O palco tão temido

Trecho do romance inédito de Renata Wolff
Ilustração: Dê Almeida
01/08/2023

Em outro dia improvisaram, as duas, cenas e diálogos mundanos, primeiro conduzidos por Nelly, e aos poucos por Graciela. A instrutora reiterava: tudo deve parecer improviso, nunca se pode reagir a uma fala do texto como se já a esperasse. E interrompeu Graciela quando, numa discussão de irmãs rivais, ela fechava os punhos e esbravejava.

— Não faça isso.

— O quê?

— Representar.

— Mas para que estou aqui?

— Para experimentar o momento. Sentir, simplesmente. Se tem de fazer escândalo para parecer enervada, não está sentindo, está forçando. Você mesma não acredita. E assim ninguém mais vai acreditar.

Graciela duvidava. Apoiou os braços na cintura e rendeu-se à inércia.

— Não sei o que fazer.

— Ouse fazer nada.

Ela subiu no cubo de madeira que fazia as vezes de poltrona e cruzou as pernas. Quis uma pausa. Respirou devagar e girou o pulso dolorido. Nelly ficou às suas costas, afastou os fios de cabelo que se colavam ao rosto, apertou-lhe os ombros em estímulo e disse como afago: vamos, só uma última coisa hoje. Deixou o palco e atirou uma bengala da caixa de cenografia, que Graciela apanhou no ar.

— Apaixone-se por isto.

Nelly sentou-se na primeira fila. Graciela dirigiu-lhe um olhar subitamente intimidado.

— Vai assistir daí?

— O que tem?

Ela agarrou-se à bengala. Limpou a garganta. Inspirou e soltou o ar pela boca. Andou para lá e para cá, sozinha no palco, ensaiou contemplar devotamente o objeto da paixão e logo desistiu: estonteava. O estômago afundava, fazia-a trepidar. Novamente encarou a plateia vazia, tornada, para ela, um salão invencível. Sequer pôde falar: sacudiu a cabeça para Nelly, que se ergueu e, com um ruído decisivo, acionou os holofotes. Ao clarão, Graciela virou o rosto e cobriu os olhos. Voltou-se, o rosto contraído. Distinguia meros vultos dos assentos e escutou de uma direção enevoada pelas luzes:

— Agora está protegida.

Contou a respiração e, ainda nervosa, tentou com afinco amar a bengala com alça de focinho de raposa em bronze. Nelly perguntou o que fazia.

— Continua fingindo. Precisa puxar os sentimentos da memória, a paixão de menina, o companheirinho de colégio. Use suas lembranças.

— Mas não tenho.

Oculta no brilho cegante, Nelly calou. Graciela limpou a transpiração que vertia acima do lábio e rente às orelhas. Pressentiu que a outra percorria a impaciência, a incredulidade, e afinal renunciava às indagações sem formulá-las. Nelly surgiu, pediu a bengala e descartou-a. Pensava em algo. Revirou a bolsa no chão e jogou ao palco uma caixa de fósforos.

— Vamos tentar o seguinte: me conte uma história.

— Minha? Ou inventada?

— Tanto faz. O ofício é esse. Contar histórias, convencer de histórias. Atuar é o instrumento. — Ao ver que Graciela examinava os fósforos sem compreender, apontou para eles. — Acenda um e segure enquanto fala — instruiu. — Enxergue só o fogo.

Ela obedeceu. Conseguiu manter o olhar no fulgor do palito, ligeiramente trêmulo entre as pontas dos dedos.

— Me lembro do barulho das pedrinhas sob os sapatos da minha mãe a cada passo seu para longe…

— Não — cortou a voz de Nelly, de novo velada na brancura.

— Mas é verdade.

— E eu com isso?

Graciela irritou-se. Fraquejava, sentia-se febril, mas não cederia. Soprou o fósforo e riscou outro.

— Minha única amiga próxima naquele lugar se chamava Clara…

— Pare.

— Ao menos me deixe terminar!

— Digo, chega. Já chega.

Nelly aproximou-se. Encostou a palma da mão em sua testa.

— Está pálida… Almoçou hoje?

— Claro que sim — Graciela defendeu-se, coçando o nariz com o nó do dedo. Entregou a caixa de fósforos em um gesto abrupto e prendia o cabelo à nuca quando Nelly voltou a falar.

— Bem, eu vou jantar aqui — ela explicou. — Ou como as empanadas que sobraram das crianças, ou vão fora.

Nelly desligou os holofotes. A sala retornou à serenidade das lâmpadas e ao silêncio reverente no palco, como música interrompida no meio do baile. Graciela ajudou a recolher e a organizar os objetos. Olhava Nelly de lado sem ser correspondida. As duas desceram do estrado, calçaram os sapatos e ajeitaram a roupa. Nelly demorava-se e Graciela, já pronta, tinha os pés inquietos num quase ritmo. Comentou, indiferente:

— Se for para não desperdiçar.

Tomaram as escadas para descer. Graciela viu, atrás de si, uma lâmpada fraca ainda acesa sobre um assento. Fez menção de voltar para apagá-la e foi segurada por um toque gentil.

— Essa fica — Nelly alertou. — Para os fantasmas.

— Fantasmas? Não creio neles.

— Nem eu.

Graciela comeu meia dúzia de empanadas tão depressa que depois soluçava. Levantou o copo de suco, bebeu-o inteiro e esperou para ver se funcionara, mas outro soluço escapou da garganta num repente. Desculpou-se. Nelly, os cotovelos no tampo da mesa de fórmica ao centro da copa que ficava nos fundos do sobrado da Arca de Noé, não fez caso. Observava-a.

— Então nunca amou, flaca? — À negativa, insistiu: — Ninguém?

Graciela repetiu que não. Para estudar com Nelly, faltara tantas vezes ao serviço no restaurante da Brown que a dispensaram e, sem o prato de comida que lá forneciam, era a primeira vez que jantava direito. Nelly largou o queixo sobre as mãos unidas.

— Uma moça tão bonita…

— Não me acho bonita. — Buscou com a língua, queimada da primeira mordida, um resto do molho da carne no lábio. — Tenho este perfil esquisito.

Nelly tocou-a para mover-lhe a cabeça em mais de um ângulo.

— Um pouco de maquiagem, nomás… Seu rosto é daqueles fáceis de transformar.

— Você também aparecia de um jeito em cada filme.

O relógio de parede avançava para o toque da hora cheia. Nelly ofereceu-se para reaquecer as empanadas restantes na travessa. Graciela recusou, entre soluços. A barriga cheia e o calor do forno próximo trouxeram algo de letargia, um fardo nas vistas.

— Quando fez Mata Hari — ela disse, vendo Nelly pegar seus cigarros —, chamaram você de mulher fatal.

— A mim, Laura e sei lá mais quem. Fatal, puta… Trinidad Guevara teve de ir-se do país.

— Isso foi há um século.

— Daqui a um século não vai ter mudado.

— Nunca quis desmentir? Gritar aos quatro ventos?

— De que adiantaria? Se grito, sou histérica. Fiz o contrário. Incentivei-os, e assim se distraíam. Se não quer que os urubus se cravem à sua pele, atire carniça o tempo todo.

Nelly acendeu um cigarro e tragou, lânguida e satisfeita. Graciela impressionou-se: ocupando sem alinho a cadeira simples, um botão caído no decote e a saia amarrotada sobre as pernas displicentes, a estrela parecia, assim mesmo, fumar para as câmeras.

— Só espere o estalar do primeiro aplauso… — Nelly falou, perdendo-se em devaneio. Fechou os olhos de jade azul. — Curvar-se à frente e mergulhar. Um rugir inacreditável. Vai escutar aquele som para o resto da vida. — A seguir, veio à frente como se despertasse. — Você precisa se apaixonar.

— De novo com isso?

— Uma artista tem de se deixar cair. No palco, na vida. E é melhor que aconteça o quanto antes. Veja Ada Falcón, abandonando o sucesso no auge.

— Nelly, eu já… — Graciela procurou palavras, resignou-se. — Eu sei como são as coisas.

— As coisas todas nós descobrimos antes de querer descobrir. Falo de arrebatamento, que é muito diferente.

— Perdão, mas é romantismo demais para a sua idade.

— Romantismo? — Nelly ergueu as sobrancelhas. — Está brincando? — Ela disse entredentes “não, não” enquanto puxava uma baforada. — Vai ser a pior miséria que já lhe aconteceu. Vai rachar-se em dor, ver ruírem todas as ilusões, sofrer feito cão raivoso e desejar a morte. — Balançou o cigarro, apontando-o enfática para Graciela. — Por isso mesmo.

— Para morrer?

— Para sobreviver.

Graciela inspirou. Virou o pescoço para os lados e espreguiçou-se.

— Se eu não prestar no palco, tento o radioteatro.

— E se não prestar no rádio, vira primeira-dama — Nelly desdenhou. — Funcionou para Eva Duarte.

— Verdade seja dita, só tive panetone no Natal por causa dela.

— Afinal, o que pensa de política?

— Nada. Não gosto de política. Gosto é de panetone.

Ela soluçou novamente e socou o peito como para fechar a garganta. Nelly ofereceu um cigarro e, mesmo quando Graciela disse não fumar, estendeu o maço.

— Pois comece. E tente baixar sua voz.

— Por quê?

— Se ficar fina assim, os choros são agudos demais e dificulta fazer tragédia grega.

— Mas não quero fazer tragédia grega.

— Será inevitável. Uma, duas décadas de comédia e alguém vai lhe dar um papel dramático para — Nelly simulou uma fanfarra — provar-se como atriz. Vinte anos e ainda estará se provando todos os dias.

Graciela aceitou a oferta. Segurou precariamente o cigarro e envolveu-o com lábios incertos; inalou, sentiu o ardor arranhar a goela e explodir nos pulmões. Dobrou-se e tossiu até as lágrimas escorrerem. Nelly prometeu que melhoraria. Ela secou as faces, pigarreou e variou a posição do cigarro, tentando capturar o charme da instrutora. Na ponta da mesa, uma brochura datilografada exibia na capa a data e uma rubrica, e as páginas, de tão folheadas, tinham rolos nas quinas. Graciela puxou o cartaz que jazia sob o roteiro: o desenho colorido de um casal com expressões aflitas e os nomes de Tita Merello, Arturo García Buhr e Lucas Demare.

— Às vezes venho trabalhar aqui — Nelly disse, servindo-se de suco. — Quando os cachorros colaboram, é silencioso.

— Se incomoda que omitam seu nome? — Ela abriu algumas páginas e distraiu-se com os cortes e acréscimos rabiscados por Nelly. — Ou você aparece neste mundo, ou nem em sessão espírita.

Deu-se conta das palavras e quis retirá-las, sem animar-se a tanto: talvez fosse melhor deixar que minguassem. Foi pior, porque o intervalo mudo criava eco. Nelly amenizou-o.

— Mais cedo ou mais tarde todo mundo cai no esquecimento.

Graciela deslizou os papéis de volta. Nelly alcançou-lhe o cinzeiro e falou mais jovial.

— Talvez eu volte a representar. Falei com outros proibidos, Delia que saiu de gira, e Caviglia na Comedia Nacional em Montevidéu. E há uma possibilidade de algo com Lamas na Metro.

— Nos Estados Unidos?

— Sim, se arranjar tudo. Contrato, documentos, mudança.

— Ah, você iria… — Graciela bateu as cinzas que ameaçavam cair. — Quer dizer, ótimo. — Levou o nó do indicador à coceira na ponta do nariz. — Me alegra. — Tornou a fumar e acometeu-se da mesma tosse. Amassou o cigarro no cinzeiro e declarou trôpega, reprimindo os pequenos estouros no peito: — Jamais vou gostar disso.

Sem convicção, Graciela protestou não querer levar as sobras, mas Nelly insistiu que não podia comer mais, a fim de vigiar a silhueta para os norte-americanos, e nem queria jogar a comida no lixo. Resulta que Graciela saía da Arca de Noé de mãos cheias, carregando um livro de Stanislavski como lição de casa; o vestido azul e os brincos que Nelly lhe emprestara no Monumental e agora presenteara, à justificativa de que vestiam melhor nela; os fósforos, “para treinar a concentração”, e o maço de cigarros Chesterfield; e as empanadas em um embrulho de papel amarrado com barbante. Dizia, em tom de desculpas, que as levaria a um garoto do metrô ou a Rafael, na pensão. Nelly destrancou a porta, deu-lhe passagem à rua e cruzou os braços. Parte do canil acordou.

— Bem, boa noite.

— Graciela. — Nelly raramente usava seu nome. Ela virou-se. — Quem me ensinou foi Angelina Pagano. Teve trabalho comigo. Eu era cheia de maneirismos e demorei a me livrar deles. Angelina repetiu mil vezes: ou se matam os cacoetes ou eles nos matam. Os nossos nem percebemos, porque achamos que ajudam, mas a verdade é que traem. Denunciam insegurança, contrariedade. Ou uma mentira.

Graciela acomodou a bolsa no ombro e equilibrou os objetos. Perguntou a que a outra se referia.

— Cuidado com isso.

Nelly copiou o gesto de usar o nó dos dedos para coçar o nariz. O ladrar dos vizinhos dos fundos cessava. Graciela desviou o olhar, agradeceu e saiu. Andou alguns metros. Grudavam-se à calçada úmida folhas do jornal do dia, abertas e esfaceladas do aguaceiro vespertino. Parou. Chamou Nelly, que abriu a porta. Anunciou alto:

— Estava pensando. Não pretendo ser esquecida.

Nelly deu um sorriso que ela considerou difícil de interpretar, e pouco tentou. Seguiu caminho sem notar que quase saltitava na rua orvalhada dos reflexos disformes dos postes de luz.

Renata Wolff

Nasceu em 1980, em Porto Alegre (RS). É mestra e doutoranda em Escrita Criativa na PUCRS. Além da participação em coletâneas e revistas, é autora dos livros Fim de festa (contos, 2015, finalista do Prêmio Jabuti) e Manhattan lado B (poemas, 2021). O palco tão temido, seu primeiro romance, será lançado em breve pela Dublinense.

Rascunho