O que deu para fazer em matéria de história de amor

Trecho do do romance inédito de Elvira Vigna,
Ilustração: Marco Jacobsen
01/11/2009

Chega um cheiro de cigarro da mesa ao lado, que eu aspiro, ávida. Não fumo, nunca fumei, se me perguntarem, não gosto de cigarro, não perguntam, já sabem. No entanto, gosto.

Preciso pôr um pouco de suspense aqui. Se houver, mesmo que só uma aparência de história de suspense, ficará mais fácil porque aí, depois de tudo acabado, será maior a sensação de dever cumprido. Suspense resolvido, vida idem. Mas a palavra principal não é “suspense” e sim “história”, é este o segredo. Até mesmo porque suspense não vai ter. Digo logo de cara, matou. É o que eu acho, sempre achei. Mas digo mais, não é isso o importante. O importante é haver uma história que, por ser uma história, parecerá sempre inventada. E não o é. Ou quase não. E parecerá inventada por mais que eu me esforce em dizer que não é, e não me esforço.

Há uma vantagem nas histórias, vantagem esta da qual não me beneficiarei aqui, justamente por ser esta do jeito que é, quase não. Ponto final. Vida real não tem ponto final, nem mesmo este, a que me imporei lá adiante, ao acabar de escrevê-la. Nem mesmo então. Pois vou levantar, quando terminar. Vou largar o teclado, levantar, me espreguiçar e enfrentar o pior: a dissolução daquilo que seria uma história, ponto final incluído, em um cotidiano sem fim nem forma. Há uma outra vantagem, e desta me aproveito: histórias são abordadas, hoje, com meio ouvido. Todos meio ouvintes que mal iniciam a escuta do relato já pensam em outra coisa, imersos na condescendência displicente de quem senta em uma cadeira e se prepara para umas pequenas férias da sua vida (que é sem fim nem forma, como a minha). E que faz isso, esta meia-entrada em uma narrativa sobre vidas alheias, para tentar recuperá-la, a sua própria vida, nestas vidas dos outros. E faz isso sem acreditar muito que vá de fato funcionar, mesmo em se tratando de vida com certificado de simplicidade. Pois apresentada frase depois de frase, se não linear, pelo menos seqüencial, tal vida será necessariamente mais simples. Mesmo esta. Nem um pouco simples.

E eu preciso desse meio ouvido. E não do ouvido inteiro, pois sequer sei como começar.

Década de 60 me parece bom, década de 60 explica muita coisa, os petrodólares, a Revolução, a trepada no chuveiro enquanto as pessoas tomavam cerveja na sala e diziam aos cochichos, em risadas, mas será que eles estão trepando no chuveiro? Estão. Estávamos. Mas não é nem justo falar sobre isso agora, de entrada, porque ainda não sei, neste momento, como podem ser entendidas as coisas que aconteceram então. Preciso criá-las, recriá-las, para saber, para achar que sei.

Quem dirá saber como é trepar no chuveiro enquanto pessoas tomam cerveja na sala, o disco da Elis Regina. Quem dirá saber como é escutar Elis Regina com o braço levantado e aquela cara de burra que, não, desculpe, mas tinha. Porque as coisas mudam.

As coisas não mudam.

Porque posso contar, não a história de Arno, Rose, Gunther, Roger e, em menor escala, Ingrid. Mas a minha, final da década de 60, início da de 70, a trepada no chuveiro, as pessoas bebendo cerveja na sala. Entre uma e outra uns vinte anos de diferença. E em ambas, na verdade, nada de tão bombástico porque as coisas mudam, as coisas não mudam, mas bombástico definitivamente não é mais uma possibilidade. Bombástico é o nine eleven, bombástico, agora, só em inglês.

Perdemos o bombástico, nós.

Até o mar, quando sobe, o faz devagarinho, ressaca por ressaca, ninguém de fato percebe. E tornam a consertar a calçada.

Ontem ganhei um CD com uma peça de Gluck.

É Gluck, então, que faz fundo ao que vou dizer. Não que eu a esteja escutando neste momento. A última música que me vem é de outro tipo.

É a de um carrão parado no sinal do Passeio Público quando andei, apressada, entre camelôs, pivetes, caixas de papelão que servirão, mais umas poucas horas, de moradia às sombras marrons que se movem, pouco, nos cantos. O carrão freia sem necessidade, empinando a traseira. O ônibus da frente colabora, um Goya dark, com a fumaça cinza no papel de uma espiritualidade de óleo diesel para o funk do carrão, Maverick no estilo turbinado azul perolizado cabeçote rebaixado e, concordo com a cabeça, só pode se roubado.

Quatro caras atrás, dois na frente.

Gluck, então, é apenas o que eu gostaria de ter, em flautas educadas, por trás da minha vida. Não toda, mas ao menos em algumas cenas, como essa para a qual volto, em ondas.

Estou em uma mesa de bar e, como sempre, minha tentativa é fazer o chope durar. Uso para isso o truque da água mineral concomitante — um gole no chope, outro na água. Funciona por um tempo, não muito e está prestes a deixar de funcionar. O copo de chope vazio e a pergunta vem rápido: se eu vou querer outro.

Posso escolher, senhora bem comportada aguardando Roger em total sobriedade.

Ou não.

“Mais um, por favor.”

Motoboys.

Uma mulher com três pingüins quase apagados na blusa branca, uma tempestade de neve lenta, se materializando em várias lavadas na máquina de lavar.

Um cara de terno ao celular.

“Vão empurrando com a barriga, porra, e é aí que a gente se fode.”

E, logo depois:

“Ah, gata, só vontade de ver a alegria no teu rosto, a tesão.”

É o mesmo cara, outra ligação. As pessoas não mudam, só as ligações.

Um sinal de trânsito pisca inútil sua mão vermelha. Atravessamos sempre de qualquer maneira, nós, nesta cidade, por entre carros, suicidas que somos, correndo na frente, correndo atrás. A toalha de papel ensaia ir com o vento, eu ensaio sair correndo a tempo de pegar o sinal fechado, mas somos contidas por copos, garrafas, guardanapo, chaveiro e o palito, os objetos sendo sempre âncoras mais eficientes do que todos os sinais de trânsito, do que todos os rogers.

O grupo chega, conheço quase todos. Me chamam. Não quero. Tenho consciência de que sou patética com meu chope, minha água mineral, esperando o quê, e há quanto tempo.

Então vou.

“Vou fazer a Silvia Tereza”, diz Marcelo, “a Regina não vai poder. Ponho um vestidão, peruca, um ar espiritualizado e estou pronto para a estréia”.

“Eles estavam contando com 80 mil reais para 60 pessoas, cinco dias. Hospedagem na universidade, cano total.”

“Passaporte faz pela internet?”

“Eu estava cheio de cortisona, fiz um escândalo.”

Marcelo torna a contar uma história que já conheço, a da velha artista que, às voltas com a burocracia bancária, fala com um funcionário, com outro, vai ao caixa, volta e enfim solta, a voz mansa:

“Amanhã é sexta, dia de exu papacu, o nome de vocês está aqui, no papelzinho, e eu vou estar no terreiro….”

Gargalhada geral que acompanho.

Os celulares da mesa começam a tocar, sei o que se segue, irão embora. Uma moça de cabelão chamada Ana Paula se levanta, diz que está na rua desde a manhã, tem de chegar em casa, o cachorro. Carol pede a conta.

“Incompreensível.”

Outro pega a conta da mão dela, confabulam, destrincham. Marcelo, bêbado, não deixa que se concentrem, ao lembrar em voz alta da rua em Saquarema, ele, eu, Roger, um réveillon. Estávamos de carro procurando um vinho para comprar. Ele fala Saquarema com todas as sílabas, não deve estar tão bêbado. Os dinheiros se somam na mesa, não me levanto. Vou esperar, afinal. Ou beber mais. Ou ficar sozinha. Ou catar homem.

Um mendigo também chega em casa depois de estar na rua desde a manhã. Limpa o banco na minha frente com a mão, se deita, satisfeito, ele acha bom chegar em casa.

Gluck, então. O meu Gluck, dou-o para Rose, que dança. É esta a cena:

Uma mulher dança sozinha em meio a sofás, poltronas, estofados gastos. Há toalhinhas com acabamento em renda, almofadas adamascadas. Objetos em cima de móveis de madeira escura e os pés desses móveis são torneados em forma de espiral. Um brilho burguês na madeira, realçado pela claridade que vem da janela mas ela fecha a cortina.

É o primeiro dia.

Está nua e a peça de Gluck é sugestão que vem da memória, nada específico, nunca é, não poderia. Especificidades, para esta mulher, vão todas em uma só direção, insuportável.

Flautas pouco definidas, então, e o cheiro. É um cheiro de poeira, de uma poeira diferente da poeira porventura existente neste lugar, e essa outra poeira, ela acha, a subjugará assim que pare de dançar. Sabe que inventa. Permite-se. Acha que será fácil ver essa outra poeira, grão por grão, caso feche os olhos. A poeira — e ela continua — cairá assim que pare, e em cada vez maior quantidade, ameaçando esvaecer tudo, ela incluída. E isso embora constate com uma surpresa igualmente pouco focada que a poeira some assim que pousa. Nos móveis, então, e nos objetos e no chão de taco de duas cores, no papel de parede, nos vestidos já rasgados e substituídos por uniformes sem cor ou forma, nos cabelos já cortados, e nas janelas muito pequenas e altas, ou nas outras, que se lhes sobrepõem, grandes e acortinadas, e em nenhum candelabro ou estrela. Sem símbolos, por favor. Não gostamos de reducionismos fáceis.

(Ela não gostava, nem eu.)

Bem.

Braços e pernas ao alto, eis onde ela estava, onde eu estava.

Vamos mais rápido: 1) a dança, antes do banho; 2) respiração ofegante pela dança recém-dançada, já embaixo do chuveiro; 3) a entrada na cozinha, cabelos molhados, pingando ainda, na blusa de pence e costuras, cós e botões, gola virada e ombreira.

Década de 50. Ainda.

E as sobrancelhas da década de 50, que sobressaem no arco perfeito do lápis, nesse caso não por moda mas por necessidade. Será sempre útil, nesta vida que aqui se inicia, sobrancelhas altaneiras, para o caso de embates, altercações. Nunca se sabe.

A mulher dança na década de 50, a guerra logo ali mal-terminada, a não-estrela uma escolha, como o é o dançar nua que, ao ameaçar tornar-se, isso também como tudo, símbolo de alguma coisa (por exemplo, erotismo, feminilidade), é imediatamente interrompido.

Não ela.

Dança porque dança, e não para seguir roteiro por outros determinado. Daí que, no seguir dos dias, não dança. Apenas fica lá parada e nua. E não fecha mais a cortina. Dane-se. Diz dane-se e não foda-se. E a porta da cozinha, outro dane-se, este dirigido à empregada, dona de barulhinhos irritantes e que não canta. Não canta porque está proibida. Também está proibida de barulhinhos, mas isso ela não consegue evitar, embora tente, com mais barulhinhos.

A mulher nua tem um nome, Rose. E marido, Arno. E uma coleção infinita de dane-se, o terceiro deles dirigido justamente para o próprio, dane-se, porque mesmo com marido em casa, ela fica lá, na poltrona, depois no sofá, depois na cadeira, nua. E de perna aberta. Mas é um dane-se de mentirinha, este, e ela sabe disso. Porque Arno não sai, a não ser em horas pré-estabelecidas, incapaz que é de quebrar rotinas ou atender a expectativas não anunciadas com antecedência. Fica lá, no que chama de sua oficina, na verdade o segundo quarto, o do bebê que nunca veio nem virá, a depender da lei das probabilidades. Afinal, depois de uns cálculos mensais embaraçosos, Rose compreende que, sem trepar, ou quase, que se dane. E o lápis pendurado no calendário da cozinha migra para paisagens mais estimulantes, o bloquinho de compras, as palavras cruzadas.

É de Rose que falarei aqui, é através dela, todo o resto. Não dá para ser de outra maneira.

Peço meu primeiro chope da segunda fase, o grupo não está mais lá, o garçom separa mesas, dez centímetros de permissão para que outros sentem, eu lá, na mesa subitamente minúscula, a solitária. E recomeço de onde estava quando aqui sentei, cinco da tarde, ainda claro, esperando Roger, de quem gosto mais quando está perto. Não é isso. Gosto mais de mim, como sou, quando ele está perto. O grupo, este, me é indiferente. Não são meus amigos, são de Roger, são emprestados. Como é Rose, também um empréstimo.

Se recomeço com Rose mais uma vez, cineasta que sou de finais de tarde, é porque com ela acho que preciso de menos palavras. Recomeço com uma dança, o que não se descreve. E esta dança, imagino a partir de outra dança, a minha. E esta dança, a dela (e a minha), vem misturada com o que vi e vivi depois, e que não foi a dança. Foi Rose já velha, mas como sempre propensa a impor seu corpo, então disforme, a quem ousasse visitá-los, ela e Arno, fora de horários agendados de antemão.

Nas horas marcadas, o café, a colherinha, o biscoito feito em casa.

Nas horas verdadeiras, um outro menu. Panos baratos e ralos, quase transparentes, sobre seios caídos e livres, bunda e coxas também livres, reentrâncias aterrorizantes torneadas a cada levantada da cadeira, o tecido leve se lhes grudando, possessivo, muito calor nesta terra.

O calor é importante nesta construção que (vai ser assim até o final) flutua entre Rose e mim, porque a dança-base a partir da qual faço a outra, é de fato minha. É esta a saudade. O motivo. Na época, os amigos eram meus. Um pouco mais meus.

Devo ter, então, mais ou menos a mesma idade de Rose quando dança, danço, mas é outra a época. No meu caso, como cenário tenho um edifício em construção, o teto dele. Termino há pouco um banho com água que sai direto de um cano de pvc. A água está morna de um sol que não está mais. Escorre água de meus cabelos e esta água, já morna de nascença, mais morna fica, meu o calor. Uso vestido largo, de elástico nos ombros e me dirijo a um recinto de apenas três paredes, a quarta, por fazer, por fazer ficará por todo o tempo em que freqüento esse lugar. O caminho é de cimento áspero, grosseiro. Estou descalça. O chão do recinto de três paredes é de cimento liso. Chego aos pulinhos e tento limpar as solas dos pés passando-as pelo tecido do vestido. Me desequilibro. Desse desequilíbrio passo à dança, uma ligação para mim quase automática: sou desajeitada aos 17 anos. Não melhorei. Não se trata apenas de adequação corporal, é uma questão de fitness, e na palavra para mim tão estrangeira, mais estrangeira, tenho certeza, do que para outros, há inclusos um andar empinado, um olhar de cima, uma adaptabilidade social de todo ausente nisso aqui que, por falta de melhor termo, chamo de eu. Talvez surja nome melhor, no futuro, como foi o caso de fitness, termo inexistente na época em que o meto.

Só não posso demorar muito ou morro antes.

Chamo de eu e poderia chamar também de Rose. Nunca falamos sobre isso, nós duas, mas quando penso na dança dela, penso na minha, parecidas. Não graciosas.

Mas enfim, danço. Como dançaria ela, em falta de outra definição para os movimentos que fazemos. Eu, primeiro, embaixo de vestido largo que mais largo fica com meus gestos de afastá-lo do corpo. Depois, largo pernas e braços qual pássaros ao vento, sem o vestido. A luz é a da lua e estou alegre ou com raiva, as duas coisas na verdade parecidas.

É dessa dança que se trata. E tanto em um caso como no outro, eu ou Rose, tê-la feito provoca em nós certo olhar sobre as coisas, o que, por sua vez, provoca certo tipo de palavras.

São essas. Até hoje, em eco.

Vou precisar detalhar porque é nos detalhes que está o todo. É por isso que me ponho aqui, nessa recuperação/invenção. Preciso ver. E vejo melhor enevoada, pelo chope, pela fumaça, em meio às buzinas da avenida do centro da cidade, espantosamente raras. Há uma concordância, uma aquiescência com o engarrafamento, com os ônibus a toda que pegam o sinal já fechando, fechado. Todos sabem, esperam, este não vai parar. E seguram as sacolas do fim de tarde, da ida para casa, há concordância também nisso, de que é preciso comprar o pão, o presente, o papel higiênico. É nos detalhes que tenho a esperança esteja o todo que busco. Este, privado daqueles, esfarela-se. Não. Para isso ele teria de existir antes dos detalhes que se lhe agregam, ser sustentado por eles. E é o contrário. É a partir deles que monto um todo que ainda não sei qual vai ser e do qual dependo para decidir se vou para um lado. Ou outro. Se continuo, ou sumo.

Voltando então onde estava. Eu estava com mais uns nada ou pouco mais do que nada.

A nudez de Rose. A nudez de Rose surge — e escolho o que se segue como escolheria feijão, se feijão ainda se escolhesse, este grão e não o outro.

A nudez de Rose surge de algo anódino, decido. Ou adivinho. Este grão e não o outro. Por exemplo, há um raio de sol que bate no sofá e que o manchará caso nenhuma providência seja tomada. Contar com Arno para uma providência é disparate que Rose aprende cedo a não fazer.

Então, senta no raio de sol.

Pronto, o sofá não mais manchará.

Sentada, outra idéia lhe surge: fazer com que o calor atinja, sem obstáculos, o seu sexo, onde calores se encontram, há tempos, ausentes.

Levanta a saia.

É pouco. Em outro dia, já vem sem roupa de baixo.

Mais dias, e Rose certifica-se de que estar sentada sobre o sol não provoca mudança alguma no universo. Tira então a saia. O sol se move durante tais sessões, atinge barriga, atingiria seios. Tira o sutiã.

A roupa fica por um tempo sempre ao alcance de sua mão, por segurança.

Um dia ela cai em si e ri, segurança, rá.

Escala.

A roupa passa a ficar no quarto, dobrada, em perfeita ordem, um escárnio em relação à desordem que se passa na sala, braços e pernas em descompasso. Piruetas. E aí ela chega ao sofá para descansar, ofegante. E o sol no sexo.

Nunca a interrompem?

Sim, um dia, a empregada.

A empregada sai da cozinha. Fala uma frase onde entra: o jantar, o sabão, o forno; e algum verbo como: fazer, comprar, limpar. Por baixo de suas palavras, outras, não ditas: o que Rose estaria fazendo nessas tardes de sol e de silêncio, na sala. A empregada sai da cozinha, vê o que vê, fala o que dá, e nunca mais olhará Rose nos olhos. Uma vez a porta da cozinha fechada, Rose ri, as pernas abertas, mais sol, mais sol, ah, mais sol.

Não sei se eu disse, ela é alemã.

Mais dias. Agora Rose, prática, adianta providências em suas tardes de sol. Não mais danças, mas andanças. Ela branca, os móveis quase pretos, ela se debruça neles para acrescentar um item no rol da lavadeira, para costurar uma rendinha, limpar um sujinho. Ou pega os cigarros que, por sorte, estão longe, e depois os fósforos, mais longe ainda, e depois liga o rádio, lá perto da porta. E desliga.

Cyll Farney, See you later alligator e, entre um e outro, o sabonete Lux, sabonete das estrelas.

Entedia-se.

E, em vez de a empregada ir ver o que ela faz nessas tardes de sol e de silêncio, na sala, é Rose quem quebra o que já ameaça ficar aborrecido:

“Que o café saia logo porque depois quem vai sair sou eu.”

E fecha a porta da cozinha, o riso louco, descontrolado, uma das mãos tampando a boca para diminuir seu som, pois o riso, ele sim, é uma intimidade que não pode ser compartilhada. A sua outra mão está sobre o sexo, agora, a sós, tampando o sexo, não antes, a porta aberta.

No chuveiro, depois, o riso continua, sem que ela consiga parar, o som se irmanando ao borbulhar da água.

Depois este episódio será contado, com gestos e caretas, às gargalhadas, durante o próximo bridge. Riem todos, é um sucesso. São europeus, caramba, e a empregada, uma bugra. Incapaz, portanto, de entender a vida moderna, cheia que está de preconceitos bobos que tanto limitam a vida dessa gente ignorante.

É por necessidade que Rose conta na sala de bridge o episódio da empregada.

É necessário que ela inicie um caminho, que o pavimente com a noção compartilhada por todos eles de que nada de fato tem muita importância. Ou terá. Ela ainda não sabe para onde o caminho segue. Não nesse primeiro passo. Ainda não sabe e nem se importa. Quer principalmente que haja um caminho a ser seguido, que haja algo em movimento. E precisa, para isso, que todos concordem, uma concordância com sinais vermelhos a serem ultrapassados. Ela não prevê dificuldades. E a impressão, por muitos anos, minha inclusive, é a de que de fato não as teve.

Imigrantes. Todos nós o somos, hoje. Quando a viagem não nos move, é o entorno que nos foge, o que dá no mesmo. Ficamos então parados, com tudo o mais indo, imigrantes a entrar, todos os dias, em nós mesmos.

(Nada atemoriza mais os nômades do que a constatação de que, no fundo, eles são apegados à imobilidade. Daí minha previsão de sucesso para Rose. Era infundada.)

Na verdade tenho inveja desse grupo de imigrantes de uma outra época, com seu caminho claro a seguir. O meu ir em frente me é menos claro, embora tão mais recente.

Se me esforçar, posso lembrar ou reinventar a importância de algumas coisas. Sem me esforçar, lembro de outras, as que não foram e não se tornarão importantes. São todas aquelas que não têm um antes, um depois, as que existem isoladas, sem conseqüência nem causa, mas que, de tão nítidas, chegam a me dar, outra vez, a sensação física, na pele, de como é passar a mão sobre um sofá de plástico marrom, furado pelas unhas de um gato. E para cujos furos eu olho, distraída, então como agora, em vez de prestar atenção ao que saía de uma tela muito pequena, a da nossa televisão em branco e preto. Ou à tela de agora, posta sobre o balão, colorida e barulhenta, a competir com uma rua a cada minuto mais cheia.

Uma loura de umbigo de fora, um cara amarrando a bicicleta no poste, o bar onde entrou mais gente, todos iguais na tarde que some e que os torna apenas manchas que incluem o próprio bar e mais as pedras de uma Cinelândia que, qual o sofá que a ela contraponho, já viu dias melhores.

Serão então estas as cenas, as desimportantes, mais do que as outras, que me levarão pela mão na tentativa de traçar alguma linha — a mais reta que der — entre o dançar nua no teto de um edifício em construção e essa minha vagueza, mais educada que afetuosa, a me manter na exata distância, a única possível, de Roger e do mundo. É cômodo, pois, usar Rose nisso, nessa terceira pessoa.

E é por isso que talvez eu não faça o que ele me pede: o ônibus, a viagem.

Eu, a que toma conta desse nosso frágil equilíbrio.

Ele, o que não entende que histórias acabam.

Do outro lado da praça está a fachada da Biblioteca Nacional, um bloco ainda mais escuro do que o céu, já bem escuro. Acendem uma luz na janela da torrinha, à direita. Há um terraço em volta da torrinha. Uma outra luz aparece na cúpula. A da torrinha se tolda momentaneamente por um vulto que passa à sua frente. Acho que vi, não sei ao certo. A luz da cúpula se apaga e outra se acende, sempre na cúpula. Nada mais acontece na torrinha.

Há uma diferença radical entre bares abertos, de calçada, e bares fechados. Mesmo quando estes, a fechá-los, tenham apenas espadas-de-são-jorge ou costelas-de-adão espetadas em pouco mais que degraus da calçada.

Muda tudo.

Sem isso, não há como estabelecer a distância que é preciso ter das coisas, para escolhê-las e, nelas, escolher a nós mesmos. Sou assim, eu, aquele que vê aquilo.

Não.

Em bares de rua, eu sou a rua, ela inteira, nas idas e nas vindas, não consigo me enganar quanto a ser um e não outro. Eu sou quem vai. E quem volta.

Elvira Vigna

É escritora e jornalista. É autora, entre outros, de Deixei ele lá e vim (2006), A um passo (2004), Coisas que os homens não entendemÀs seis em ponto (1998).

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