O princípio da incerteza

Conto de Sergio Faraco
01/09/2001

“Cerca-nos uma natureza inconsciente, impassível, que não nos entende, nem sequer nos vê, e donde não podemos esperar nem socorro nem conso-lação”.
Eça de Queiroz
Correspondência de Fradique Mendes, VI

Um bêbado ao balcão, a cabecear. No bilhar, dois homens de boné. Barulho de pratos na cozinha e de lá grassa o fartum de cediças gorduras. A parca iluminação provém de uma única lâmpada, presa ao teto por um fio granido de excremento de mosca, e quase não se vê, no canto mais sombrio do bar, a mesa onde estão sentados, frente a frente, tu e Deus. Entre ambos, dois dados, e ele te convida a lançá-los.

Como compreender de outro modo aquilo que incide sobre certas vidas, devastando-as com uma sucessão de perdas? E enquanto um homem se desespera, lastimando os tassalhos que da alma lhe arrancaram, outros, não melhores do que ele, têm o privilégio de só provar a dor consoante a ordem natural da vida: “Primeiro, o mais velho, e depois quem na idade esteja a seguir”, o anseio de Térpsion no Diálogo dos mortos.

“Nada me foi poupado”, teria dito Franz Josef I (1830-1916), e poderia dizer também, como o Heraclés de Eurípedes: “Estou atulhado de infortúnios, sem lugar para mais”. O imperador da Áustria e rei da Hungria foi um campeão da desgraça.

Seu irmão Ferdinand Maximilian, feito soberano do México por Napoleón III e logo abandonado pela França, foi deposto e fuzilado em 1867, e a cunhada Carlotta enlouqueceu. Era o início do drama imperial, cujo segun­do ato, em 1886, teve como protagonista o rei da Baviera, Ludwig II, primo da imperatriz Elisabeth (Sissi): insano, durante um passeio quis estran­gular seu médico, von Guden, e a contenda os precipitou no Lago Starnberger e à morte por afogamento. Sobreveio o rumoroso affaire do filho único e prínci­pe-herdeiro, Rudolf, que em 1889 matou a namorada, Baronesa Maria Vetsera, e se suicidou. Em 1896, nova defecção na família: o irmão menor do imperador, Karl Ludwig, após beber água pestífera. No ano seguinte, outra cunhada de Franz Josef, Sophie, Duquesa de Alençon, morreu carbonizada no in­cêndio do Bazar de Caridade em Paris. E decorrido mais um ano, a imperatriz foi assassinada em Genebra pelo anarquista italiano Luigi Lu­c­cheni. A fatalidade encerraria seu ciclo em 1914, em Serajevo, quando o sobrinho do imperador e novo príncipe-herdeiro, Franz Ferdinand, e sua esposa, Condessa Sophie Chotek, foram abatidos pelo nacionalista sérvio Gavrilo Princip. Este episódio, como se sabe, teve conseqüên­cias trágicas para a humanidade.

A vida de Victor Hugo (1802-1885) igualmente impressiona, embora não registre atos de violência.

Tinha 19 anos quando faltou-lhe a mãe. Em 1822 casou-se com Adèle Foucher, que seria a mãe de seus cinco filhos (Léopold-Victor, Léopoldine, Charles, François-Victor e Adèle), mas, no outro ano, já experimentava dois reveses: a loucura do irmão Eugène, que amava a cunhada, e a morte prematura do primogênito Léopold-Victor. Com 26 anos perdeu o pai e aos 28 veio a saber da infidelidade da esposa, que se entrevistava com o ensaísta Charles Sainte-Beuve em quartos de aluguel. Em 1837, morreu o sobredito Eugène. Em 1843, Léopoldine casou-se com Charles Vacquerie, mas, no mesmo ano, o casal afogou-se no Rio Sena, juntamente com um tio e um sobrinho de Vacquerie. A morte de Léopoldine abalou profundamente o escritor, que ao longo de uma década nada produziu. Ao cabo de três anos morreu Claire Pradier, filha única da atriz Juliette Drouet, que era amante de Hugo desde 1833. Em 1855, Abel, seu irmão mais velho, e em 1865 Emily de Putron, noiva de Francois-Victor. Em 1868, duas perdas: o neto Georges e a esposa Adèle. Em 1871, mais um filho, Charles, e no outro ano a caçula Adèle perdeu o juízo. Em 1873, foi-se o único filho homem que restava, François-Victor (tradutor das obras de Shakespeare), e dez anos depois, Juliette. Ao todo, dezesseis mortos que Hugo teve de enterrar, antes que a doença viesse anunciar que ele também era mortal.

As vicissitudes também estiveram presentes, ou onipresentes, no dia-a-dia de um escritor sul-americano, o uruguaio Horacio Quiroga.

Ele nasceu em Salto, em 1878, e ainda era criança quando o pai desfechou contra si mesmo, diz-se que sem intenção, um tiro mortal de escopeta. A mãe casou-se novamente, mas em 1896 suicidou-se o padrasto, o argentino Ascensio Barcos. Em 1901, perdeu dois irmãos, Pastora e Prudencio, e passado um ano da última desdita familiar, já em Montevidéu, Quiroga matou um companheiro de cenáculo, o poeta Federico Ferrando, com um disparo acidental de pistola. “Teve de ser contido à força, pois queria se jogar no poço que havia na casa”, contou mais tarde uma testemunha, Anastacia Albín. Em 1909, casou-se com Ana María Cirés, transferindo-se para San Ignacio, em Misiones, onde adquirira algumas terras (daí os “contos missioneiros”). Quatro anos depois, ainda em Misiones, Ana María de­sistiu de viver, ingerindo veneno. Quiroga permaneceu na selva do Rio Paraná com dois filhos pequenos, Eglé (1911) e Darío (1912), e vivia acossado pelo medo de que, em seu isolamento, acidentes ou doenças o impedissem de dar assistência aos meninos (v. o conto El desierto). Em 1927 casou-se com María Elena Bravo, que lhe deu uma filha também chamada María Elena, a Pitoca (1928). Teve alguns anos de paz, mas em 1933 a morte o sitiava novamente: suici­dou-se seu amigo e protetor, o ex-presidente Baltazar Brum. E ainda fal­tavam quatro lanços para o fundo do abismo. Na madrugada de 18 para 19 de fevereiro de 1937, o escritor, sabendo-se portador de um câncer gástrico, tratou de abreviar seu sofrimento. Uma receita previamente aviada: “O enfermo se mata quando compreende claramente que seu mal não tem cura e que entre sofrer e não sofrer é fácil a escolha”, ele escrevera em setembro de 1896, três meses antes de completar dezoito anos. Ao menos não teve o desgosto de conhecer a sorte dos filhos. Em 1939, suicidou-se Eglé. Em 1954, Darío. Quem mais o sobreviveu foi María Elena, a Pitoca, mas, em 1989, ela também pre­feriu dar por finda sua existência.

Para Schopenhauer, viver “é um negócio que não dá para cobrir as despesas”. Tamanha é a ruína da vida que sua verdadeira finalidade seria a de nos livrarmos dela. As desgraças particulares são ou prefiguram-se exceções, mas a regra é a desgraça geral, que nos espreita como o lobo as ovelhas: qualquer uma pode sucumbir à sua voracidade. A natureza não se importa com a espécie humana e tanto se lhe dá que venha a ser vítima do mais cego dos acasos. E assim vão chegando e não menos do que assim vão-se distribuindo, aqui e acolá, os males que não têm remédio. O mundo é o “reino do acaso”, aflige-se Schopenhauer, e a fortuna do homem se decide como nos lances de um “jogo de dados”.

A aflição de Schopenhauer parece justificar-se em alguns passos da ciência moderna. Em 1927, Heisenberg formulou o Princípio da Incerteza, um dos fundamentos da Mecânica Quântica: quando uma partícula se desloca do repouso não sabemos que caminhos e para onde seguirá. Einstein, oito anos depois, acreditou ter derrubado esse princípio com o chamado Paradoxo EPR (Einstein-Podolski-Rosen): a trajetória da partícula está predeterminada no instante em que se desloca e o que nos impede de saber-lhe o destino é o desconhecimento de suas propriedades. A diferença entre a contestação einsteiniana e a teoria quân­tica foi expressada matematicamente em 1964, por John Bell, e este cálculo, a Desigual­dade de Bell, convalidado nos anos oitenta por um teste com partículas de luz, facultou a conclusão de que, provavelmente, os quânticos têm razão. É a primazia do acaso na enigmática sinergia do universo. A morte de um sol numa galáxia remota bem pode afetar um galho de limoeiro sob a janela, como supunha, em A cidade e as serras, o Jacintinho de Eça de Queiroz. Ou dizimar uma família.

Não há lugar para a divindade no Princípio da Incerteza, mas se Einsten — valendo-se, talvez deliberadamente, do tropo de Schopenhauer — afirmou que “Deus não joga dados”, pode-se dizer que, segundo os quânticos, joga, e apostando com os infelizes Franz Josef, Victor Hugo e Horacio Quiroga, certamente ele venceu. Outros o terão vencido, quem sabe. “Um nasce pra sofrer/enquanto o outro ri”, canta Tim Maia. E tu, que na mesa daquele bar lançaste os dados?

Sergio Faraco

Nasceu em Alegrete (RS), em 1940. É autor, entre outros, de Dançar tango em Porto AlegreRondas de escárnio e loucura e Lágrimas na chuva.

Rascunho