O meio do amor

Conto inédito de Rita de Podestá
Ilustração: Cássia Roriz
01/05/2023

Para Paula Gicovate

Para entrar na minha vida tem que abalar as estruturas, tipo terremoto que vai lá e muda toda uma formação geológica, árvore que cresce no asfalto arrebentando a calçada com a raiz, vírus que se espalha derrubando anticorpos. Tem que brigar com a família que não aceita, viver como amantes antes de finalmente explodir num divórcio no meio do café da manhã prolongado do sábado, tem que ficar anos sem ter coragem de se declarar tamanha a vontade até se render da forma mais cafona possível em algum ato de puro desespero. Nunca acreditei nas coisas calmas demais.

Isso até eu conhecer o Julio. Na verdade, eu já conhecia o Julio havia anos, desde que eu tinha doze ou treze. Ele era amigo do meu irmão e vivia nas festas da nossa família porque a família dele sempre morou longe. Cuiabá. O Julio é de Cuiabá. E ele dizia que a passagem de São Paulo para Cuiabá custa uma fortuna, não dá para ir toda hora, então eu vou uma vez por ano no aniversário da minha mãe, acho mais importante que o Natal. Por isso, o Julio passava todos os natais com a gente na casa de praia de Juquey, e ganhava presente da família como se fosse parente.

Até que, quando eu tinha dezenove anos, ele saiu comigo no amigo oculto e me deu um porta-joias em formato de coração escrito eu te amo numa letra cursiva dourada. Eu achei que era um engano, ou uma piada, sim eu podia jurar que era uma piada e abri o porta-joias na esperança de ter uma barata de plástico para me assustar. Não. Dentro do porta-joias tinha um colar com um pingente também de coração. Dei o sorriso possível e disse obrigada. A família toda vendo, uns risinhos baixos, minha mãe dizendo que coisa mais linda, minha tia querendo ver, até que meu irmão pegou o porta-joias da minha mão, olhou paro o Julio e disse que porra é essa, cara?

Nessa noite, depois que todo mundo foi dormir, o Julio me chamou para fumar na praia, desde quando você fuma, Julio? Eu não fumo, mas você fuma que eu sei. Sim, eu fumava e para mim muito bem escondido. Fomos. O Julio fumou, mas tossiu muito e disse que não sabia tragar. Depois me deu um beijo que foi, sem dúvidas, o pior beijo da minha vida.

O Natal seguinte eu passei nos Estados Unidos. Fui fazer intercâmbio para aprender inglês, mas matava todas as aulas para fumar maconha e transar com o Noah que morava na mesma república que eu e que prometeu que se casaria comigo para que eu ganhasse o visto e nunca mais fosse embora. Isso sim um lindo ato desesperado de amor. Nos casamos num cassino, eu de vestido vermelho bem justo, ele de cabelo alisado com um terço numa mão e uma garrafa de bourbon na outra. Assinei uns papéis e o padre, ou melhor, o celebrante, um homem careca de terno branco, disse que pelo poder concedido a ele pelo Estado de Massachusetts nos declarava marido e mulher. Ao menos era o que eu pensava. Dois meses depois eu encontrei o Noah com a Maria, uma mexicana, descobri que o padre era um amigo do surfe sem poder nenhum e que o Noah havia gastado todo o dinheiro que a gente juntou para dar entrada na nossa casinha de trailer no mesmo cassino onde a gente não se casou.

Fiz um escândalo em português que o Noah entendeu sem entender e logo depois jogou uma garrafa de cerveja bem na minha direção. Quem me socorreu foi a Maria que disse que nunca tinha visto uma mulher tão linda e corajosa. Dias depois ela tirou as cartas para mim e falou que meu destino era ao seu lado. Vivemos juntas por oito meses viajando de van pelo país, ela ganhava dinheiro lendo tarô e eu fazia bicos ilegais de garçonete nos bares das cidades onde a gente estacionava. Até que um dia a Maria falou que ia comprar absorvente e nunca mais voltou, pegou a van e fugiu com tudo o que era nosso que era pouco, mas era tudo.

Não tive coragem de contar para minha mãe que ainda comemorava o meu casamento com um americano e fazia planos para me visitar. Fiquei alguns meses trabalhando no que aparecia para juntar dinheiro e voltar para o Brasil. Voltei, um pouco esvaziada, até triste, mas logo tive a certeza de que tudo daria certo. Agora sim minha vida começava. Conheci o Ricardo, um empresário dono de uma franquia de sorvetes artesanais, numa festa à fantasia, eu estava de sereia e ele de pescador e todo mundo dizia que isso era coisa do destino. Ficamos juntos por dois meses e ele me pediu em casamento dois segundos antes da gente saltar juntos de bungee jump e eu só me lembro de gritar siiiiimmmmm enquanto caía de cabeça para baixo. Ricardo desistiu alguns dias antes da cerimônia sem muita explicação, me disse que não estava pronto que me amava mas precisava ficar sozinho. Fiquei arrasada, mas pouco tempo depois entendi que ele precisava sair da minha vida para que eu pudesse conhecer o Henrique, um pianista de jazz que tinha um piano de cauda no meio da sala do apartamento. Eu pedia para ele me ensinar a tocar, sempre quis tocar piano, e ele dizia claro que eu te ensino, mas antes deita pelada aqui em cima do piano enquanto eu toco para você, vai.

Depois do Henrique não me lembro bem o que veio, sei que veio, sempre vinha, mas se não me lembro é porque não era tão importante assim. Se é de verdade a gente nunca esquece, principalmente quando quer esquecer. O que eu sei é que meu irmão, já casado e com dois filhos, vivia apavorado com o exemplo que a tia ia dar para os meninos, e eu dizia que eu era a tia que teria histórias para contar, que iria mostrar que a vida é maior, porque a gente pode morrer a qualquer momento, Marcos, e se o mundo acabar agora, cheio de desastres ambientais, a gente nunca sabe a hora que vai ficar preso na enchente, tem criança atirando nas escolas, Marcos, essa confusão no trânsito onde é cada um por si, guerra por causa de petróleo, por causa de urânio, por causa de nada, armas nucleares, armas que ninguém vê, uma loucura, a Karina quase morreu saindo do samba toda feliz por causa de dez reais. Se o mundo acabar agora, Marcos, eu vou estar vivendo um grande romance nas Ilhas Canárias, enquanto você vai estar numa churrascaria comendo salada porque mesmo sendo vegetarianos vocês continuam indo lá só por causa do espaço kids.

Ele não entendia, claro que não. Dizia que eu estava perdida, que eu não tinha controle da minha própria vida. Claro que eu tinha, estava dando tudo certo no meu plano que sempre foi simples: não morrer sozinha e muito menos de tédio. Eu estava indo bem. O que eu não sabia é que nem tudo que te derruba te joga no chão assim, logo de cara.

Foi no Natal de 2019, quando eu tinha trinta e seis anos, que eu conheci o Julio, não o Julio amigo do meu irmão, meu Julio. Ele tinha acabado de se separar da menina ruiva que eu nunca guardei o nome, mas que era simpática e sempre dava itens de papelaria de presente para todo mundo, num Natal eu ganhei uma caixa de clips com temáticas de frutas, no outro um bloco de notas com mensagens motivacionais. O Julio saiu comigo no amigo oculto pela segunda vez e me deu uma blusa branca de algodão. O que poderia ser um presente sem graça, mas tinha um detalhe, a blusa era de gola V. E só o Julio sabia da minha teoria de que a maioria das blusas são de gola redonda porque é mais fácil puxar alguém pela camisa e matar a pessoa sufocada. Com a gola V você consegue colocar o dedo bem no final do V e evitar o estrangulamento. Luna, isso não faz sentido e ainda se fizesse, por que as pessoas fariam camisas assassinas? Eu não sei, Julio, as pessoas são capazes de tudo. Eu tinha quinze anos quando inventei essa teoria e eu realmente achava que as pessoas eram capazes de tudo. Ainda acho.

Nesse Natal eu sugeri ao Julio da gente pegar o barco do meu avô escondido e ir beber em alto mar. Eu já estava decidida, arquitetando toda a estratégia, a chave fica na gaveta do aparador da sala de visitas, tá fácil. Eu não sei dirigir barco, Luna. Não deve ser tão difícil, o barco é pequeno. Até que o Julio me puxou e me deu um beijo morno, beijo de maré baixa, quase bom, e disse que preferia deitar na rede, tá uma brisa tão gostosa, Luna, vamos? E a gente ficou lá, só existindo, num tédio agitado e angustiante que me deu uma vertigem tão grande que parecia que eu estava em alto-mar.

Nos casamos um ano depois, numa cerimônia bem simples, na casa da vó dele, num vilarejo a cinco horas de Cuiabá. Alugamos um apartamento em São Paulo de dois quartos e a mãe dele vem nos visitar todo ano no dia do seu aniversário. Também vamos muito para lá, às vezes no Natal ou nas férias do meio do ano, porque desde que o Julio começou a dar aula, só conseguimos viajar nas férias da faculdade. Dia desses eu disse para ele que a gente podia comprar uma casinha em Cuiabá, ter um canto lá e aqui. Ele gostou da ideia, mas logo depois falou e se ao invés disso a gente viajasse, fosse para um lugar diferente, sei lá, Luna, você gosta tanto, podemos andar de balão na Capadócia, me disseram que o ano novo tailandês é uma loucura, todo mundo jogando água um no outro e bebendo na rua, acho que você ia gostar. Topei. Larguei tudo e comecei a pesquisar roteiros e viagens, Julio vamos fazer um rali? Eu sempre quis fazer sexo no meio do deserto, imagina, nós dois, aquele tanto de estrela, a gente sendo o nosso próprio oásis, acho romântico. Também podemos chamar alguns amigos, quem sabe fretar um jatinho, quanto custa fretar um jatinho?

O Julio ria e dava corda para cada uma das minhas ideias, e eu já estava mandando mensagem para algumas amigas, as que viviam reclamando que eu estava careta demais, o que aconteceu com você, hein, Luna? E aquele papo de estou criando repertório, de ter história para contar para depois fazer filme, ter biografia no Wikipedia, escrever livros best sellers, vai escrever sobre o quê? Receitas de pavê? Mas foi a primeira delas me dizer que sim, claro que ela topava uma viagem, quer dizer que você voltou do mundo dos mortos?, foi só ela concordar que me deu uma vontade de deitar na rede da varanda com o Julio. Uma vontade de ficar olhando para o céu e ter a sorte de ver de novo os satélites que eu por um momento achei que eram discos voadores e não deixei o Julio buscar a pizza na portaria até ter certeza que eram realmente satélites, uma vontade de brigar com ele porque ele jogou as bordas da pizza fora e eu ia comer no dia seguinte com meu ovo mole, de dormir ao seu lado com a mesma blusa velha branca encardida de gola V, procurar seu calcanhar de madrugada, de usar a pasta de dentes dele que é para dentes sensíveis enquanto eu compro sempre a mais barata, e de sempre responder nos encontros que sim, tá tudo bem, sim o Julio está bem, não, nada demais, só está tudo bem, ou de dar risada sem saber dizer ao certo quando tudo isso começou, sem pensar muito em quando vai acabar, só vivendo essa coisa sem graça, sem muito alarde, sem epifanias, que não dá roteiro bom, não vira notícia, nem vira música hit de carnaval da Bahia, que ninguém pinta ou pega de ideia para fazer uma grande performance, essa loucura sem ser doida, essa tontura firme, esse meio morno do amor sobre o qual ninguém quer saber e, se sabe, logo reclama: que história mais sem graça onde nada acontece.

Rita de Podestá

É escritora, redatora e roteirista mineira. Atualmente, mora em Salvador (BA). Zaranza (Reformatório), seu primeiro livro de contos, foi finalista dos prêmios Jabuti e Candango, ambos em 2022. Com o conto Estiagem foi finalista do prêmio Sesc Machado de Assis de 2018; também participou das antologias de contos: Terra firme e outras histórias (Claraboia); e 2020: O ano que não começou (Reformatório).

Rascunho