Quem me conhece bem sabe que eu tenho uma obsessão pelo olhar. E vivo dizendo que o olho é o caminho mais curto da alma para tudo o que está aqui fora, no mundo vivido; mas nem sempre foi assim — houve um tempo em que ele significava o mesmo que o olfato, o gosto e outros sentidos vulgares.
E, se hoje não consigo mais olhar alguém nos olhos, não é fraqueza — essa covardia comum a qualquer indivíduo medroso — e, sim, uma espécie de medo que me consome desde a juventude.
Descobri o poder de um olhar no dia mais infeliz da minha vida. Explico: desde a mocidade eu planejava uma vingança contra um sujeito que bateu no rosto de meu pai, em meio a uma discussão besta, por causa de não sei que teima. Era uma tarde morta, triste — dessas em que os únicos barulhos ouvidos são os gritos das crianças, vindos com o vento de bairros distantes. Lembro como se fosse hoje, no entanto já se passaram setenta anos desde aquela tarde.
Começaram conversando baixo, depois as vozes foram aumentando, até silenciarem com um tabefe seco, que meu pai engoliu fundo; baixou a vista, apanhou o chapéu do chão… e eu continuei seguindo seus passos de longe (nunca o caminho de nossa casa parecera tão longo): desde aquele dia ele nunca mais foi o mesmo, e até o último instante de sua vida jamais haveria de levantar a vista — morreu com os olhos baixos, como se fosse (desde aquela maldita tarde) indigno de olhar os outros nos olhos.
No dia de sua morte, jurei para mim mesmo que o responsável por tudo aquilo pagaria com a vida pelo que fizera. Planejei durante muito tempo, teria de ser em uma ocasião singular; não poderia acontecer rápido, exigiria uma ocasião especial. Levei quarenta anos estudando a situação e várias vezes estive lado a lado com ele, só eu o conhecendo; vezes houve em que até trocamos algumas palavras; depois o perdi de vista por quase dez anos. Eu não tinha pressa, estava certo de que logo ele estaria em minhas mãos, inevitavelmente.
Um dia eu soube, através de um tio que continuava residindo no vilarejo de minha infância, que o meu desafeto regressara para passar os últimos dias de sua velhice na terra natal. Havia chegado a hora, eu não poderia deixar para depois; seria naquele momento ou nunca. Convenci minha esposa e meus filhos já rapazes de que precisava ir ajudar a família em uma questão de terras, mas que logo estaria de volta.
Cheguei pela manhã, no primeiro trem — e foi como se a vida toda desfilasse em minha mente; as idéias tornavam-se confusas: o passado e o presente se misturavam como fosse em um sonho. Passei o resto da manhã meio perdido, não conseguia reconhecer ninguém. Da janela da hospedaria fiquei esperando a saída dele para um passeio, e que acontecesse à tarde, do jeitinho de outrora.
Quando ele despontou na esquina da farmácia era boquinha da noite. Eu me aproximei: olhei-o nos olhos, bem fundo, puxei vagarosamente a faca e, notando que o seu olhar me reconhecia (tive certeza disso), afundei-a toda em seu peito, depois outra e mais outra. Da surpresa inicial de seus olhos, passou a não mais reagir tentando se proteger com as mãos, mas aceitava tudo parado, a me olhar tristemente; as feições de surpresa e dor deram lugar a uma calma superior, quase arrogante. Olhou-me bem fundo. Naquele instante, quando meu braço jazia suspenso no ar, um último golpe inútil foi contido por aqueles olhos. E ao que vi em seguida teria preferido a morte: um simples olhar sereno, mais forte que toda a minha raiva guardada, um único olhar que eu jamais vira em minha existência inteira, um olhar de quem já não estava neste mundo, um olhar que (com certeza) nunca mais me dará paz nesta vida. Fugi como o diabo foge da cruz, depois me apresentei com um advogado e cumpro (em parte devido à idade) a pena em domicílio; porém sinto que já não vivo depois daquele olhar. E desde aquele dia não levanto a vista, pois não sou digno de olhar para mais ninguém… neste mundo.