O manuscrito de frei lucas de almendra

Conto de José Viale Moutinho
Ilustração: Marco Jacobsen
01/12/2004

Por desejo do autor foi mantida a ortografia vigente em Portugal.

Ivar Gomes de Luís, alfarrabista estabelecido no Porto, abriu a gaveta, remexeu os sobrescritos, esventrados pela sua pressa de saber se continham encomendas ou cheques, e deu com a chave do armazém da Rua do Pinheiro. Ao contrário do armazém da Rua da Picaria, onde os dois empregados iam quase diariamente buscar e levar livros, e uma vez por semana a empregada da limpeza, ali ninguém mais entrava. Quando tivesse tempo, pelo menos era o que ele dizia para consigo desde que alugara aquelas salas em 1971, vinte e seis anos já passados, teria de dar uma ordem às pilhas de livros antigos, que ele próprio transportara em sacos de plástico, em pequenas caixas de papel canelado, e na pasta. As estantes estavam vazias, mas com espessas camadas de pó cobrindo todas as prateleiras. Um qualquer dia teria de organizar-se para observar cada livro, e havia livros impressos e livros manuscritos, da Idade Média ao século XVIII, conferir o número de páginas, o estado das capas e das encadernações, qualquer defeito, qualquer inscrição, mancha de humidade, nota manuscrita, marca de propriedade, o que houvesse. Para o registo era um grosso livro de capas duras e páginas pautadas e, uma vez, para medir o tempo gasto naquele espaço, mas numa outra dimensão, comprara, num antiquário que tivera porta aberta do outro lado da rua onde tinha a livraria, uma ampulheta de grandes dimensões, preparada para contar uma hora de passagem da sua finíssima areia. Os olhos esbugalhados do vizinho antiquário, que se fazia chamar de senhor-barão pelos empregados, haviam-no envolvido numa espécie de súplica, quando ele lhe disse que queria ver a ampulheta, nessa mesma manhã colocada na montra. Cobiçara-a, mas o outro, que sempre lhe parecera um velho matreiro, quando o atendeu, não movia, como sempre, as suas mãozinhas gordas, em gestos untuosos, palavroso nos louvores, antes se dirigira a ele em passos miúdos, cumprimentara-o estendendo-lhe a mão direita e, logo que a recebeu, imediatamente a cobriu, como numa carícia, com a concha da mão esquerda. Por qualquer razão, Ivar pressentiu que compraria a ampulheta a bom preço. Como se o senhor-barão precisasse imediatamente de dinheiro e não conseguisse qualquer cliente por aqueles tempos. Foi uma boa compra, reconheceu, mesmo assim, o vizinho, já com um sorriso mais franco, exibindo os dentes amarelados de milhares de onças de tabaco, estendeu-lhe umas fotografias a sépia.

“São de amador, meu caro, mas essas mulheres não ficavam nada a dever às do nosso tempo. Guarde-as, mas tenha cuidado, não vá a sua excelsa esposa…”

Ivar olhou de relance o súbito acrescento ao grande desconto que o senhor-barão lhe fizera pela ampulheta de uma hora, que consistia em meia dúzia de imagens pornográficas de um mesmo casal, ele fardado de oficial de um exército qualquer e ela com um complicado vestido de folhos e fitas, mas as roupas afastadas onde fosse necessário para os actos sexuais que praticavam. Meteu as fotografias na caixa da ampulheta e atravessou a rua, recolheu a chave do armazém da Rua do Pinheiro e foi lá guardar a compra. Quando vira a ampulheta imaginara que na altura de organizar os livros, dedicaria três horas por dia a esse trabalho, usando a ampulheta e não o relógio para medir as estadias. Porém, desde então, decorrera muito, demasiado, tempo. Nunca retirara a ampulheta da caixa, e entretanto o senhor-barão morrera, a casa de antiguidades estivera fechada dois anos, com jornais a tapar as montras, depois haviam posto taipais de madeira, obras demoradas, e reabrira transformada numa pizzaria, ao que se dizia de um neto do senhor-barão, que estava a estudar em Inglaterra.

Ao abrir a porta do armazém, Ivar Gomes de Luís sentiu aquele cheiro a livros velhos que não havia na Rua da Picaria, afinal era um cheiro a livros muito velhos ou seria ao sémen seco dos protagonistas das fotografias a sépia, que nunca mais voltara a ver? Fechou a porta devagar, como se não quisesse despertar o sono eterno de quanto ali tinha e olhou as estantes vazias, receou respirar porque aquela camada de pó engrossara demasiadamente e poderia entrar-lhe pelo nariz e pela boca afogando-o, pelos olhos, cegando-o, pelos ouvidos, ensurdecendo-o. Sacudiu a cabeça e olhou na direcção da caixa da ampulheta, tal como a deixara, há quantos anos, sobre os incunábulos do mosteiro de Bulhente, o mosteiro a que alguns historiadores negavam a existência. Porém, o que o levava ali não eram as lembranças mas a visita de Mr. Hawkins, da Hawkins’s, de Nova Iorque, que passaram pela livraria da parte da manhã a perguntar-lhe se lhe conseguiria localizar um manuscrito de frei Lucas de Almendra, intitulado Argumentos, na verdade Argumentos para o desencorajamento de Sua Majestade El-Rei D. Sebastião na sua obsessão africana, que seria a resposta do frade cisterciense a uma suposta, por entretanto desaparecida, nunca encontrada ou apenas inventada, carta em verso de Luís de Camões encorajando-o exactamente à posição contrária, que o levara à desastrosa campanha guerreira de Alcácer-Quibir. Ora aquele Mr. Hawkins visitava em cada dois anos os alfarrabistas da Península em busca não só de determinadas obras, cujos títulos trazia escritos numa agenda de bolso, como à espera que lhe fosse proposta alguma obra susceptível de interessar aos seus clientes norte-americanos, ingleses, alemães ou austríacos, que a tanto tinha alargado a sua carteira de destinatários de preciosidades bibliográficas. Discutia os preços com alguma prudência, sobretudo nas obras que lhe haviam sido encomendadas.

Uma das fotografias a sépia que, apressadamente, introduzira na caixa da ampulheta, havia ficado dobrada, porém sem que o vinco estragasse a cena da bela senhora, decerto naquele instante com os ossos dissolvidos pelo ácido da terra do cemitério de qualquer país, a farda do oficial parecia da Prússia, se bem se recordava de um álbum de fotos que certa vez lhe passara pelas mãos, trazido por um cliente de uma viagem a Hamburgo, onde comprara curiosidades familiares em diversos antiquários. A dama do belo vestido aos folhos e fitas, decerto uma prostituta arvorada em dama para a série de fotos, num ajoelhar gracioso ante o garboso oficial de carcela aberta, abocanhava a sua arrogante virilidade, com um encher de bochechas a que correspondia uma expressão de surpresa, vendo-se o pormenor no lado do rosto de um olho aberto, mesmo esbugalhado, que o fez recordar o próprio senhor-barão, como se ela tivesse sido uma sua avó devassa, enquanto o oficial, em cujo peito não faltava uma condecoração, tinha os olhos postos no tecto da dependência em que se encontrava, com a boca aberta como se tivesse expirado um oh de gozo. No verso, nenhuma indicação de fotógrafo, aliás nada em nenhuma das cartolinas. Ivar sorriu e colocou as fotos no pó de uma das prateleiras.

Disposto a conceder a frei Lucas de Almendra a honra de ser o autor a quem dedicaria o primeiro momento da reorganização do armazém da Rua do Pinheiro, o alfarrabista extraiu a ampulheta da caixa, tendo mesmo de fazer um esforço para o conseguir, observando que aquele invólucro se tornara demasiado quebradiço e se desfez, pelo que nunca poderia voltar a ser utilizado. Considerou isso um sinal que confirmava a necessidade de conceder, finalmente, a atenção que lhe requeria, e há muito tempo, o armazém da Rua do Pinheiro. E a partir do momento em que colocou a ampulheta na macieza do pó de uma prateleira, sentiu, como se se escutasse um som metálico, que o tempo começava a passar com a queda daquele fiozinho de areia. E Ivar sentiu-se como que prisioneiro da sua própria determinação, surpreendendo-se a relancear os olhos, não sem alguma aflição, para as pilhas de livros que se encontravam por toda a parte, tentando adivinhar onde se encontrava, e só pela adivinhação lhe seria possível encontrá-lo, o manuscrito de frei Lucas de Almendra, os seus Argumentos. E a areia começava a acumular-se, digamos que inexoravelmente, e Ivar reconhecia que assim era, no compartimento da ampulheta então destinado a recebê-la. A luz mortiça da lâmpada daquela sala mostrava já que no compartimento de cima faltava areia, o que o excitou. Então, lembrou-se de que havia outras duas salas e um pequeno quarto de banho numa delas, ainda uma cozinha contígua à terceira sala, que dava para uma varanda. Eram mais estantes vazias com prateleiras com acumulações de pó e pilhas de livros pelo chão, entre as quais se movimentou com dificuldade, tentando descobrir o manuscrito, que ele sabia estar por ali, um maço de folhas cozidas com um fio grosso, metidas numas capas de pergaminho, arrancadas dos livros de cantochão do mosteiro de Bulhente, havia confirmado na altura. Porém, aquele armazém era exactamente para esse tipo de obras, o que tornava difícil a pesquisa. Se levasse Mr. Hawkins àquele armazém ele começaria por perguntar-lhe porque nunca colocara tudo aquilo nas prateleiras, depois quereria saber desde quando se encontrava assim, acabando por querer saber como é que Ivar sabia onde estava cada uma das obras que ele guardava no armazém da Rua do Pinheiro, nunca imaginando como aquele estado se tornara possível. Por fim, Mr. Hawkins faria uma proposta irrecusável pela ampulheta e diria que gostaria de voltar ao armazém, se possível na próxima visita sua à Península, dentro de dois anos, e então poder apreciar com vagar as preciosidades que Ivar decerto não deixaria de ter ali, e escolher as obras, folheando-as, apreciando-as, apreçando-as, sem ser obrigado a ir lavar as mãos com detergente, a limpar as unhas de uma negrura que se entranharia nos próprios olhos, no colarinho, nas narinas, espirrando ranho negro para o lenço pulcro que guardava na pequena pasta que sempre sobraçava. Porque é que ele não metia o lenço no bolso do casaco ou no das calças, como toda a gente? Ivar poderia ter trazido as seis lâmpadas azuis de cem velas, que comprara havia meses, destinadas a substituir aquela pobre iluminação com que teria de trabalhar nessa tarde. Pensou em ir buscá-las à livraria, mas a areia caía na ampulheta, avisando-o que, não tardaria passar uma hora, e teria de voltar, recomeçando a contagem, não lhe dando repouso, paz, até que encontrasse os Argumentos de Frei Lucas de Almendra. E lamentava não ter mandado proceder à limpeza das prateleiras, pois não se atrevia a distribuir nelas, no estado em que se encontravam, as obras empilhadas no chão.

As seis lâmpadas das três salas do armazém da Rua do Pinheiro encontravam-se abertas, mas eram fracas, tanto mais que as estantes estavam colocadas de tal forma que não se tornava possível abrir as janelas, de persianas corridas. Desde o primeiro instante em que adquirira aquelas dependências que Ivar as pensara com iluminação artificial porque a luz do sol poderia queimar os livros. A cozinha também estava transformada em armazém, só que tinha montado um catre, pensando na altura que poderia ser uma espécie de lugar de repouso ou, mesmo, se houvesse oportunidade, de levar alguma daquelas empregadas dos estabelecimentos das redondezas. Às vezes conversava com elas no café, encontrava-as na pizzaria, a cuja comida se habituara para estar próximo delas e onde as raparigas afluíam e onde as sentia tão volúveis, mesmo fáceis, embora ele não se atrevesse a ultrapassar uma certa familiaridade. Trocavam com ele palavras alegres, mas decerto que o olhavam como o patrão, e seria preciso medir bem o pleno alcance do vocábulo, daquela casa de livros velhos, em que o viam a conversar com senhores de fato e gravata, muito bem postos, alguns de chapéu, decerto também todos patrões do que nem elas imaginavam. Se vissem quanto pó se acumulava naquelas estantes, decerto ficariam horrorizadas, sufocadas, nenhuma delas atravessaria aquelas três salas de estantes vazias com prateleiras com dois dedos de pó acumulado, entre pilhas de livrou que poderiam desmoronar-se a um movimento em falso, para se lhe entregarem nos braços e logo naquele catre, donde seria preciso afastar dezenas de manuscritos, de in-folios pesados. Qual delas, e Ivar olhava-as, sobretudo na pizzaria, pois eram mais calmas a comer spaghetti e pizza do que naqueles bandos que se repartiam às duas e meia, cada uma para a sua loja, lojas pelas ruas, insistia: qual delas aceitaria acompanhá-lo à Rua do Pinheiro, subindo as escadas da Picaria?

Ivar decidiu não ir imediatamente buscar as lâmpadas à livraria. Contentar-se-ia com aquela luz que ele já reconhecera como mortiça. Puxara o autoclismo da retrete do pequeno quarto de banho e caíra um líquido castanho, mal cheiroso, ao mesmo tempo que a pequena lâmpada, situada sobre o espelho do ínfimo lavatório, se apagara num estouro baço e ficara negra como uma bola de bilhar negra, enquanto se escutavam os estranhos e cavos ruídos dos canos por onde a água subitamente ganhara uma nova energia circulando para encher o depósito do autoclismo. Não tendo fechado a porta do quarto de banho, agora às escuras, o alfarrabista saiu, não para as salas, mas para uma paisagem da cor do pó, por onde caminhou, sentindo os seus passos sobre a imensa nuvem que repousava em todas as prateleiras das suas estantes. Começou a contar as salas, sabiam que eram três dependências ligadas entre si por portas havia muito arrancadas dos seus gonzos e depositadas no quarto de arrumos do sótão, e como a estrela da alva, o manuscrito dos Argumentos de frei Lucas de Almendra encontrava-se num ponto do firmamento, mas a cada passo de Ivar, ele afastava-se mais e mais, pelo que o alfarrabista sentiu que jamais o alcançaria. Como é que o frade cisterciense se apercebera da carta de Camões a D. Sebastião? Por algum criado inconfidente do paço, mas como se dava o poeta com criados do paço real, nas tabernas da capital, pobre Camões, mas que lhe importava a ele que o rei, jovem, feio, com a mania das grandezas, fosse alargar o império para a África, e porque lhe escreveria em versos o que lhe poderia mandar dizer por algum dos seus validos, que decerto também esses frequentavam as mesmas tabernas que o poeta e os criados do paço? Para Ivar o fundamental, nesse instante, de vagueio pela paisagem, em que se vira envolvido sem sair do seu armazém da Rua do Pinheiro, era alcançar a visão da ampulheta como referência. Daí que, ao chegar ao fim da paisagem, ajoelhou-se e apanhou um livro cuja capa marcara porque sabia que um dia teria comprador para ele na casa Hawkin’s, de Nova Iorque, na pessoa do seu gerente ambulante Mr. Edward Hawkins, que falava o mais estropiado português que jamais escutara na vida, mas que sabia muito de livros portugueses e os colocava nos mercados internacionais, quer nas mãos de coleccionadores quer em bibliotecas do maior prestígio, em universidades e fundações. Ivar, num gesto rápido, extraordinariamente hábil, puxou o volume dentre outros volumes, sem que a pilha dos livros caísse. Abriu-o, folheou-o e na quinta página tinha aquilo que esperava, nada menos que o fim da paisagem, o fim de todos os horizontes, quanto era necessário para contrariar a teoria da terra ser redonda, pois adiante de si havia alguém, que não pôde reconhecer, nem era Mr. Hawkins nem nenhum dos seus empregados da livraria, nem a senhora Rosa, a empregada da limpeza, nenhum deles, que tinham parte do corpo do lado de cá e um dos ombros, um braço e a cabeça do lado de lá, como se estivesse, muito atento, a observar a eternidade. Ainda lhe passaram pela lembrança algumas das empregadas das lojas, mas nenhuma tinha um corpo tão andrógino ou assexuado como o daquela figura, que ele próprio nunca pôde saber quem seria, pois desapareceu pela abertura daquela parte da paisagem, precipitando-se, supôs, no vazio que rodeia todas as nossas suposições. Então, Ivar colocou aquele livro de pé, para que lhe servisse de parapeito ante o desconhecido, encostou um escadote e subiu para espreitar e viu o que sempre supusera existir naquela parte desconhecida de todos.

Eram estantes, dezenas, centenas de estantes vazias, as prateleiras cobertas de pó, sucedendo-se as salas, de porta em porta, os olhos tocando os interruptores, acendendo-as as lâmpadas de luz mortiça. E sob os pés do alfarrabista configurou-se um tapete, onde estavam depositados dois volumes de lendas do Islão, um destes livros colocou-se-lhe sobre a cabeça como se fosse um chapéu ou a cobertura do seu mundo, do volume que tinha aos pés desprendiam-se as mais belas empregadas das lojas da vizinhança, eram elas a Alina, a das calças de ganga coçadas nas coxas, a Julieta, de olhos cor de cinza e uma fenda no lábio superior, e a Carolina, a princesa da Casa da Borracha, sobretudo essas, que passavam a correr, com umas doidas, e abriam um portão que dava para um jardim, que ele não conhecia nem no qual se atrevia a entrar. Como se dispusesse de uma borracha do tamanho da ampulheta, ocupou-se, durante algum tempo, a apagar os traços a lápis da aventura que parecia estar a viver.

Porém, ao largar a borracha meio consumida, Ivar pegou no primeiro in-folio que encontrou à mão. Abriu-o diante dos olhos, à mesma distância com que costumava abrir os livros, por maiores ou mais pequenos que fossem, mas não conseguiu distinguir sentido no que se encontrava escrito. Aproximou o rosto e aproximou o in-folio e acabou por ver através da transparência das páginas que havia um caminho de livros que teria de percorrer até uma espécie de barraca em madeira. Os livros deveriam ser pisados sob a pena de mergulhar os pés no pó que corria as prateleiras das estantes, na verdade Ivar encontrava-se caminhando ao longo das prateleiras e alguém colocara os livros no seu caminho. Lembrou-se dos empregados, o Romano e o Silveirinha, que pareciam dois corvos, de um lado para o outro, como se entre os livros da livraria houvesse grãos de cereal que pudessem disputar, pedaços de queijo que uma raposa quisesse apanhar-lhes, dois idiotas que não faziam coisa com coisa, apenas com alguma capacidade para colar livros, empacotar livros, escrever endereços com letra de esmerada caligrafia e viagens intermináveis à estação dos correios, expedindo livros, mas regressando sempre bêbedos, arrastando os pés. Encontrara uma manhã o Silveirinha a dormir debaixo de um balcão e o Romano a limpar o vomitado com a cortina da montra, mas não se incomodara a despedi-los. A empregada da limpeza, a senhora Rosa, quando ele se preparava para lhes gritar, no momento em que se tornara verde de cólera, batera com o cabo da vassoura no vidro da montra estilhaçando-o. Sem se inquietar, olhou o patrão e murmurou que aquelas coisas poderiam acontecer em qualquer momento, que em trinta anos de casa, era a primeira vez, que mais isto e aquilo. Ivar mandou o Romano à vidraria da esquina, para que viessem reparar a montra e foi para o café tentar despejar a cabeça. Ao sair da livraria encontrou a menina Alina, a das calças de ganga coçadas nas coxas, como parecia estar na moda, que lhe perguntou o que tinha acontecido. Tentou explicar-lhe que havia um caminho de livros ao longo das prateleiras cobertas de pó, que conduzia a uma barraca de madeira, porém a rapariga só se apercebeu o que era realmente a barraca quando Ivar lhe pediu que o ajudasse a tirar os livros que se amontoavam sobre o catre, para que pudessem estar mais à vontade. Alina revelou então que era asmática e não deveria fazer esforços ali entre o pó, pois poderia morrer. Então, Ivar abriu um buraco na parede e um jorro de sol entrou da varanda para a cozinha, iluminando o catre vazio. Olhou em torno, mas Alina desaparecera, procurou-a entre as pilhas de livros, acendeu dois fósforos no quarto de banho, mas não a encontrou senão na pizzaria, mesmo assim na semana seguinte, estava pálida, olheirenta, lamentando-se em voz alta que perdera o aparelho com que aliviava o sistema respiratório. Mesmo assim, Ivar reconheceu que ela era uma rapariga apetecível.

Já com as lâmpadas trocadas, enfim as salas amplamente iluminadas, as prateleiras limpas de pó, pois obrigara a senhora Rosa a esmerar-se naquela operação de limpeza intensiva, e ela fizera-se acompanhar de uma sobrinha muda, que esfregava as madeiras com uma obstinação furiosa. E enquanto aquilo acontecera, receando um desastre, Ivar ficara na livraria, para onde levara a ampulheta, guardando-a debaixo do balcão. Mr. Hawkins telefonara no dia anterior a perguntar se localizara o livro de Frei Lucas de Almendra e ele pedira mais dois dias, sete, dou-lhe mais sete dias, respondeu o norte-americano, pois no dia seguinte faria a linha de Vigo a Oviedo e a Saragoça, onde decerto localizaria um importante manuscrito, e depois passaria de novo pelo Porto, aproveitando para o informar que lograra encontrar, num solar do Douro, o Tirant lo Blanc, roubado muitos anos atrás na biblioteca municipal do Porto, mas que já o expedira para a sede da sua casa, onde chegara havia dois dias. Um velho amigo acedera a levar-lho num balão de ar quente, apenas a troco das despesas da viagem, e tudo correra pelo melhor.

Ao chegar ao armazém da Rua do Pinheiro com a ampulheta debaixo do braço, disposto a recomeçar a busca, já as mulheres se haviam retirado. Ao abrir as luzes no comutador da entrada, todas as salas, quarto de banho e cozinha se iluminaram e, surpresa do Silveirinha, desejoso de compensar o patrão, começou a escutar-se uma música suave, cujo compositor não identificou. Nem poderia identificar nunca, pois nada percebia de música. E quando conseguiu, mas a troco de dinheiro, levar a Julieta dos olhos da cor de cinza ao sofá, que na cozinha substituía o velho catre, ela disse que se não parasse aquela merda, que se ia embora, que não ouvia aquela música pindérica por nada do mundo. Como ele não soubesse sequer onde estava a pequena aparelhagem, tinha de ser pequena, pois não se via, ela acabou mesmo por se ir embora, não lhe devolvendo o que já recebera antes porque, dissera ela, se o recebesse no fim, sentir-se-ia como uma qualquer, uma da vida. Porém, daquela vez, Ivar não escutou a música, tinha esse talento, expulsar o que não queria ouvir, expulsar o que não queria cheirar. No entanto sentiu que não estava sozinho no armazém, ao ver como um corvo de verdade, e não qualquer dos dois empregados de balcão, esvoaçava, com um pequeno livro no bico. Disposto a reaver aquele livro, tanto mais que estava intrigado pois reconhecera uma edição de Os Burros de José Agostinho de Macedo, tentou manter com o corvo o diálogo escrito por La Fontaine, mas o corvo continuava a esvoaçar de um lado para o outro, olhando-o de lado, não se deixando persuadir a cantar, tanto mais que se sabia mudo como a sobrinha da senhora Rosa. E, na primeira oportunidade, saiu pelo buraco que Ivar um dia fizera na parede da cozinha para a varanda.

Voltando ampulheta ao cabo de cada hora, Ivar começou a arrumar o armazém da Rua do Pinheiro. Pelas suas mãos passaram peças bibliográficas magníficas e dentro e algumas delas havia bilhetinhos de um ser misterioso que parecia coadjuvá-lo, indicando-lhe que ele se encontrava próximo do momento de encontrar os Argumentos de frei Lucas de Almendra. E na verdade, Ivar começava a acreditar que tal iria acontecer não só pelo facto dele ter a noção de que o manuscrito se encontrava no armazém como pela presença de um gato, que se encostava às pilhas dos livros, fazendo-as tombar, como a lhe dizer que nesta não procura noutra, e na verdade deixava em pé algumas pilhas, que ele entendeu como as indicadas. Cumprida a sua missão, o gato, um animal malhado e de coleira contra as pulgas, esgueirou-se pelo buraco na parede da cozinha, mas não sem antes ter urinado copiosamente no sofá, deixando ali entranhado um cheiro insuportável. Porém, dada a faculdade de Ivar se alhear dos cheiros, foi a menina Carolina, aos gritos, mal entrou na cozinha, que lhe o informou do que acontecera, recusando deitar-se ali. Ivar, recuperando a capacidade de cheirar, deu-lhe razão e ainda a convidou, em alternativa, para um quarto de hotel, mas ela respondeu que não era das que vão para quartos de hotéis, que se ele a imaginava assim, o melhor seria nem sequer se cumprimentarem mais.

Assim, quando apareceu o manuscrito dos Argumentos, a conselho da senhora Rosa, Ivar já substituíra o sofá da cozinha por um outro, comprado em segunda mão num adelo da Rua dos Mártires, mas a que ela e o Romano haviam dado uns arranjos que parecia um elemento de casa de família honesta. Aí se sentou Ivar a ler o manuscrito, potenciando os seus conhecimentos quase apagados de paleografia, que aprendera com o prof. Xavier Coutinho. Na verdade, Frei Luís de Almendra recomendava a D. Sebastião que se abstivesse de escutar Luís de Camões, que o poeta andava sempre bêbedo, que com ele privava gente manobrada pelos reis de Espanha, cobiçosos do reino de Portugal, e numa manobra extrema poderiam decapitar o país do seu líder e estenderem a pata para o lado de cá, que havia muitos fidalgos traidores, mas que nenhum deles, apesar de tudo, tinha a mesma voz sedutora e em verso de Camões. E este, se cantara com esmero a história do nosso país, agora fora levado a escrever aquela terrível carta. Aliás, dizia frei Lucas, eu nem sei se a carta é mesmo da sua lavra, pois cuido e me dizem, que as suas mãos tremem de tal modo, devido à bebida, que são incapazes de escrever o que quer que seja e a sua cabeça anda tão embotada de álcool que eles já nem pensaram nada de nada. Ivar sorriu, como frei Lucas de Almendra conseguia dar a volta à condenação do velho e alquebrado poeta que morrera, afinal, com a pátria, conforme as suas derradeiras palavras. E quando terminou a leitura do manuscrito, o alfarrabista sentou-se à banca da cozinha, sobre a qual tinha posto uma velha Remington, alta e gloriosa, de teclas salientes e começou a dactilografar tudo aquilo. Os dedos precipitavam-se sobre o teclado, dando golpes no silêncio das estantes de prateleiras lavadas, nas quais se dispunham milhares de livros. Aquele ruído irregular da dactilografia decerto se escutava no inferno. E dos portos do Oriente saíam barcos para os portos do Ocidente, nos mictórios havia quem se esforçasse por acertar nas diminutas bacias de louça, corajosos alpinistas subiam montanhas de livros velhos, pardos, desfazendo-se, embriagado a curiosidade dos personagens. O gato corria pelas estantes perseguindo o corvo, as empregadas das lojas da vizinhança da livraria de Ivar, riam-se muito das fotografias a sépia que o senhor-barão oferecera ao alfarrabista e este insistira que elas se vestissem e abandonassem o armazém, que passava das duas e meia, mas que não se esquecessem de apanhar as embalagens das pizzas e as colas que haviam comido ali, em plena orgia. Frei Lucas de Almendra, ou seria Ivar, experimentava pela primeira vez o raro prazer de escrever à máquina os seus velhos Argumentos, agora sobre o que lhe parecia ser os novos disparates das índias, não de D. Sebastião, mas do próprio sentido das coisas, enquanto Mr. Hawkins falava com um agitadíssimo Ivar, na sua fleuma de comprador norte-americano de livros para os Estados Unidos, para a Inglaterra, para a Alemanha e para a Áustria, que tentava encontrar outros títulos que lhe interessassem entre os volumes derrubados pelo corvo que já se misturavam com os volumes derrubados pela luta erótica entre as empregadas das lojas das vizinhanças e o velho Ivar, que as arrastou a todas para o sofá da cozinha, onde as aguardam enormes pizzas e litros de cola. Porém, se ele, o alfarrabista, levasse as suas convidadas para o jardim cujo portão que, havia dias, se encontrava fechado, decerto veria um rio, possivelmente o Lethes, sim o do esquecimento, e a meio dele um livro enorme caído na margem, junto ao qual uma bicicleta e uma garrafa cheia de vinho. E também uma fila infindável de postes de electricidade, consumindo a energia da cabeça laureada de Luís de Camões para o cérebro aceso ao rubro de um rei que desenterrava os cadáveres dos seus avós para lhes dizer, cara a cara, que iria vingar Portugal, que arrasaria as plagas africanas com os seus vassalos de guitarra e espada, num ritmo que só teria paralelo no futuro, quando já não fosse possível haver reis nem salvação de almas, mas apenas forças de bloqueio, forças armadas até aos dentes, cavalarias motorizadas, e os seus conselheiros tivessem asas de metal e percorressem os céus do mundo. Apenas Ivar leu este segundo texto de frei Lucas de Almendra, mesmo assim leu-o incompleto porque não lho deixou terminar, nem ele se atreveu a acrescentar nada. Como se o cisterciense fosse um génio da lâmpada, o alfarrabista apanhou-o e meteu-o numa desconjuntada caixa de pizza, passou fita-adesiva em volta, de modo a que não pudesse fugir, meteu a caixa num saco de plástico, onde também despejou toda a areia da velha ampulheta de uma fora e depois, enfiou-se num táxi, e foi lançar aquilo tudo ao Rio Douro.

E quando, no dia seguinte, ao chegar, pelas dez horas, à livraria, o Silveirinha estava a ler o jornal enquanto o Romano fazia sala com Mr. Hawkins e a senhora Rosa tirava a chave da gaveta para ir fazer a limpeza no armazém na Rua da Picaria, o norte-americano perguntou-lhe:

“O meu frei Lucas?”

Ivar ia responder-lhe quando tocou o telefone e ele ergueu o auscultador, antes que qualquer dos empregados o pudesse fazer. Do outro lado da linha estava, despótico, cruel, infindável, sensual e cru, o silêncio que sempre marcara toda a sua vida de mercador de livros antigos, possivelmente demasiado antigos.

José Viale Moutinho

É jornalista, poeta e escritor. Autor de Hotel Graben, Nomes de Árvores Queimadas, entre outros.

Rascunho