O que não se pode dizer não deve ser dito

Iracema é guaca, como o chá de guaco dito no feminino, Witt me assegura
01/02/2001

Iracema é guaca, como o chá de guaco dito no feminino, Witt me assegura. É guaca porque, quando sorri, umas pregas muito franzidas se acumulam nas bordas de suas orelhas, formando um fole que, ao se movimentar, cria a impressão de que ela respira pelos ouvidos. Já Cirley é plúmbea, diz Witt, não porque seja soturna, ou porque estampe a cor do chumbo, mas por causa daquelas veias salientes que, cada vez que ela se despe, se estufam em volta de seus mamilos, causando a impressão de que vão se rasgar. Witt afirma ainda que Vanda é lucilante, não porque ostente algum brilho em particular (ao contrário, é uma mulher bastante apagada, medíocre), e sim, e só porque, ao tossir, um pomo de adão pequenino, mas viril, emerge em sua garganta e, além disso, ela tem mesmo uma voz bem grossa.

Coisas de Witt, que jamais se cansa de classificar o mundo que o rodeia. Contaram-me que ele, quando dorme, ostenta uma face meio azulada e, nos fins de tarde, costuma sentir coceiras na altura dos rins. Dizem também que Witt é dado a metamorfoses, como os batráquios, e que, em conseqüência, nem sempre diz a mesma coisa, e às vezes diz exatamente o contrário do que acaba de dizer. Mas ele desmente. Além do que, argumenta, homens não estão incluídos em minha Arte das Classificações — e felizmente sou um homem. Homens não me interessam, logo não se classificam, não se distribuem em categorias, não pertencem a nada, apenas a si. Somos mesmo uns pobres diabos, ainda comenta. Se o diabo existe, é o homem.

Esforço-me para contestar que não é porque os homens não o comovem, ou mesmo porque não prestam, que deveríamos estar isentos de marcas, ou excluídos da teoria que ele desenvolve com tanto pudor. Você pode não se interessar por nós, pobres homens, mas isso não significa que não pertencemos a certos conjuntos, que não compartilhamos certa ordenação, que não somos parte de certos tipos psicológicos.

Witt nega e, como é castrado, se sente protegido dessas questões de gênero. Talvez prefira as mulheres só porque, no fundo, se sinta uma mulher — mas é musculoso, tem o porte largo e pratica o basquete. Jamais sentiu-se tentado a fazer um uso musical de sua voz de menino. Freqüenta, como qualquer homem, as barbearias, os reservados masculinos e urina sempre de pé. Mas não se intimida em lembrar que, aos 11 anos, foi capado pelo tio, o Conde de Besourinho, por motivos que misturam a medicina oriental com a religião antiga. Aquele calhorda fez de mim uma cobaia, me disse, no único dia em que tocamos no assunto proibido. Tinha uma tese, que o consolava: a de que meninos castrados desenvolvem uma inteligência incomum. O conde era médico, cirurgião, e ele mesmo me castrou, relembra. Agora que sou um operado, nada mais me resta senão fazer o melhor uso do que não tenho, me diz ainda.

Venho aqui expor esse segredo, diante de vocês que me ouvem perplexos, porque não me resta alternativa, uma vez que Witt ganhou minha guarda judicial. Eu não existo mais como cidadão, para todos os efeitos sou um satélite das vontades de Witt; só me resta, então, aceitar o papel de divulgador de suas idéias. Isso não quer dizer, contudo, que eu delas compartilhe; também não quer dizer o contrário, que as recuse; nada quer dizer, além do que digo: — Essas são as idéias de Witt, e as tomem como quiserem, façam delas o que bem desejarem, pouco me importa. Quanto a mim, isso não me concerne. Não digo que são boas idéias, não digo que são maléficas; digo apenas que sou um prisioneiro de Witt e, se divulgo sua Arte da Classificação, é para que saibam, e constatem, que sou seu prisioneiro. Para que vejam que já não sou dono de mim.

Vejo vocês aqui sentados, na platéia do Auditório Wong, metidos em seus uniformes de acadêmicos, e me pergunto: — De que serve todo esse teatro? Nenhuma resposta me ocorre, nada que preste, e nem sei dizer, mesmo, se essa pergunta, que faço por não ter coisa melhor a dizer, serve de alguma coisa, tem alguma utilidade. Como controlar o que se passa na mente de cada um de vocês? Será que vocês mesmos, cada um de vocês, sabe o que se passa dentro de si? É claro que não! E, só porque não suportam a si mesmos, distraem-se com as idéias de Witt, que não passam de tampões. Idéias intraduzíveis, coisas que não se podem dizer plenamente, mas que eu, porque estou preso a ele e além disso sofro de melancolia, insisto em difundir.

Como não existem respostas para essas perguntas, como o mundo de hoje oferece uma infinidade de perguntas para resposta alguma, só me resta a Arte das Classificações. São correlações inúteis, aviso desde já, conjuntos que não apresentam qualquer utilidade prática, não servem para nada, não se iludam. Talvez por isso Witt a elas se apegue com tanto ardor: porque elas o distraem e, sobretudo, porque elas não podem traí-lo, porque são inócuas. Digo de outra forma: porque ele não pode ser desmentido. E Witt, não sei se disse, é um sujeito bem deprimido, desses que transferem o medo para o corpo, e do corpo para as idéias, e das idéias para os outros, num despejar contínuo, como um chafariz.

Eu dizia que, pela Arte da Classificação, Iracema é guaca. De que serve, contudo, essa afirmação? Significa de fato alguma coisa? Vejo pela inquietação desse rapaz louro que está bem na segunda fila, contudo, que mesmo assim, inúteis, avessas a qualquer demonstração, as teses de Witt causam grande interesse. Vocês todos parecem vivamente interessados no que digo, como se, a qualquer momento, isso de repente viesse a fazer um sentido. Não fará sentido algum, eu já os adverti, e agora repito; mas de que servem minhas advertências, se vocês preferem confiar em mim, só porque sou um conferencista? Será que isso, ser um conferencista, me confere tanto poder?

Onde você quer chegar com isso? — uma moça, enfim alguém de coragem, me pergunta. Pois é, mesmo que quisesse chegar, não chegaria. Essa é a essência da Arte das Classificações: estamos completamente isolados, cada um de nós é um ser diferente e inatingível, não há natureza humana, nem mesmo pontos em comum entre os homens. Nada. Witt trabalha em suas classificações não com o objetivo de descrever o mundo, de ordená-lo, de lhe dar um sentido; mas, sim, de mostrar que ele não pode ser descrito. Que toda classificação, todo conjunto, toda norma, tudo é só um engano — como uma maquiagem que se põe sobre o rosto de um cadáver para lhe emprestar um falso resto de vida. Witt classifica o mundo, eu agora sei, para demonstrar a inutilidade do que faz.

Por isso eu digo, meus rapazes, mocinhas crédulas, que Witt é um gênio: ao falar, ele demonstra a fraqueza das palavras; ao teorizar, nos faz ver a falta de préstimo das teorias; ao se esforçar para comunicar uma tese, demonstra a impossibilidade de qualquer comunicação. Por isso eu o admiro: só porque ele se esforça, com a única intenção de exibir a inutilidade do esforço. Por isso não lamento que tenha me tornado seu prisioneiro; creio até que isso deve ser um motivo de orgulho. Para isso vivemos, Witt diz: para uma agitação que só tem um sentido — o fim da própria agitação. Bonecos de corda, submersos na inconsciência, agitando e agitando para não confrontar com a morte. É o que Witt sempre repete, mesmo quando está tranqüilo e até me deixa beijar sua testa, ou lamber a sola de seus pés. Sei que isso é repulsivo, mas os prazeres não se submetem a regras, a padrões. Não há lei, Witt diz, mas só a fantasia da lei. A única constante é a frouxidão.

E só por esse motivo aqui estou, em segredo, e faço essa palestra a portas fechadas, só para alguns escolhidos: Witt não pode saber que tentei dizer o que não pode ser dito porque, do contrário, jamais voltará a me dirigir a palavra. Não permitirá, nem mesmo, que eu me deite ao pé de sua cama, aninhado no capacho de lã, ou que o ajude a se banhar. Não me dominará mais, ao contrário, me condenará à liberdade. Talvez até venha a construir, a partir de meu exemplo, meu mau exemplo, uma classificação que englobe também os homens. Mas será só para me punir, o que é inútil já que, longe dele, banido de sua coleira, não serei mesmo ninguém. Vocês agora já sabem: Iracema é guaca. Façam com isso o que puderem fazer de melhor. Mas me sinto obrigado a adverti-los de que, seja o que for que vierem a fazer, de nada servirá.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho