O inglês do Cemitério dos Ingleses (Final)

Leia parte final do romance "O inglês do Cemitério dos Ingleses", de Fernando Monteiro
Ilustração: Ricardo Humberto
01/10/2006

31. Bert H. Fielding
Minha primeira dificuldade: os portões de ferro do Cemitério dos Ingleses se encontravam fechados durante a maior parte do ano. Talvez eu tivesse que me valer de sorrisos simpáticos para ajudar no convencimento de algum zelador, patrício dos mortos estrangeiros, apresentando-me como jornalista especializado em necrópoles vivas e mortas, do Brasil e do exterior…

Bobagem: o Cemitério dos Ingleses contava com um administrador particular, “eleito por ingleses ou seus descendentes que ali possuem jazigos”, dizia um folheto da Fundação de Gilberto. “O lugar já teve o nome de estrada de Luís Rego, no Sítio das Salinas. Não foi apenas a última morada de ingleses anglicanos, mas também, nos últimos tempos, de holandeses, franceses, suíços, americanos, alemães, não apenas protestantes, e inclusive de brasileiros não-protestantes. Naquele cemitério permanecem os restos mortais do general Abreu e Lima, que, na época, embora cristão, e não declaradamente protestante, não pôde ser enterrado nos chamados Campos Santos, devido à intransigência do bispo católico Francisco Cardoso Ayres.”

Sempre termina se recorrendo ao mestre Freyre, de um modo ou de outro. Gilberto, entretanto, refere muito ligeiramente a questão da “intransigência” do bispo de Olinda, recém-chegado da Irlanda, onde fora estudar (Irlanda, Irlanda: ela sempre dá um jeito de estar presente nestes destinos que vou encontrando). A disputa era, naturalmente, em torno do liberalismo religioso. O bispo negou a sepultura canônica ao livre pensador — que poderia ter assinado a pérola de Vão Gogo: “livre pensar é só pensar”.*

Após muitos sorrisos (e algumas mentiras), consegui penetrar no campo santo dos britânicos sepultados tão longe de casa. O cemitério parecia dormir sob uma pátina geral conciliando túmulos novos e da primeira metade do século 19, de brasileiros e estrangeiros para sempre exilados naquele terreno da morte quase no meio do bulício de tráfego da rua atrás e na frente dele.

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* Quando ficou o cadáver de Abreu e Lima em 8 de março de 1869 à espera da permissão para ser sepultado, e esta não veio, houve revolta, manifestações populares e dos grupos liberais e maçônicos. Tudo só serenou quando se soube que o corpo era dado como bem-vindo no Cemitério dos Ingleses, onde falaram oradores exaltados (Franklin Távora, Vasconcelos Drummond) no momento de baixarem à terra os restos cansados do velho general das lutas pela libertação do continente. Lê-se, na campa encimada por uma cruz do antigo tipo, hoje sob a sombra de um jambeiro: Aqui jaz/ O Cidadão brasileiro General/ José Ignácio de Abreu e Lima,/ Propugnador esforçado da liberdade de consciência./ Faleceu em 8 de março de 1869./ Foi-lhe negada sepultura no Cemitério Público/ pelo Bispo FRANCISCO CARDOZO AYRES/ Lembrança de seus parentes.

Não importa que fossem exilados de um tipo diferente daqueles denunciados nos quartéis-generais de 1968 (pesquise-se o assunto fora dos muros da Fundação de Giba, o patrono que deu lá a sua contribuição de “limpa-espadas”). Os exilados ingleses do cemitério de passeios estreitos entre os sóbrios túmulos, não eram vítimas de delatores e ditaduras, mas comerciantes auto-exilados, torturados pela cobiça, marujos expulsos da pátria pela ânsia de se aventurar nos mares, soldados inquietos que tinham vindo dar com os costados no ancoradouro do antigo povoado de São Frei Pedro Gonçalves, além de clérigos de colarinho e pau duros, sepultados com discrição que em nada lembrava os delírios sepulcrais de muitas das falsas tumbas “romanas”, “gregas” e ecléticas do Cemitério de Santo Amaro (o principal do povoado depois transformado em vila, cidade e capital da antiga Capitania de Duarte Coelho).

Eu e o zelador — que existia, sim (e era um homem compreensivo) — levamos algum tempo até localizar a lousa de “HENRY FIELDING JR., ESQ.”, solene e simples, mas com as datas borradas. As datas de nascimento e morte do filho de Fielding, porém, já não me interessavam para nada.

Logo que vimos a campa de Fielding, meus olhos enxergaram, bem ao lado, a mais inesperada das lousas solitárias de um cemitério raramente visitado. Não acreditei no que estava vendo. Eu viajara acima das nuvens, descera debaixo da chuva e espirrara sobre mesas de documentos da recente história inglesa, em busca do morto que se encontrava ali, na terra de vermes patrícios… Era difícil aceitar que ele estivesse perto assim, durante o tempo todo, sem mais mistérios do que o túmulo dos mais novos, nos quais os nomes eram lidos sem dificuldade, como aquele bem na minha frente. Claramente se lia o nome: BERT HARGREAVES FIELDING…

Que importância tinha, agora, o negociante no ramo de bacalhau que — aos olhos de Gilberto Freyre — deslustrava a legenda do pai romancista? Ali, vizinho do seu túmulo, estava o mármore — muitíssimo mais branco — da campa do ciclista de Dorset, uma tumba não tão velha quanto as demais, e, de alguma forma, inacreditável para mim: eu havia feito uma longa volta até gaguejar o nome como se fosse o de um fantasma acabado de encontrar bem debaixo da cama, placidamente sepultado no cemitério inglês da minha cidade, defunto que me importava mais do que todos que eu fora procurar na distante Inglaterra, menos de um mês antes, gastando um bom dinheiro, perdendo meu tempo e entrando por uma perna de pinto e saindo por uma perna de pato entre todas as Grahams e todos os Fieldings que haviam se cruzado, na atmosfera fria do Museu Britânico, com Burtons, Blunts, Casements e todos os servidores fiéis e traidores, perdoados e não-perdoados, cujos títulos e nomes iam sendo borrados pelo limo do esquecimento, pela borra do tempo acumulado sobre as gerações que, para horror dos Suassunas, ouvem rock, funk, rave, ad hoc

BERT H. FIELDING
Fellow of All Saints College
Oxford
May, 16, 1920
September, 19, 1988 

DOMINUS ILLUMINATIO MEA

32. O arquivo M. Graham
Eu havia trazido cópias de muitos dos arquivos consultados em Londres — quando isso era possível, o arquivo não era um catatau e, o preço, apenas o da fotocópia. Um deles fora o material do infeliz Zydanov, mal folheado ainda na capital das mil câmeras (cinco milhões, caminhando para seis, em breve); nunca mais me livrarei da sensação de estar sendo vigiado na “Big Sister” de penteado de solteirona atenta a todos os seus súditos e aos estrangeiros, mais do que a todos. Que vida horrível para paquistaneses, indianos, africanos e árabes suspeitos antes de dizer um “a”. Os bobbies estão de olho vivo, auxiliados pelas milhares de lentes de Dr. Blair-Mabuse de orelhas de abano. A Inglaterra deve ser cortada dos planos de viagem de quem se sinta incomodado pelo olhar da vizinha fingindo estender a roupa enquanto vigia as visitas femininas e masculinas do apartamento do inofensivo descasado cuja gentileza costuma auxiliá-la a subir com as sacolas de compras (um saco). Apesar disso, a senhora está disposta a saber tudo o que se passa na casa do vizinho, nem que tenha de comprar um binóculo de segunda mão, no brechó onde já adquiriu uma máquina fotográfica supermíni, para trabalhos de detetive amadora. A Inglaterra sente saudade de tudo: até da espionagem dos anos frios, nos bairros afastados e no centro das grandes praças de pombos-correios monitorados. A “pátria-mãe” dos agentes secretos (para Conrad) nunca deixou de espionar os outros, de longe e de perto, sendo que, a si própria, dedicou sempre especial atenção, através de falsas portas, bibliotecas de furos atrás das obras-primas de fachada e quartos vazados por meio de quadros onde o olho do cavalo escondia o olho humano do falso cavalheiro à espreita do outro lado…

Zydanov alegara inocência o tempo todo — “Eu não tive nada a ver com as atividades clandestinas de Sir Anthony Blunt”, repetiu, como um boneco de ventríloquo. Já disse que ele era a cara do ex-camarada chefe da KGB, Vladimir Putin? Um tanto fuinha nas fotos, o cabelo ralo bem repartido e olhos vigilantes e meio sonhadores daquele modo estranho dos eslavos em geral (ou dos russos em particular). Podia vê-lo sonhando com as viagens de Maria Graham como uma forma de evasão encontrada quando sua vida se arruinou, na prisão. “Ele voltou tão esquisito” — Sarah soltou, no meio das suas frases sem vírgula — “uma vez quis me bater, você acredita?, quando deu para beber e escrever longas cartas para os jornais com falsos nomes que os jornais deixavam de publicar quando iam checar os dados”…

O arquivo Graham continha, como anexos, interessantes digressões sobre espiões e espiãs de várias épocas (incluindo T. E. Lawrence, sob não pouca atenção como “agent provocateur”; Lawrence não foi um espião profissional como Von Rintelen ou, melhor, como o seu desafeto Kim Philby, mas está listado entre aqueles que trabalharam com espiões ou sob as ordens deles. É assim que o seu “chefe”, D. G. Hogarth, pode ser considerado: um respeitado arqueólogo cooptado para o trabalho de espionagem no Oriente Médio porque tinha vocação e talento para trabalhar com uma rede de informações que utilizava inclusive as escavações científicas como disfarce para operações arriscadas na Palestina e no antigo Crescente Fértil).

Parece que Zydanov tomava Maria Graham por uma colega disfarçada de viajante, como tantos espiões do século 19. Seja como for, conseguira investigar, sob vários aspectos, a vida da tataravó da sua esposa inglesa — até lisonjeada por vê-lo interessado na “mulher encantadora”, cuja passagem pela Província de Pernambuco iria definir o destino de Henry Fielding Junior.

Vamos aos dados: primeiro, ele tivera que vir de Portugal para tentar resolver, na Província de Pernambuco, o arrastado “caso” das 500 barricas de bacalhau apresadas no porto do Recife.

Cansado de esperar por medidas “mais efetivas” da parte do cônsul John Parkinson — que tão somente se limitava a enviar ofícios e mais ofícios ao “Presidente e Membros da Junta Provisória”, etc. —, o filho de Fielding se largou de Lisboa, cidade onde estava estabelecido desde a morte do pai. A família Fielding gostara do clima, do povo e do sono da capital portuguesa (Henry escreveu sobre como havia sonhado com as florestas de Sintra — antes de vê-las, enevoadas, em torno do alto castelo).

Seu herdeiro ainda se mantinha decidido a viver e morrer em Portugal — como um daqueles ingleses que viviam em quintas afastadas —, quando embarcara no brigue Irene, de bandeira inglesa, rumo ao Brasil, onde o imbróglio do bacalhau permanecia sem solução naquele lugar de nome esquisito: Pernambuco. O nome lhe atraía e causava, também, uma certa repulsa. Parecia o encontro de uma xícara Tudor delicada com um pires feito de cabaça, de uma cuia africana lisa sobre o sol e amaciada pelo oceano sem modos que era o rude Atlântico. Por pura questão de negócio, havia se juntado aos passageiros no navio comandado pelo capitão Tidmarsh — velho amigo da viúva do capitão Graham (seu colega de Escola Naval) — e viera aportar na cidade sobre a qual se informara previamente: o nome Recife vinha de “povoação dos Arrecifes”, a barreira de pedras que protegia o ancoradouro natural da “Nova Luzitânia”, designação primeira das terras de um certo Duarte Coelho, fidalgo português e primeiro donatário da Capitania de Pernambuco (nome indígena que significa mar furado)…

“Ah!” — Fielding Junior riu, quando ficou sabendo o significado da palavra que lhe desagradava: ele tinha medo do mar e dos seus abismos, pesadelos com o fundo de treva dos oceanos em geral, e um “mar furado”, um abismo de água com um buraco sem fundo lhe dava quase náusea, agora, ao desembarcar cercado de mulatos carregando cargas e bagagens, quase nus, guturais nas expressões que usavam para oferecer seus serviços…

Agora, o filho do “notável” romancista (o adjetivo preferido da balouçante dentadura de Freyre) deve ser deixado a se equilibrar, na descida para o cais sem trato de onde sobe a mistura do aroma adocicado de abacaxis com a maresia salgada que vem salpicar suas suíças ruivas. Nosso olhar precisa acompanhar apenas a subida, apenas dois dias depois do atracamento, de duas moças e de uma senhora de luto que visitam o Irene, de nome agradavelmente feminino. Elas estão acompanhadas do oficial capitão dos portos, pois as moças são as filhas do capitão-general Luís do Rego Barreto, e a senhora é a viúva Maria Graham, as três de visita ao brigue inglês de velas arriadas, limpo, varrido e preparado para receber a gentil senhora e as senhoritas um tanto incomodadas com os cheiros agressivos que teimam em entrar por suas delicadas narinas. Então, a progressão é rápida, debaixo das sombrinhas de seda cara, elegantes, porém inúteis contra o sol forte que já secou a lama dos frutos esmagados na temporada de chuvas. O capitão dos portos entrega as três aos oficiais do Irene, descidos com o gentil intuito de supervisionar a subida das damas. São as primeiras visitantes femininas do brigue, pelo menos num porto do Brazil, o vento se frustra contra as velas presas por cordas que recendem a alcatrão e florestas derrubadas, o mar é uma saudade das árvores, suas saias são puxadas um pouco para cima, pelas mãos enluvadas, entre leques e perfumes, mesuras e frases decoradas de pura cortesia diante da costa primitiva para além do ancoradouro em confusão. Esta cidade será esquecida, tão logo ultrapassem a barra, na partida, haverá vento no sentido da África ainda mais primitiva, e essa palavra plana, acima das cabeças, como uma ave menos serena do que desconcertada.

de maneira que Maria Graham e as duas filhas de “Do Rego” — como ela chama — foram as primeiras a visitar o barco, debaixo do sol que só queima a parte visível (muito pouca) da pele branca da senhora pelo tempo da caminhada até a cabine do comandante e demais convidados. As sombrinhas foram fechadas, logo ao subir, pois, entre as superstições dos marinheiros (e Maria Graham foi mulher de um marujo supersticioso), está a do azar que traz um guarda-sol ou guarda-chuva aberto num navio honesto. As meninas, entretanto, são naturalmente bronzeadas, e resplendem de juventude bem orientada pela esposa do governador português, filha de uma irlandesa. Na cabine, são recebidas pelo velho Tidmarsh, pelo imediato Mr. Newcombe, pelo oficial-médico Dr. Tully e pelo ainda passageiro, o jovem Fielding, escalado para tornar menos monótona a visita das duas meninas aos três senhores vestidos com todo o rigor da elegância possível numa longa viagem para lugares que cheiravam daquele jeito. Para surpresa dos anfitriões principais, o jovem, no entanto, não se interessa pelas “Do Rego”, mas cai sob o fascínio da “encantadora senhora Maria Graham” obscurecendo de todo (para ele) as herdeiras da primeira família da Província.

É o que consta de uma carta de Tidmarsh, que especula sobre o filho de Henry Fielding que se parece — diz o capitão — com o seu próprio filho:

“Os romances do pai talvez lhe povoem a cabeça (o que não deixa de ser bem compreensível). Na viúva do pobre Graham, escritora e viajante, ele viu uma mulher corajosa e culta — pois ela o é, de fato, e isso transparece logo ao se tomar a mão desluvada, para o beijo que mal deve tocar a pele. Nisso, o jovem Fielding não se mostrou totalmente educado, uma vez que demorou com os lábios, um pouco demais, sobre a perfumada mão da senhora. Ela é tão desenvolta que não se deu por achada”…

Ao que parece, Maria Graham ficou também encantada — nos limites do que a palavra quer dizer, socialmente. Fielding era filho do autor de Tom Jones — que escreveu tantos livros, mas sempre será conhecido pelas famosas aventuras do “Enjeitado”. Dividindo-se a conversação entre todos, para ninguém se cansar com o mesmo interlocutor (o médico Clayton só falava de doenças tropicais e outros assuntos da sua profissão), a tarde decorreu entre delicadezas de que só os antigos marinheiros eram capazes, os capitães conradianos saudosos dos doces da terra, homens que sabiam perceber a finesse com que mulheres educadas podiam se servir à mesa, despertando a saudade das melhores recepções, na boa sociedade.

A cena pode ser revista, à maneira das aquarelas de Maria Graham: o capitão Tidmarsh ainda compungido pela morte do amigo, a viúva recebendo as homenagens limitadas ao que um navio em viagem pode oferecer a convidados de escol, no trópico, e Henry Fielding fazendo o possível para impressionar aquela viajante que sabia conversar sobre todos os assuntos. Mais do que isso: Henry tentando iniciar, ali, uma corte discreta (como teria de ser, em face da condição dela, de viúva recente — e mulher cortejada por um homem mais moço).

Seja como for, não deu em nada. Fielding Junior se tornou também um “engeitado”, com jota e com gê, naquele caso, pois a Graham era assim: resistente, recatada quando tinha de ser. Talvez não estivesse interessada num homem mais moço que ainda não fizera nada de mais brilhante do que exportar bacalhau, com bons lucros — e raras pendências como aquela que o trouxera ao Brasil, país logo “fascinante”, para ele. Por influência de Maria Graham, toma-se de interesse pelas contendas locais, e pouco depois estará entre os estrangeiros que apóiam a causa dos revoltosos de 24, com os quais parlamenta uma “emissária de Lord Cochrane” que não é outra senão a sua admirada “Mary”. Consta que o Lord precisava de quem entendesse muito bem o português, fora do quadro dos seus lugares-tenentes britânicos e cariocas da corte do malvisto imperador dos brasileiros. Os ingleses nem sempre sabiam em quem confiar, no que diz respeito a intérpretes idôneos para causas que misturavam interesses políticos — nativistas e estrangeiros — e a sempre difícil posição de alguns ingleses simpáticos aos anseios de um povo em formação, numa terra longínqua e de pouca cultura.

Fielding não era o primeiro, nem um caso isolado de simpatia pelos revolucionários de Pernambuco, entre “ingleses residentes” (o que ele logo se tornaria). Em 1817, o negociante Charles Bowen aderira ao ideário e às lutas dos revoltosos daquele ano, tendo “se insurgido” contra a idéia, trazida de fora, de armar um vaso do movimento nativista — caso vitorioso — para ir libertar Napoleão do cativeiro no insalubre rochedo de Santa Helena, no Atlântico Sul ainda mais inóspito.

No caso de Fielding, parece que ele esteve, de fato, entre os pouquíssimos britânicos perfilados ao lado da “Revolução de 1824” — conforme recorda o incontornável Gilberto Freyre (cito-o pela última vez, prometo) — uma vez que, com o Cônsul Parkinson à frente, todos os britânicos da Província haviam ficado “contra os revolucionários e a favor dos ‘portugueses’ e imperiais, porque estes lhes deviam de 500 a 600 contos”.

Depois disso, há poucas notícias de Henry Fielding Junior. Dizem que se internou pelo interior, como ex-negociante de bacalhau interessado nas minas que podiam existir nos sertões abandonados. Seria isso mesmo? Há quem registre a sua passagem por vilas recônditas do Maranhão, do Piauí distante, atraído para dentro do Brasil como quem se atrai pelo fundo lodoso de uma lagoa desconhecida onde afundou um espelho perdido pelas amazonas nuas, que cavalgavam cavalos brancos em pêlo, guardiãs de algum segredo das matas brasileiras. Outros dizem que Fielding enlouqueceu lentamente, viajando quase sozinho, por estranhas paragens. Esses o viram, cercado dos guarás que criava, com o olhar perdido dos estrangeiros que dormem sob as estrelas. “Esse inglês desapareceu dentro dele mesmo, e só há de voltar quando encontrar o fantasma que o persegue” — escreveu o padre Manuel Fructuoso, um tanto misteriosamente, em 1824.

No mesmo ano, saíra em Londres o livro de Maria Graham sobre o Brasil, JOURNAL of a VOYAGE to BRAZIL and residence there (during part of the years 1821, 1822, 1823), publicado por Longman, Hurst, Rees, Orme, Brown, Green and J. Murray, Albemarle-Street.

Entre tantos nomes ingleses, dentro e fora do livro, não há nenhuma referência ao filho de Henry Fielding — o inglês que viera a pretexto de resolver pendências da exportação de bacalhau e terminara se apaixonando pela Graham, pela terra e pelas revoluções pernambucanas.

Esse é o homem que jaz sepultado no Cemitério dos Ingleses do Recife, ao lado de Bert Hargreaves Fielding, o ciclista que estaria pedalando, juntamente com Frank Fletcher, no dia 13 de maio de 1935, segundo a farsa montada da morte de Thomas Edward Lawrence num acidente de estrada, a caminho da agência do correio, com correspondência que foi confiscada (e da qual nunca mais se ouviu falar), depois de permanecer seis dias em coma, velado por agentes da segurança de Sua Majestade.

O que Bert viera fazer no Brasil?

Tudo o que pude obter ocupa o espaço de três linhas, apenas, de papel perfurado do computador que só responde — e mal — às perguntas que não formula: Bert Fielding foi funcionário da agência do Lloyd’s Bank na “Veneza brasileira”, era solteirão e — lá está a data — faleceu em 19 de setembro de 1988, uma tarde de começo do verão ainda matizado pela elipse do outono no trópico (a frase tortuosa não é minha, nem jaz no computador quase sem arquivos sobre Fielding), quando você “caminha sobre folhas que estalam, e recorda, ou sabe que dará voltas e mais voltas somente para encontrar a pista de uma falsa resposta para algum falso problema no ponto de partida quem sabe debaixo da cama da honra a desoras negligenciada naquele posto de fronteira entre dois leitos de fiapos de algodão e neve esmagados na lama da chuva, há muito tempo”.

33. Quem escreveu isso?
The only remaining witness to the accident which killed Lawrence of Arabia”… — o jornal da comunidade inglesa no Recife dera a notícia na edição de outubro.

Era um tablóide de quatro páginas, patrocinado pelo Lloyds. Encontrei a referência na coluna de óbitos dos cidadãos britânicos oficialmente radicados na cidade onde o Journal se orgulhava de existir desde os tempos de Delmiro Gouveia (não que eles citassem Delmiro — eu é que faço os cálculos e remonto ao pioneiro inimigo dos ingleses, no final da vida encurtada por tiros ainda não explicados), dos serviços de trens e bondes, do gás encanado, da iluminação pública e do telégrafo por cabo submarino, além da exportação de couro e da fabricação de linhas de costura, nas quais competiam diretamente com Delmiro. Os escritórios de firmas britânicas eram muitos, na capital de Pernambuco, até meados do século passado, e a influência inglesa havia superado a francesa desde quando a população do Recife ultrapassara dos 40 mil habitantes, aí por volta do ano da inauguração oficial do cemitério exclusivo dos súditos de Sua Majestade distante.

Pintada essa breve aquarela sobre os tempos da Great Western, voltemos à nota de dez linhas sobre Bert Fielding, uma notícia de redator equivocado, ao afirmar que se tratava da “única testemunha remanescente do acidente que vitimara T. E. Lawrence”.

Não era. Frank Fletcher estava vivo em 1988, a se acreditar na sua morte recente, “cansado de responder às eternas perguntas sobre um acidente perdido no tempo” — havia dito Dennis Fletcher, ouvido em Wareham: “Frank was the last witness and he was tired of the inquisition and all the questions”, etc. Ainda em Londres, eu fora em busca do necrológio impresso, com as declarações do irmão – convencionais como qualquer outra, exceto pela menção do furgão preto, deslocada naquele contexto de frases cinzentas (“he said he’d had enough over all the years from 1935 — people have been tracing him from all over the world”, etc.)…

Eu não podia ter dúvidas sobre a morte de Fletcher, mas sublinhara com lápis aquelas frases insistentes: “Stories of a mystery black car fuelled the conspiracy theorists and Frank spent his entire life telling reporters he saw no black car on the road that day, no black car around at all” (era um tanto enfático demais dizer que não havia carro preto nenhum na estrada, naquele dia, nem nos arredores, avistado pela verdadeira testemunha remanescente do “fatal crash” que matara o herói na curva das adesões perigosas de meados de 1935)…

Fui perguntar ao zelador se ele se lembrava daquele sepultamento de 1988, um dos últimos. O homem não fez nenhum esforço, e disse que se lembrava, sim, porque ali já quase não se sepultava ninguém, quando Bert H. Fielding viera descansar entre jambeiros, mangueiras e sapotizeiros bons para sujar túmulos, com os frutos pesados de uns e outros a caírem, como bolotas marrons do outro, sobre as campas quase todas velhas de outro século de viagens a bordo de brigues e veleiros rápidos, empurrados pelos ventos. Meia dúzia de pessoas tinham vindo acompanhar o sr. Fielding, no seu passeio derradeiro à face da Terra, longe de Dorset como de Singapura, onde se queimava incenso também pelos mortos estrangeiros (o que nada tinha a ver, mas foi a frase completa do zelador).

“Incenso?”

“Ervas aromáticas. Queimaram por ele, também.”

“Por Fielding?”

“Por esse aí. Veio uma mulher e acendeu em volta. E cantaram o hino inglês, eu acho.”

“Havia um retrato aí?”

Eu estava apontando para o oval esvaziado, no lugar onde as campas às vezes exibem os tristes retratos dos mortos.

Ele negou com a cabeça: “Nunca teve. São muitos assim — apontou em volta — que ficam sem o retrato do falecido porque ninguém vem mais trazer, depois que se livram do morto”.

Era um ponto de vista um tanto cínico, para ele. E mais nada havia sobre Bert Hargreaves Fielding no Recife.

Restava o arquivo de Aleksander Zydanov, nas notas esparsas que tratavam não especificamente do acidente, mas do entorno de sombra — no ano que transcorrera com importantes mudanças no cenário político da Europa — do assunto mais amplo que interessava ao marido de Sarah (espiões e inocentes caídos nas armações da segurança, etc.). No caso das notas referentes a Lawrence, mais uma surpresa: Zydanov se servia de um manancial, extra, representado por informações colhidas pelo seu pai, ex-agente da NKVD que estivera em Dorset, prestando atenção a detalhes, atento ao sepultamento, às placas dos carros, às conversas ouvidas na estação e no hospital militar para onde levaram um acidentado “muito especial”. Zydanov pai era fluente em inglês e passava, facilmente, por um major reformado, puxando por uma perna mais do que sadia (para compor melhor a “imagem do militar em visita aos velhos postos da camaradagem entre oficiais do Império jacente”).

Que estilo interessante, o do velho, “a ouvir os clarins da despedida naquele quartel cujos toques, rispidamente improvisados, pareciam transmitir — pura impressão? — o mais breve dos sentimentos do fim de toda uma época”. E mais: “Hospital de Bovington: pequeno, serve de enfermaria de campo, era o mais próximo naquela emergência (e depois não era possível a transferência do paciente em coma profundo). Foram enviados Sir Farquhar Buzzard, médico pessoal do rei, além de um especialista em cérebro do Hospital de Londres (Dr. Cairns) e do Dr. Hope Goss, reumatologista renomado na Inglaterra. Domingo, 19 de maio, 8 horas e 15 minutos da manhã: soava o toque de alguns sinos quando ele morreu vigiado por dois inspetores à paisana que se revezaram à sua cabeceira durante os seis dias de coma. Não se via a ferida — na parte posterior do crânio — mesmo sem a bandagem de algodão na cabeça. Havia só uma equimose acima do olho esquerdo. Todas as menções de um ‘furgão preto’ na estrada do campo foram eliminados dos autos elaborados pela polícia”…

34. Seleção das notas de Zydanov sobre
T. E. Lawrence: “Ao falecer, ele era um homem ainda jovem (47 anos incompletos), com físico de rapaz bem treinado e toda uma preparação militar, por sobre a experiência de caráter excepcional na Arábia. Havia bons motivos, portanto, para o temor — de certos setores da inteligência inglesa, agitados por todo tipo de informação, nos anos pré-guerra — de que o velho ‘recruta’, recém-desmobilizado, viesse a se tornar numa espécie de reserva perigosa, ‘disponível’ para ser eventualmente recrutado, ele e a sua legenda, por partidos diversos, do nacionalismo irlandês ao fascismo britânico”.

“As duas forças políticas coincidiam em muitos pontos de vista — e a segurança estava de olho nas pontes de ligação que fizessem um homem como Lawrence ir um pouco mais longe do convescote sobre temas amenos, na casa de alguns irlandeses notáveis. Colhê-lo na rede das ‘causas perdidas’ não parecia tarefa muito difícil, em se tratando daquele soldado amigo de homens de letras (Bernard Shaw, E. M. Forster, Robert Graves, David Garnett), ser enigmático sob muitos aspectos e irlandês se ‘autodescobrindo’ para além de Tremadoc (‘você não é galês, Lawrence. Você é um celta da Irlanda, desgarrado e traído pela maldita Coroa’)”.

“Em face de qual necessidade o serviço secreto britânico fez deslocar seis agentes com ordens para permanecerem, vinte e quatro horas, à cabeceira e à porta do quarto do moribundo? Ao mesmo tempo, outro grupo era enviado para ‘guardar’ a pequena casa de campo do ex-agente resistentemente incômodo, a fim de controlar todos os acessos à casa de T. E. Lawrence, cottage chamado de Clouds Hill, vigiado também pela polícia local até se dar o óbito do proprietário, precisamente às oito horas e quinze minutos da manhã de 19 de maio de 1935.”

“Muitos fatos permanecem obscuros, nessa estranha vida, mas alguns outros vão se encaixando ou se aclarando, atualmente, quando mais do que nunca se afirma uma certeza (expressa em documentos oficiais da época): o serviço secreto temia o próximo movimento do ‘soldado Shaw’ — o nome de Lawrence na caserna — muito mais do que receava a ação de estrangeiros trabalhando, no território britânico, contra o Reino Unido.”

“Para a segurança interna, Lawrence era misterioso demais — e ‘talvez explosivo em associação eventual com a direita, o separatismo irlandês e outros redutos de terrorismo político’. Para a extrema direita (e a esquerda, idem), a legenda do herói de guerra seria uma bandeira de valor inestimável, e a experiência do ex-coronel, na guerra de guerrilha, poderia ser útil, militarmente, nos planos futuros de qualquer facção ideológica que pretendesse tomar o poder na Inglaterra. Instruídos por Londres (ou Berlim, quem sabe?), os fascistas de Morley vinham já assediando ‘Lawrence da Arábia’, através de visitas e cartas que procuravam tocar feridas e mágoas do herói ainda ressentido com o desfecho de 1919, na Conferência de Paz que sepultara as promessas feitas aos árabes. A Conferência do Cairo, em 1921, mal remendara o tecido rompido do mapa, costura feita grosseiramente para chamar de Iraque e Transjordânia dois desenhos, mais ou menos abstratos, confiados ao compasso e à régua do ex-cartógrafo Lawrence, lotado na seção árabe do Alto Comando do Egito, o antigo ‘Bureau’ agora fechado sobre os sonhos empoeirados da ‘nova Ásia’. O agente Compton MacKenzie anotara, em relatório para Londres: ‘Aí está um material excelente para ser trabalhado pelos nossos oponentes. Nestes tempos de ventos ruinosos que sopram não só na Alemanha, eles acorrerão para Dorset, a sim de fazer-lhe a ‘corte’ bem debaixo dos nossos narizes virados para Londres’… Isso foi escrito em janeiro de 1935, o ‘material’ era T. E. Lawrence (ou Shaw), que MacKenzie conhecia desde Basra, durante o cerco de Kut El Amana. Nas entrelinhas, uma sugestão velada — que não se pode nem chamar de velada — do que fazer ‘no caso de alguma aproximação mais perigosa’. Era a opinião de um expert, claramente expressa: ‘nenhum governo pode se dar ao luxo de arriscar a casa, guarnecendo-a de sete travas de segurança somente depois de assaltada’”…

“Para o órgão mentor da segurança interna, o agente que havia sido o jovem T. E. já dera ‘o que tinha a dar’, como orientalista de campo — e o que havia a temer agora era o ‘deserto da sua alma’ ou, para usar a metáfora de MacKenzie, ‘o caminho mais curto que se abriria até ele, nas folgas da desmobilização, para as ofertas de tentadores de todas as bandeiras’. Lawrence se preocupava, às vésperas de ser desmobilizado, com uma possível inadaptação à vida civil — após atingir a idade limite do recruta que ele optara por ser (para escândalo dos antigos colegas do estado-maior do Egito e outros quartéis-generais de oficiais cheios de orgulho pelas patentes custosamente alcançadas). Mesmo se encaminhando para atividades como a literatura, ele não conseguia ser anódino: acenava com a possibilidade de escrever a biografia de um ‘traidor’ (Roger Casement), louvando-o em nome dos irlandeses. Na linha vermelha do alerta de ‘perigo iminente’, havia os contatos dos fascistas locais (Mosley, Cliveden e outros) com o herói magoado, ainda cheio de amargas queixas do governo inglês. E a facção socialista não se interessava menos por conquistar a legenda ‘Lawrence da Arábia’, já procurado por Ernest Thurtle e demais marxistas que também faziam tentativas de aproximação, espionadas e documentadas por correspondência violada e outros truques. Tais manobras, de ambos os lados, visavam o ex-condutor de homens, no deserto, o qual já escrevera, em carta para John Buchan: ‘Os trabalhistas julgam-me um espião imperialista e os conservadores consideram-me um bolchevista’ (trecho de carta datada de 1931).”

Então, alguém imbuído de muitos (e graves) receios — além de prognósticos baseados na análise daquela “alma disponível” —, concebe um plano simples e engenhoso, a fim de remover o perigo pela raiz da árvore mais alta da floresta que se movia para “assassinar o sono”…

Epílogo
Recebi um postal de Gerald Glaser. “E então, que tal a Londres dos amigos solenemente desprezados?”

Como ele soube? O cartão mostra os jardins e a fachada do Imperial War Museum, com os canhões apontados para o céu claro de algum verão inglês qualquer, em colorida foto turística. Suponho que os seus próprios postais acabaram, afinal, ou que Glaser quis enviar uma imagem de algum modo relacionada com Lawrence (no IWM, há uma vitrine de objetos pessoais de T. E., além de ser o museu depositário da maior parte dos documentos relativos à Revolta Árabe e à vida do seu animador legendário).

Não respondi nada. E até me desfiz de todos os postais que ele enviara, formando uma pequena coleção de africanas, árabes e gente que ele havia fotografado em países pobres. Há um momento em que as coisas guardadas fazem mal, cheiram a guardados em gavetas de baratas. E precisava me livrar de Roma, de Lisboa, de Madri, de Londres — das cidades onde fora um outro. Nada a ver — a destruição dos postais de Gerald — com suas informações duvidosas. Por isso, não quis sequer que os árabes e as africanas prosseguissem sorrindo ou apertando os olhos contra o sol, para a câmera, nas mãos dos amigos que haviam pedido, um dia, as fotos de Glaser. Destruí as dele (e outras), rasguei algumas cartas — inclusive de Sarah, de 86 e 87. Queimei o que era menos fácil de rasgar, e, assim, não diria que estou novo, mas estou aliviado pelo menos de uma parte dos papéis, das coisas acumuladas como se o entorno mais a passagem dos anos não fossem capazes de modificar o passado.

Escrevi, porém, para Sarah Graham. Uma carta, longa e terna, que não mais procurava (nem podia procurar, de fato) a imagem de uma moça magra, com as axilas por raspar, a galgar a ladeira de São Francisco, em Olinda (que hoje subiríamos com esforço), uma inglesinha já morta na senhora que eu visitara antes de voltar, tomando o caminho da umidade lacrimosa de um dia particularmente desesperado, em Londres. Não devia ter ido. Quero dizer, nem sequer devia ter viajado e, muito menos, caçado coisas do passado — que não se modifica, idiota —, fuçado longe, na chuva, o endereço de Paddington, da “viúva Zydanov”, da ex-senhorita Graham, da sensitiva que podia adivinhar…

Bem, não importa. E ela ainda não respondeu.

Estou traduzindo o conto de Roger Casement (Samadhi), para publicar numa revista literária de Minas.

Ando sonhando com Ludmila, de vez em quando (ainda assim, mais do que me parece decente sonhar com uma adolescente vista numa sala, o seu joelho redondo opaco como um espelho de bronze morto após dois mil anos), e não com Sarah, com quem costumava sonhar freqüentemente, no Recife. Entretanto, Luddy não é parecida consigo própria nos sonhos, ela dança por alguns minutos ou salta para a garupa da moto do namorado (ambos na certeza imortal de pertencerem a um mundo novo, sem futuro, sem passado e, talvez, sem esperança). Seu rosto vago — que eu evito olhar — se parece mais com o da mãe, na juventude. Quando ela sai (e ela sempre sai, sem se despedir), o sonho acaba.

“Perdemos qualquer coisa que passou” — estava escrito em algumas estações do metrô londrino apinhado, eu sei que era uma piada, mas faz sentido. Um sentido geral rabiscado não em código, mas em palavras abertas para estranhos. Tem a ver com tudo, incluindo as decepções de todas as idades. Nas estações, grafitados em vermelho, os restos da frase apagada (e reescrita, de novo, por cima), talvez obtenha (há tanta dúvida) hipnótica atenção de pessoas como eu, enquanto outros já estão acostumados com a enigmática piada que poderia ser também o começo de algum poema de Yeats visitando mais uma escola, como senador — com o “sorriso de estadista sexagenário” —, enquanto repara nos rostos perturbadores das crianças à volta, confiantes, na beleza decadente da professora que o recebe entre colunas de mármore e do seu próprio ar de solene espantalho hesitante, sentindo quanto tempo — desde a sua juventude — havia passado até o “esfriar do sangue no coração”.

Algumas das peças saqueadas do museu nacional iraquiano foram localizadas: em Israel, e encontrou-se a espada de Abraão no museu particular de um colecionador, que está preso. Duas outras estavam à venda, no mercado negro de antiguidades, em Amsterdã — e eram também das mais importantes: a harpa do cemitério real de Ur e o bocal de Uruk, em delicado calcário que sofreu danos, infelizmente. Estão sendo restauradas.

Um maio de chuvas — nada mais normal — está alagando as zonas pobres da periferia e tornando intransitáveis algumas das avenidas mais trafegadas, de maneira que os jornais dão as notícias de sempre, mostrando casas de morros que desabaram e outras à beira disso, sobre abismos cobertos de oleados, enquanto se socorrem vítimas soterradas à noite, debaixo dos aguaceiros tropicais raivosos.

Foram encontrados mais destroços do avião de Antoine de Saint-Exupéry, desaparecido numa missão de reconhecimento, em 31 de julho de 1944. Ele caiu na costa marselhesa, agora se sabe com absoluta certeza.

Soldados brasileiros partem para o Haiti, em missão de paz no país que incomoda a consciência branca como uma ferida na perna de um mendigo sentado na soleira da porta do capitalismo ocidental em plena… Deixa pra lá.

Às vezes, penso que não estive em Londres, recentemente, vendo a tevê transmitir as notícias das escaramuças do Iraque ocupado e, logo em seguida, encerrando os noticiários com alguma amenidade como o nascimento dos sete bebês de Hallah Mahmoud Ayse, palestina de 27 anos, atendida no hospital de Maqassed, bairro árabe de Jerusalém.

Os “documentos sigilosos” de Thomas Edward Lawrence acabam de ser liberados, na Inglaterra. Isso deveria ter acontecido no ano passado, mas, por algum motivo, o acesso ao arquivo pessoal de Lawrence da Arábia só agora foi permitido a “pesquisadores idôneos, previamente aprovados”. Estou um pouco cansado dos mistérios lawrencianos, verdadeiros e falsos.

O tempo passa — essa frase original, que pede outra (também pela primeira vez escrita!): as coisas mudam.

Sempre me atrapalhei com datas, quando cursava o ginásio. Elas me vinham entre as distrações do ouro e do esmalte, dos bronzes e das cimitarras reproduzidas nos livros. Suas ilustrações em preto-e-branco ganhavam as cores dos estandartes, nos meus sonhos confusos, as vésperas de provas de História certamente banais — porém decisivas e carregadas de presságios talvez ocultos entre as datas, os números (que nunca aparecem em vão). O tempo recuado, vivido por outros, a areia comida pelos abandonados em campos de batalhas onde agora cresciam os lírios, a data da Queda de Constantinopla (uma pequena dificuldade especial para mim, inexplicavelmente: 1435? 1453? 1354?) dançando sobre os mortos antigos e, finalmente, em paz.

Não só os números dançavam debaixo da luz fraca, na mesa da sala de refeições onde eu lia as páginas sisudas, depois que a louça era retirada e sempre restavam farelos de pão, diminutos e perturbadores na superfície polida (junto com alguns insetos, algumas mariposas caídas em torno da quentura da lâmpada de 40 velas, quente como a fina casca de carne queimada). Outras coisas dançavam, quando eu erguia a vista cansada — e isso talvez anunciava que, na vida, ia eu, um dia, dançar, muito depois dos altares enegrecidos pelas chamas apagadas há meio milênio. Ainda não havia o Brasil — um vazio de praias e matas, a esconder três milhões de índios nus — quando se dera a queda da capital de basílicas equilibradas entre o arco e a coluna apagando-se como a chama da vela de cera (fincadas sobre os pires, quando faltava luz, às vezes, por um hora completa de escuridão nos subúrbios).

O estudo sobre a mesa ficava suspenso (“Hagia Sofia, São João de Studios, a Igreja do Cristo Pantocrator, a Porta Dourada, tudo tomado pelos inimigos de Deus”) durante o tempo em que ardia a luz incerta, prejudicial à vista — para a minha mãe sumida como as senhoras em fuga do Bastião da Fé caindo com o rumor de desastre que ainda reverberava na sombra da sala de uma casa quase afogada nas marés de caranguejos deslizando para dentro da lama. E eu ia dormir com uma daquelas palavras do caos — Trebizonda? — na periferia de pensamentos desordenados, a tentar reter nomes de cidades do Mar Negro na cabeça que se tornava também o leito sujo do absurdo “cão sem plumas” dando voltas e voltas à minha tristeza recolhida no quarto às escuras (ainda não voltara a energia elétrica — espargida como um halo também de tristeza dos postes espaçados à beira das palafitas — para firmar os sucessos remotos da Ásia Menor, as infelicidades do Ocidente cristão no meio de montanhas de cabras distantes como a lua pagã). E os versos de Rudnicki resistiam como o mar e a melancolia resistem a tudo:

“Não temo a morte, mas temo a tristeza.”

 Nossa tristeza nada de comum com a tristeza da qual falavam os versos de outrora

Pausa.

E se eu viajar, de novo, apenas para rever Ludmila (sem me fazer anunciar à Sarah, a sensitiva insensivelmente esquecida)?

Seria loucura, ou uma forma de tentar — apenas tentar — afastar a tristeza, que eu temo muito mais do que

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho