dos perigos de fim de semana. seu cismar era músculo e suor sinceramente laborados, que naquele momento buscava na cara dos passantes não bússola ou âncora, mas a irmandade pela insignificância. como em todo sistema que sonha a unidade o seu era falho, e não só por inconsistência, como por desconsolo. mas ultimamente o intuito era só esse — atravessar.

não há como preencher mais nada, sua bagagem, como vimos, lhe ocupa as mãos. das hipóteses comparativas, graceja, sua idade vai a meio, que corresponde à metade da passarela. têm flashes — e se desabássemos? os matutinos, talvez até estrangeiros, noticiassem. apreensão imaginada. ele, chamemo-lo Terçol, sempre inflamado, é um centro nervoso que se desloca porque isso está em sua natureza. indo, ele procura limpar-se da vaziez que gera nulidade, a pseudopressa desrumada, o desfuturo, conforto que gera ânsia que gera tédio que gera o cansaço, não físico, de se saber cansaço. sua travessia é um s.o.s? bem, pensa profundamente, uma solar manhã de domingo desperta algumas linhas da infância que valem o universo; o translúcido desse minuto que respira em tudo. são nesgas que seu espírito e suas pernas trabalham enquanto atravessa. com toda frieza, falha, de sua lógica, ele sabe que é inegável: aquilo que apenas suspeitamos, mas é imprescindível para estarmos aqui. todo negativismo bilolado em decadência é o que ele não quer mais, nem a náusea conceitual e interesseira, nem o enfado do seu século, nem a gula pelo número, nem as filos que antecipam, planejam e executam o terror. já próximo ao desembocar nos camelôs, ele espinha-se num calafrio, pois pensa, a guerra é o que somos! o gelar-se instantâneo quase o desequilibra e ele pára, respira, descansa as bagagens no chão, pergunta as horas prum passante, certifica-se de que está atrasado, e retoma a marcha.

mistérios que o espírito incerto de Terçol rascunha ao cruzar os táxis e entrar na rodoviária lotada, rumar até o embarque e entregar a bagagem pra quem o espera.

João Filho

Nasceu em 1975, em Bom Jesus da Lapa (BA). Participou de antologias de contos na Argentina, no Peru e na Alemanha. Seu livro de poesia A dimensão necessária ganhou o Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional, em 2015. Publicou, entre outros, Dicionário amoroso de Salvador (crônicas, 2014) e Um sol de bolso (poesia, 2020).

Rascunho