O pistoleiro

Conto inédito de Adérito Schneider
Ilustração: Marcelo Frazão
01/07/2023

Romeu é destro. Segura o aparelho com a mão esquerda, enquanto a direita aperta um sanduíche pela metade. O segredo é segurar a comida deixando o dedo indicador sempre esticado, apontado em direção à tela. E nunca piscar. Quando o alarme do aplicativo notifica um serviço de baixa remuneração, ele desvia o sanduba que seguia rumo à boca e corre o dedo pela tela. Aceita o trabalho sem nem consultar os dados básicos do alvo. Tem dois boletos a vencer no dia seguinte. Do outro lado do boteco, nota um sujeito enraivecido que solta o próprio aparelho em cima da mesa, ao lado do café preto, quase no fim, e um pão de queijo murcho. Romeu desvia o olhar, feliz por ter sido mais rápido. Assim como o desconhecido na mesa oposta, dezenas, talvez centenas, resmungam pela cidade o tempo de espera da próxima notificação, que pode demorar minutos ou horas. Romeu finalmente põe o aparelho de lado e mata seu rango com calma, o que significa três mordidas grandes e um resto de refrigerante morno virado por cima. Ao menos, agora ele pode usar as duas mãos. Levanta-se, estica as costas e sai com o dedo enfiado na gengiva, removendo restos de pão que engole enquanto chupa os dentes, sem se importar com o desconhecido que o encara. Ele para na porta sem obstruir a passagem.

Embora esteja do outro lado da cidade, Romeu enxerga a mesma paisagem do bairro em que vive. Ruas movimentadas de veículos e pessoas, nenhuma vaga para estacionar, poluição, sujeira para todo lado, um vento seco que carrega areia e fumaça. Ao redor, um monte de lojas que por alguma razão sobrevivem num mundo de conglomerados de vendas online, portas que vão de manutenção de aparelhos e computadores a vendas de bebidas e cigarros, passando por dentistas, ferragistas, salões de beleza e artigos importados da China. O tipo de bairro no qual vale a pena estar quando se precisa de serviços rápidos. O tipo de bairro que existe em todos os cantos de Goiânia. Com tanto dinheiro circulando, não é difícil imaginar a infinidade de gente endividada na região, prazos que venceram antes dos boletos de Romeu, um do financiamento do apartamento de dois quartos em que mora com a esposa e o outro da motocicleta que comprou quando perdeu o emprego de professor e entrou para o ramo de entrega de comida, antes de virar pistoleiro.

— Aposto que você nem é do bairro.

Encara o homem desconhecido, um velho. Sabe aonde ele quer chegar. Vai oferecer ajuda em troca de uma comissão. Deve ser um desses da velha guarda, ex-detetive particular saudoso da época em que eram contratados diretamente pelos bancos, alguns com exclusividade. Romeu não dá brecha para a conversa. Não quer perder tempo com negociações e muito menos justificar que atravessou a cidade, mesmo sabendo que em seu bairro teria as mesmas oportunidades de serviço, apenas para ficar longe de casa por algum tempo, suficientemente distante da esposa com quem discutiu na noite anterior. Coloca os óculos escuros, ajeita o capacete na cabeça e confere o coldre instintivamente, certificando-se da trava da pistola. Finalmente, ganha a calçada. Caminha meia quadra e procura com os olhos seu veículo estacionado ao lado de outras centenas, uma fila de motos muito parecidas com a sua. Sobe, dá partida e sai em meio aos carros, caminhões e outras motocicletas. Anda duas quadras e para no primeiro posto de combustível que avista. Para encher o tanque, usa o dinheiro da janta contando com o pagamento que, se der tudo certo, cairá em sua conta até o final do dia.

Enquanto o frentista trabalha, Romeu permanece sentado na moto, acende um cigarro e abre novamente o aplicativo. O alvo tem praticamente a mesma idade que ele, com seus quase quarenta anos. Amplia a foto. Homem branco, cabelos ralos, quase calvo, nariz um pouco grande, olhos escuros e uma cara de cansado num corpo aparentemente acima do peso. Tô com a câmera de selfie ligada? Solta um riso de canto de boca, que escapa junto com a fumaça do cigarro. Confere o endereço e outros dados que apontam um enfermeiro solteiro num condomínio de quitinetes não muito longe dali. Por segurança, aciona a rota de GPS no próprio aplicativo. Tira o cigarro da boca para jogá-lo fora, mas percebe o olhar de cobiça do frentista, um adolescente magrelo. Dá o cigarro pela metade ao moleque, que agradece com um sorriso e um gesto de cabeça. Paga, liga a moto, atravessa o posto pela calçada ziguezagueando entre pedestres para fugir de um sinaleiro e entra chutado na frente de um ônibus, o motorista pregando a mão na buzina sem tirar o pé do acelerador.

À medida que costura o trânsito e aproveita os corredores, Romeu esquece da discussão da noite passada, que começou porque ele gastou o dinheiro da ração do gato com latas de cerveja para assistir à final do campeonato. Foda-se. Amanhã eu me viro e compro essa merda. Não me enche o saco. Vai pedir dinheiro emprestado para seu irmão de novo? Porra, aquilo foi foda, mas também não precisava mandar a mulher tomar no cu só para encerrar a conversa drasticamente e não perder o anúncio da escalação dos times. A esposa foi dormir puta da vida e ele teve que assistir ao jogo com o volume no três, sentado no chão, colado à televisão. Dormiu no sofá de duas pessoas amargando um três a zero, inacreditáveis duas bolas na trave e um impedimento mal marcado. No outro dia, acordou cedinho e saiu de casa sem tomar banho nem café da manhã.

Romeu aproveita o sinaleiro de um cruzamento movimentado para esticar de novo as costas. Anota mentalmente que precisa comprar mais balas. Depois de um ano no ramo, se preocupa mais com coisas práticas e consigo mesmo. Mal acabou de quitar o financiamento feito no próprio banco que abriu a chamada do serviço que ele executa nesta manhã. Doze parcelas para investir numa pistola, munições e demais equipamentos, além do curso online obrigatório. Um ano é tempo mais do que suficiente para saber que vida de pistoleiro, por pior que seja, é melhor do que correr acelerado pela metrópole com uma caixa cheia de comida pendurada nas costas, arriscando a vida por pessoas que sempre acham que a refeição chegou fria demais e nunca dão gorjeta.

Confirma as horas. Não são nem sete da manhã. Torce para ser um desses casos tranquilos em que chega e pega a pessoa acordando, sonolenta, sem muita vontade de resistir. O sinal abre e Romeu acelera, quatrocentos metros em linha reta, virar à direita numa rua menos movimentada. O seu destino está à esquerda. Então, ele estaciona do lado oposto. O endereço de seu alvo é um prédio de quatro andares, certamente sem elevador, apenas uma porta de entrada e saída direto para a calçada. Condomínio Maresia. O litoral mais perto está a mais de mil quilômetros de distância. O prédio supostamente verde de tinta descascada disputa com os vizinhos, Pôr-do-sol e Porto da Barra, qual está em situação mais decrépita. Ao menos não são nomes em inglês ou francês, como nos bairros de ricos.

Romeu calcula que seria praticamente impossível uma fuga por qualquer uma das laterais e fica com preguiça de contornar o quarteirão, como naturalmente faria, para conferir o fundo do lote. O aplicativo informa que o alvo mora no último andar, então não há muito com o que se preocupar. Porra, não tenho mais idade para dormir em sofá. Ele se espreguiça novamente, quase um tique. Acende outro cigarro e fica observando o movimento da rua, muitos veículos, pessoas saindo para trabalhar, uns procurando por suas motos em fileiras dos dois lados da rua, outros aparentemente caminhando para pontos de ônibus. Romeu se lembra de que o alvo é um enfermeiro e pensa que, apesar do banco de dados apontá-lo como desempregado, ele pode estar fora de casa, serviço informal de cuidador de idosos ou algo assim. Torce para que não seja um foragido, pois aí vai precisar fazer um relatório, abrir uma chamada para taxas extras, aguardar aprovação e encarar uma missão sem tempo determinado. O pagamento é maior, claro, porém ele precisa de dinheiro para ontem.

O pistoleiro arremessa a guimba do cigarro no meio da rua com um peteleco. Percebe um estacionamento privado na esquina mais adiante, na mesma calçada dos condomínios praieiros. Abre novamente o aplicativo e confirma o modelo do carro, cor e placa. Não há carros estacionados na rua e o prédio não tem garagem, então ele decide começar pelo estacionamento. Não sabe se é intuição ou se está apenas procrastinando. Enquanto caminha, lembra da dificuldade que foi a primeira missão. Não para localizar o alvo, mas para criar a coragem necessária para puxar o gatilho contra uma mulher de cinquenta e poucos anos desesperada, implorando pela vida e gritando para ele pôr o apartamento num leilão. Eu não posso fazer nada, senhora. Apenas cumpro ordens. Romeu se lembra também do serviço que mais lhe deu trabalho, quase um mês de investigação para localizar o sujeito em Aragarças, divisa com Mato Grosso, escondido na casa de parentes. Tudo por conta de uma Kombi e o sonho de empreendedorismo: vender cachorro-quente na porta de uma escola privada. No fim das contas, o que Romeu gastou em despesas e comissões nessa missão nem compensou o serviço. Pelo menos nunca tomou tiro ou coisa parecida, como o Marcão, há cinco meses numa cadeira de rodas. Talvez entregar comida não seja tão ruim assim.

O estacionamento está com praticamente todas as vagas ocupadas, porém há poucas pessoas no local. Romeu dá bom-dia para o sujeito na guarita, mais preocupado com seu pão com margarina e seu café com leite. O pistoleiro caminha pelas vagas até localizar o carro. Confere a placa. Tira uma foto e envia pelo aplicativo. Faz o mesmo com a fachada do estabelecimento. Por fim, manda o endereço e a localização. Tudo indica que vai ser das missões fáceis e não tem por que enrolar. Caminha em direção ao Condomínio Maresia fingindo tranquilidade. Uma naturalidade aprendida em filmes de tiras e gângsteres. No caminho, olha rostos que vêm em sentido contrário. Nenhum deles é o seu alvo.

Ao se aproximar da portaria do prédio, aciona pelo aplicativo a câmera e o microfone instalados em seu colete. A partir dali, tudo é gravado. Toca o interfone. A portaria é remota. Se identifica a uma voz feminina no alto falante. Informa seu número de registro e o código da missão. Ouve o barulho da destrava e a porta é aberta. Entra no prédio, idêntico a milhares que entrou antes, muito parecido também com o seu. Sobe as escadas sem pressa, sem fazer barulho. Não cruza com ninguém pela escadaria ou pelos corredores.

No último andar, faz uma panorâmica para identificar a direção do apartamento de seu alvo. Aproveita para recuperar o fôlego. Uma placa ao lado de um extintor de incêndio informa ímpares à esquerda e pares à direita. Saca a arma. Quatrocentos e um, quatrocentos e três… quatrocentos e nove. Gostaria de poder usar um silenciador, mas é contra as regras. Afinal de contas, algo do seu serviço é também passar uma mensagem. Toca a campainha. Nada. Toca de novo. Já vai, resmunga uma voz masculina. Romeu olha para os lados e dá um passo para trás, arma em posição de disparo. A porta é aberta. O homem da foto, só que mais careca, mais gordo e mais cansado. O homem olha para ele e suspira. Entra. Romeu entra e o homem se senta numa cama de solteiro. A quitinete está bagunçada, roupas e calçados pelo chão, panelas transbordando na pia, copos e pratos espalhados pelos cantos. A televisão está ligada no mudo e o único som no ambiente é do ventilador em cima de um tamborete.

— Tá tudo aí em cima da TV. Chave, documentos… — o homem fala olhando para baixo, a mão sobre os olhos, apoiando a testa.

— Senhor, eu preciso confirmar a sua identidade. O senhor é Nerivan Linhares da Silva? — pergunta sem nunca abaixar a pistola.

O homem encara Romeu. Seus olhos estão vermelhos, no entanto ele não chora. Aparenta noites mal dormidas, talvez uma ressaca.

— Sim. Eu sou Nerivan Linhares da Silva.

— Senhor Nerivan Linhares da Silva, o senhor…

— Dá pra gente pular a lenga-lenga? Faz logo o que você tem que fazer.

— Eu tenho que seguir o protocolo, senhor. É a lei.

Nerivan suspira profundamente. E Romeu repete no piloto automático um texto decorado. É sua obrigação decorar, pois não pode vacilar com a arma ou com o alvo. Então, solta uma enxurrada de artigos, parágrafos, incisos, alíneas… que é só uma forma oficial de informar ao alvo o que ele já sabe: que ele está fodido. Muito fodido. Que quando você não tem um fiador ou um imóvel ou veículo para colocar de caução e precisa fazer um empréstimo no banco, o que lhe resta é colocar a própria vida de garantia. E que você pode perdê-la.

O enfermeiro ouve tudo calado, olhando para os próprios pés. Dá-se conta de que não corta as unhas há meses. Um serviço a mais para o agente funerário. Maldita hora em que decidiu financiar um carro. Mas fazer o quê? Precisava de um veículo para conseguir atravessar a cidade sem se atrasar, trabalhando em dois hospitais diferentes, muitas vezes dormindo no estacionamento e se alimentando de porcarias no trajeto entre um emprego e outro. Agora, vai morrer por conta de um carro usado. Um financiamento que não deu conta de bancar depois que foi demitido dos dois empregos quase ao mesmo tempo.

— …como informado no artigo quarenta e três do contrato pelo senhor assinado — termina Romeu.

Nerivan permanece imóvel e calado. O pistoleiro está acostumado com esse tipo de reação. O alvo apenas levanta a cabeça, como a confirmar se acabou aquela ladainha. Romeu respira fundo, também cansado. Às vezes, ele acha que o serviço dele está mais para um suicídio terceirizado. Puxa o gatilho. Um tiro certeiro na cabeça. O barulho ecoa pela quitinete e se alastra pelos corredores e vizinhança. Apesar do sangue e dos miolos pela cama e parede, Romeu pressiona dois dedos na jugular do defunto. Questão de protocolo. Notifica no aplicativo data e hora da execução.

Sai para o corredor e fecha a porta. Não quer ficar no cômodo apertado e fedido com o cadáver. Nem um vizinho põe a cara para fora, não ouve vozes, nem sinal do síndico. Romeu se senta no último degrau da escada. Interrompe a gravação e envia o vídeo pelo aplicativo. Começa a digitar o relatório. E, agora, vem a parte mais chata do serviço: aguardar horas e horas pelo caminhão do guincho, que vai levar o carro para o pátio de veículos do banco, e esperar horas e mais horas pelo recolhimento do corpo pelo Instituto Médico Legal. O pistoleiro abandona o relatório, sai do aplicativo e procura pelo GPS o pet shop mais próximo. Quer voltar para casa com um saco de vinte quilos de ração de gato e, talvez, uma caixa de bombons.

Adérito Schneider

É escritor, jornalista, roteirista de cinema e televisão, cineasta amador e professor e pesquisador de cinema e audiovisual no IFG – Cidade de Goiás. É organizador das antologias de contos Cidade sombria (2018) e Cidade infundada (2022) e autor do livro de contos O rastro da lesma no fio da navalha (2022).

Rascunho