O menino proletário

Conto de Osvaldo Lamborghini
Ilustração: Marco Jacobsen
01/11/2004

Tradução de Glauco Mattoso

Desde que começa a dar seus primeiros passos na vida, o menino proletário sofre as conseqüências de pertencer à classe explorada. Nasce num aposento que cai aos pedaços, geralmente com imensa herança alcoólica no sangue. Enquanto a autora de seus dias o joga no mundo, assistida por uma curandeira velha e viciosa, o pai, o autor, entre vômitos que apagam os lícitos gemidos da parturiente, embebeda-se com um vinho mais denso que a sujeira de sua miséria.

Por isso me felicito por não ser operário, por não ter nascido num lar proletário.

O pai, bêbado e sempre à beira do desemprego, bate de cinta no menino, e quando lhe fala é só para inculcar-lhe idéias assassinas. Desde menino, o menino proletário trabalha, saltando de bonde em bonde para vender seus jornais. Na escola, que nunca completa, é diariamente humilhado por seus colegas ricos. No seu lar, esse antro repulsivo, assiste à prostituição de sua mãe, que se entrega aos comerciantes do bairro para continuar levando fiado.

Na minha escola tínhamos um desses, um menino proletário.

Stroppani era seu nome, mas a professora do primário o trocara para Estropiado. Aos empurrões levava Estropiado para a diretoria, toda vez que Estropiado, passado de fome, custava a entender suas explicações. Nós nos divertíamos à beça.

Evidentemente, a sociedade burguesa se compraz em torturar o menino proletário, essa ameba, essa larva criada no meio da idiotice e do terror.

Com o correr dos anos, o menino proletário se converte em homem proletário e vale menos que uma coisa. Contrai sífilis e, assim que a contrai, sente o irresistível impulso de se casar para perpetuar a enfermidade através das gerações. Como a única herança que pode deixar é a de suas doenças venéreas, jamais se abstém de deixá-la. Faz quantas vezes pode a besta de dois costados com sua esposa ilícita, e assim, graças a uma alquimia que ainda não chego a entender (e que talvez nunca chegarei), seu sêmen se converte em venéreos meninos proletários. Dessa maneira se fecha o ciclo, exasperadamente se completa.

•••

Estropiado, com seu calçãozinho suspenso por uma só tira de trapo e os jornais debaixo do braço, vinha caminhando, sem nos ver, em nossa direção, três meninos burgueses: Estêvão, Gustavo, eu.

A execração dos operários, também nós a trazemos no sangue.

Gustavo adiantou a roda da sua bicicleta azul e assim ocupou toda a passagem. Estropiado teve que parar e nos fitou com olhos assustados, indagando com o olhar a que nova humilhação devia submeter-se. Nós tampouco o sabíamos ainda, mas começamos por incendiar-lhe os jornais e tomar-lhe as moedas ganhas, arrancadas do fundo destroçado de seus bolsos. Estropiado nos olhava, inquirindo com a cara branca de terror…

Oh, por essa cor branca de terror nas caras odiadas, nas faces operárias mais odiadas, para vê-la aparecer sem desaparição nós doaríamos nossos palácios multicores, a atmosfera que nos envolvia de dourada cor…

Aos empurrões e chutes, mergulhamos Estropiado no fundo de uma vala de água rasa. Chapinhava de bruços ali, com a cara manchada de barro e… Nosso delírio ia aumentando. A cara de Gustavo parecia contraída por um espasmo de agônico prazer. Estêvão estendeu-lhe um cortante caco de vidro triangular. Os três nos jogamos na vala. Gustavo, erguendo o braço que lhe terminava num vidro triangular, aproximou-se de Estropiado e o encarou. Eu me aferrava a meus testículos por medo de meu próprio prazer, temeroso de meu próprio ululante, agônico prazer. Gustavo talhou a cara do menino proletário, de cima a baixo, e depois alargou lateralmente os lábios da ferida. Estêvão e eu ululávamos. Gustavo apoiava o braço do vidro com a outra mão para aumentar a força da incisão.

Não desfalecer, Gustavo, não desfalecer.

Quiséramos nós morrer assim, quando o gozo e a vingança se penetram e chegam à sua culminância.

Porque o gozo chama o gozo, chama a vingança, chama a culminância.

Porque Gustavo parecia, ao sol, exibir uma espada espelhante, com reflexos que também a nós nos vinham ferir nos olhos e nos órgãos do gozo.

Porque o gozo já estava decretado ali, por decreto, nesse calçãozinho alçado pelo único suspensório de trapo cinzento, encardido e esfiapado.

Estêvão lho arrancou, e ficaram expostas as nádegas sem cuecas, amargamente desnutridas, do menino proletário. O gozo estava ali, já decretado, e Estêvão, Estêvão de um só puxão arrancou o sujo suspensório. Porém foi Gustavo quem se jogou primeiro em cima dele, o primeiro que arremeteu contra o corpinho de Estropiado. Gustavo, que logo nos lideraria na idade madura, todos estes anos de fracassada, estropiada paixão: o primeiro, cravou primeiro o vidro triangular onde começava a fenda do traseiro de Estropiado, prolongando o talho natural.

Saiu o sangue, espirrando acima e abaixo, iluminado pelo sol, e o buraco do ânus ficou úmido sem esforço, como que para facilitar o ato que preparávamos. E foi Gustavo, Gustavo quem o trespassou primeiro com seu falo, enorme para sua idade, demasiadamente perfurante para o amor.

Estêvão e eu nos contínhamos asperamente, com as gargantas bloqueadas por um silêncio de ansiedade, de desespero. Estêvão e eu. Com os falos excitados nas mãos, esperávamos e esperávamos, enquanto Gustavo dava pulos que penetravam Estropiado, e Estropiado não podia gritar, nem sequer gritar, porque sua boca era firmemente afundada no barro pela forte mão militar de Gustavo.

A Estêvão contraiu-se-lhe o estômago em razão da ansiedade, e logo pela arcada desalojou algo do estômago, algo que caiu a meus pés. Era um esplêndido conjunto de objetos brilhantes, ricamente ornamentados, espelhantes ao sol. Agachei-me, incorporei-os a meu estômago, e Estevão entendeu minha irmanação. Arrojou-se a meus braços e eu baixei minhas calças. Pelo ânus desocupei. Desalojei uma massa luminosa que enceguecia com o sol. Estêvão comeu-a, e em seus braços irmanados me arrojei.

Entretanto, Estropiado se afogava no barro, com seu ânus opaco rasgado pelo falo de Gustavo, que por fim teve seu gozo com um alarido. A inocência do justiceiro prazer.

Estêvão e eu nos precipitamos sobre o imundo corpo abandonado. Estevão enterrou-lhe o falo, recôndito, fecal, e eu furei-lhe o pé com um estilete forçado pela sola de corda da alpargata. Porém não me contentava tristemente com isso. Cortei-lhe um a um os dedos encardidos dos pés, malcheirosos dos pés, que já de nada lhe iriam servir. Nunca mais corridinhas, corridinhas e saltos de bonde em bonde, bondes amarelos.

Minha vez se aproximava, mas eu não queria penetrá-lo pelo ânus.

— Eu quero sucção! — grunhi.

Estêvão se afobava nos últimos arquejos. Eu esperava que Estevão terminasse, que a cara de Estropiado se desunisse do barro para que Estropiado me lambesse o falo, mas devia entreter a espera, armar-me na demora. Então, todas as coisas que lhe fiz, na tarde de sol minguante, azul, com o estilete. Abri-lhe um canal de duplo lábio na perna esquerda, até que o osso desprezível e vulgar ficou exposto. Era um osso branco como todos os demais, mas seus ossos não eram ossos semelhantes. Retalhei-lhe a mão e vi outro osso, crispados os nós, falanges aferradas, cravadas no barro, enquanto Estêvão agonizava, prestes a gozar. Com minha gravata vermelha fiz um arranjo no pescoço do menino proletário. Quatro puxões rápidos, dolorosos, ainda sem o pristino, argênteo fim de morte. Ainda a se safar literalmente na demora.

Gustavo, por sua vez, pedia aos gritos um fino lenço de cambraia. Queria se limpar da amontoada matéria fecal com que Estropiado lhe sujara a ponta rósea lacerante do falo. Parece que Estropiado se cagou. Era enorme e agressivo, diga-se de passagem, o falo de Gustavo. Com inteira independência, só se movia, assim e assim, com cabeçadas e investidas. Naquele êxtase ele chegava a crispar sua boca delgada, como se estivesse prestes a uivar. E o sol se punha, o sol que se punha, punha. Iluminavam-nos os últimos raios na rompente tarde azul. Cada coisa que se rompe, e que se rompe adentro, e que se rompe afora, adentro e afora, adentro e afora, entra e sai e entra e sai e que se rompe, um lívido Gustavo olhava o sol que morria, e reclamava aquele lenço de cambraia, bordado e maternal. Para acalmá-lo, dei-lhe meu lenço de cambraia, onde o rosto de minha augusta mãe estava bordado, rodeado por uma esplendorosa auréola como de fingidos raios, tantas quantas vezes sequei minhas lágrimas nesse mesmo lenço, e sobre ele derramei, anos depois, minha primeira e trêmula ejaculação.

Porque a vingança chama o gozo e o gozo a vingança, mas não em qualquer vagina, e é preferível que em nenhuma. Com meu lenço de cambraia na mão, Gustavo se limpou na ponta agressiva, e assim mo devolveu, vermelho sangue e marrom. Minha língua o limpou num segundo, até devolver ao pano a cara augusta, o retrato com um colar de pérolas no pescoço, ah! Com um colar no pescoço. Justamente ali.

Descansava Estêvão fitando o ar, depois de gozar, e era minha vez. Acerquei-me da forma de Estropiado, meio sepultada no barro, e dei-lhe a volta com o pé. Na cara lhe brilhava o talho, obra do vidro triangular. O umbigo de raquítico luzia lívido, azulado. Tinha os braços e as pernas encolhidos, como se agora e ainda, depois da derrota, tentasse se proteger do assalto. Reflexo que não pudera ter em seu momento, condenado pela classe. Com o estilete, alarguei-lhe o umbigo de outro talho. Verteu o sangue por entre os dedos de suas mãos. No estilo mais feroz, o estilete vazou-lhe os olhos com dois, e só dois, golpes exatos. Gustavo me felicitou e Estêvão abandonou o gesto de contemplar o vidro esférico do sol para felicitar. Agachei-me. Conectei o falo à boca respirante de Estropiado. Com os cinco dedos da mão imitei a forma da fusta. A fustadas arranquei tiras de pele da cara de Estropiado e transmiti-lhe a parca ordem:

— Vai ter que chupar! Sucção!

Estropiado se pôs a lambê-lo. Com escassas forças, como se temesse causar-me dano, aumentando-me o prazer.

Outra coisa. Na verdade, nunca uma morte logrou afetar-me. Aqueles que eu disse querer e que morreram, se é que alguma vez o disse, inclusive camaradas, ao partirem me presentearam com um claro sentimento de libertação. Era um espaço em branco aquele que se estendia para me atritar.

Era um espaço em branco.

Era um espaço em branco.

Era um espaço em branco.

Mas também virá para mim. Minha morte será outro parto solitário do qual nem sei sequer se conservo memória.

Do alto da torre fria e de vidro. De onde contemplei depois o trabalho dos peões ao longo dos trilhos da nova linha do bonde. Da torre erigida como se eu alguma vez pudesse estar ereto. Os corpos se aplanavam com paciência sobre as obras de empreitada. A morte plana, aplanada, que me deixava vazio e crispado. “Eu sou aquele que ontem já dizia” (*), e isso é o que digo. A exasperação não me abandonou nunca, e meu estilo o confirma letra por letra.

Vista deste ângulo de agonia, a morte dum menino proletário é fato perfeitamente lógico e natural. É um fato perfeito.

Os despojos de Estropiado já não davam para mais. Minha mão os apalpava enquanto ele me lambia o falo. Com os olhos semicerrados e a ponto de gozar, eu comprovava, com uma só passada de mão, que tudo já estava ferido com exaustiva precisão. O sol se ocultava, negando seus raios a todo um hemisfério, e a tarde morria. Descarreguei meu punho martelo sobre a cabeça achatada de animal de Estropiado: ele me lambia o falo. Impacientes, Gustavo e Estêvão queriam que aquilo culminasse de uma vez por todas: executar o ato. Empunhei mechas do cabelo de Estropiado e lhe sacudi a cabeça para acelerar o gozo. Não podia sair dali para entrar no outro ato. Meti-lhe o estilete na boca para sentir o frio do metal junto à ponta do falo. Até que, de puro estremecimento, pude gozar. Então deixei que pousasse sobre o barro a cabeça achatada de animal.

— Agora ele tem que ser enforcado, rápido! — disse Gustavo.

— Com um arame! — disse Estêvão — Na rua de terra, onde começa o bairro maloqueiro dos desempregados!

— E adeus, Stroppani! Vamos! — disse eu.

Removemos o corpo frouxo do menino proletário até o lugar indicado. Providenciamos um arame. Gustavo o enforcou sob uma sorridente lua, pendurado na ponta do arame. A língua ficou pendente da boca, como em todos os casos de estrangulamento.

Osvaldo Lamborghini

O poeta e ficcionista argentino Osvaldo Lamborghini (1940-1985), nascido em Buenos Aires e falecido em Barcelona, é desconhecido no Brasil, mas exerceu influência no espírito de outro argentino, Nestor Perlongher, que a intelectualidade brasileira já reconhece como exponencial do século passado. Em vida, Lamborghini publicou apenas três livros, mas ultimamente suas obras completas vêm sendo organizadas por César Aira, em dois volumes sob o título de Novelas y cuentos e um sob o título de Poemas: 1968-1985. O conto El niño proletario é um dos mais fortes do autor, e está no livro Sebregondi retrocede, de 1973, previsto para sair no Brasil pela editora paulista Amauta.

Rascunho