O inglês do Cemitério dos Ingleses (8)

Leia parte 7 do romance "O inglês do Cemitério dos Ingleses", de Fernando Monteiro
Ilustração: Ricardo Humberto
01/02/2006

13. Uma curiosidade
Fiquei sabendo — por um vulgar folheto a respeito da “Londres característica” — que, em 1665, a cidade já sofrera sob a Grande Peste, com 75 mil mortes, um ano antes do incêndio gigante que não deixara de ser uma espécie de purgação pelo fogo, nas palavras do Dr. Johnson:

“Tantas pessoas estão morrendo que agora começam a enterrá-las até mesmo de dia, pois as noites não são bastantes. E o nosso prefeito vem de ordenar que as pessoas estejam em casa já às nove horas da noite, para que (segundo dizem) os doentes fiquem livres para sair e respirar ar fresco.”

Não, não foi Samuel Johnson — corrijo — quem escreveu assim tão claustrofobicamente. Foi aquele outro Samuel, bem menos humorado, mas contemporâneo das chamas de 1666, o cronista do fogo Samuel Pepys, escrevendo sobre o também “annus terribilis” em que a peste chegou à capital, para ele, na pessoa do seu cocheiro: “Meu criado diz que está se sentindo muito mal e que está ficando cego. Desço da carruagem, com pena do pobre homem, perturbado porque ele pode ter sido atingido pela peste…”

E tal correção significa que estou já na biblioteca do Museu Britânico, na manhã seguinte, pesquisando sobre Henry Fielding, sem ter dado qualquer notícia da minha presença a Gerald Glaser, meu amigo dos tempos romanos.

Fielding nasceu no dia e no mês da descoberta do Brasil — porém duzentos e sete anos depois, em 1707. Sua família era a do general Edmund Fielding, do Somerset. A mãe do escritor faleceu quando o jovem Henry tinha dez anos. A memória da família guarda que ele foi uma criança meio selvagem, entre irmãs e um único irmão com quem se via freqüentemente em luta corporal e outras disputas.

A fortuna da família fora sendo dilapidada ao longo de anos de pompa e desperdício e, ao tempo da entrada de Fielding para a faculdade, as dificuldades financeiras eram muitas. Por conta disso é que Henry foi enviado para uma universidade holandesa, pois lá a instrução era bem mais barata. Mesmo assim, o aluno não pôde ser mantido na Holanda e teve que deixar o país com dívidas não quitadas, pela família, em florins ou em qualquer outra moeda antecessora do euro controvertido e orgulhoso como algumas amas de Dickens (principalmente na Europa camareira dos Estados Unidos).

Foi numa época bem diferente, portanto, que Fielding iniciou, em Londres, uma próspera carreira de escritor teatral, aos 22 anos. Ele se dividia — na sua rotina pesada de trabalho — entre comédias, farsas e jogos encenados para platéias não muito diferentes daquelas das comédias mais apelativas de Shakespeare (embora hoje seja difícil perceber William, ao seu tempo, como um ótimo chanchadeiro)…

Uma onda mais forte de censuras palacianas fechou a maior parte dos teatros londrinos, naquele tempo, e Fielding voltou aos estudos, prestando exames, em alguns anos, para entrar na magistratura togada que fechava teatros em tempos de crise política. Como juiz, ele publicou Um inquérito a respeito das causas do aumento registrado entre os salteadores e na criminalidade em geral etc, no qual clamava por reformas jurídicas e penais. Muitas das suas sugestões foram depois adotadas (levando, posteriormente, à efetiva diminuição da incidência dos crimes de estrada e outros).

O autor de Tom Jones — romance escrito no fim da “fase teatral” — viria a se casar em 1734, com Charlotte Cradock. Segundo alguns biógrafos, seria dela o retrato de Amélia, numa novela publicada em 1751. O casal teve duas meninas (uma das quais morreu em 1741), e Charlotte faleceu três anos depois da morte dessa filha. Henry Fielding não era homem para ficar viúvo muito tempo e, em 1747, contraiu núpcias com Mary Daniel, uma criada da sua falecida esposa. Tiveram um filho, enfrentaram dificuldades financeiras e o escritor viu entrar em declínio a saúde. “Viajou para a Itália a fim de obter melhoras, porém morreu logo depois de chegar ao seu destino.”

Encontrei esse lapso — ou desinformação? — da troca de Portugal pela Itália, em muito do material sobre Fielding, agradavelmente consultado na atmosfera quieta das salas cheias de mostruários com autógrafos, à temperatura fria ambiente e de lá fora, onde o rumor de Londres recrudescia ao se sair para o centro da “necrópole” menos necrópole do mundo.

Quanto ao material sobre Roger Casement, era very scarce para a monumentalidade das fontes que se podia consultar ali dentro — e era tudo contra ele, nada a favor, nenhum registro simpático e, muito menos, favorável à “causa” a que Roger tentara “servir”, na cuidadosa escolha de palavras do estilista Gilberto Freyre, que certamente queria agradar, neste caso, aos ingleses bons (os poderosos, da diplomacia, ou os muito ricos, como Lord Asa Briggs) quando escreveu sobre Sir Roger como teria igualmente escrito sobre Gregório Bezerra arrastado pelas ruas de Casa Forte, no Recife, por um esbirro da ditadura com a qual Freyre se entendeu muito bem.

Os documentos do próprio punho de Sir Roger guardados ali, ainda estavam com a rubrica vermelha, de “consulta sob autorização especial”, e tudo que eu encontrara acessível, da lavra de Casement, fora um estranho conto publicado numa revista obscura de Dublin, intitulado Samadhi.

O que queria dizer aquilo?

14. Samadhi (uma curiosidade maior ainda)
Creio que possa ser dito tudo de bom do homem modesto que agora vai partir do nosso posto. Nesta unidade que ainda é mantida “para observação”, ele era o chefe-de-intendência, e fazia seu trabalho não menos que irrepreensivelmente.

Não se faz um chefe de uma hora para outra — e Intendência é uma ciência complicada num posto avançado como este, frente às montanhas azuis da fronteira, as Duas Mendigas Velhas que eu não sei por que têm esse nome tão indigno das suas espinhas direitas, com os picos nevados que não lembram cabelos de qualquer cor, de mulher ou de homem.

Porém, ele cometeu um crime. Tudo que dele se possa dizer de bom encontrará sempre esse crime no seu caminho de homem modesto — e que não se defenderá, com certeza, quando disserem: “Você matou um homem num quartel do deserto”. E ele de fato matou um homem num posto que chamarão de quartel, e que não fica no deserto, mas sim em face de montanhas que não parecem velhas. Ou seja: os círculos de confusão — mínima e máxima — irão causar dor e aborrecimento, sempre, porque esse homem reto tomou uma decisão, fez aquilo que lhe parecia o certo e não hesitou, não foi sequer precipitado, mas agiu no tempo medido pela sua régua, um pace stick de oficial intendente a afastar moscas e a medir a desonra, eventualmente, que pode advir mesmo do pequeno gesto um pouquinho desarmônico…

Tenho pena dele. Posso vê-lo a arrumar as malas, de novo, solene e direito, um homem que matou outro homem, é verdade, mas sendo a vítima um ser perfeitamente vil que cometeu a maior das vilezas, daquela forma que oculta o mal e faz parecer que o homem morto fazia o bem, quando morreu. Ou quando o mataram. Ou quando este bom homem verdadeiro o matou com um único tiro limpo e certeiro — um estampido ecoando até entre as Duas Velhas, sob o clamor disfarçado do céu prometendo chuva que não caiu (pelo menos durante a tarde).

À noite, choveu. Regos, caminhos de lama se abriram para as botas, quando se tratou de levar o corpo da vítima para a capela improvisada. Talvez fosse um altar de Shiva em ruínas, reaproveitado como alojamento do Deus branco e militar: o Cristo não parecendo lá muito desconfortável na sua cruz envernizada, olhando o olhar vago dos Jesus que parecem fracos para os nativos (um deus compassivo demais para ser acreditado aqui, como Deus).

Fiquei tentado pela possibilidade real (que havia) de encobrir tal crime, com o poder que eu detinha, emanado da Casa do Rajá, e também como uma espécie de fiscal, de inspetor, de vigia todos sabem de quem. Isto teria sido especialmente útil em nome da “proteção”, digamos, da Mahani — pois o caso teve a ver com ela, isso é sabido e desagradável quando se pensa naquela jovem senhora penteando a grande cabeleira, alheia, os olhos ainda sonhadores acreditando, surpreendentemente…

O assunto — que parecia de pouca importância, a princípio — hoje me revolta não apenas por envolver estrangeiros (o que é pior). Parece-me inaceitável que, num primeiro momento, não tenhamos sabido fazer o que era necessário (a palavra que me consola, que significa um bom e forte tronco de carvalho onde você pode espalmar a mão, respirar e tomar a trilha pouco usada, que sobe por entre as árvores). Sabem o que eu quero dizer, não? Nem sempre a trilha principal é a melhor, e é preciso parar para ver mais alto do que a janela do primeiro andar dos escritórios de administradores de queixo recém-escanhoado e olhar desviado da pequena tempestade que se forma…

Não foi o meu caso, bem entendido. Não sou o administrador, nem seu braço direito — a estender a toalha seca para o chefe entediado.

“Quais são as novidades de hoje, meu caro? O que se passa por aí que eu precise saber…?” — assim pergunta um homem mesmo fazendo a barba do absurdo no meio de uma multidão de nativos barbudos que consideram a nossa cara uma espécie de bunda sem pêlos, surgindo do pescoço de pavão apertado. Pensem nisso: os nativos não compreendem porque andamos assim, metidos nas fardas desconfortáveis e criadas — segundo parece — para atrapalhar que a mão coce onde está coçando… Por Alah!, um homem tem o direito de se coçar, mesmo que ao serviço da Coroa que está se coçando para nós todos neste fim de mundo desolado, quase debaixo de duas montanhas de neve coçada pelo verão como o colarinho daquele bom homem que nunca usava arma, o amanuense sem ódios, sem inimigos, sem obrigação de resolver nada por nós, e que deu um tiro certeiro no coração do compatriota (“nada como nunca atirar, para acertar em cheio, quando se atira” — foi escrito no Diário do meu companheiro de alojamento, que eu não deveria ler, reconheço). Não, ele não agiu como um assassino “para nos agradar” (conforme também foi escrito), não se espalhe isto, ainda mesmo que dos pequenos círculos concêntricos de um diário escrito mais por tédio do que por interesse num acontecimento extraordinário, um crime de um branco contra outro, à vista de todos. Ora, ele também se sentira ofendido no seu silêncio, na paz em comunicação com a tranqüilidade das Duas Montanhas, e sendo que (há que ser justo, embora não haja nada sobre isso, no Diário deixado à minha vista), o disparo foi feito após uma verdadeira provocação, ou mesmo duas (a segunda lhe dando plena entrada naquela questão já então “complicada” para nós, os súditos da Coroa inglesa).

O próprio Rajá estava constrangido. Não estava dormindo nada bem, foi o que me disse o seu mordomo (que dorme ao pé dele, quando o Rajá dorme só).

Não havia mais o equilíbrio delicado — que se mantinha como uma ponte suspensa entre nós e o posto necessário, admitido por acordo consignado em tratado que recebeu a aprovação dos dois reinos. O mal não prosperara em questão alguma, em qualquer querela surgida após se aporem os selos naquelas palavras escritas na língua antiga, para maior solenidade de um negócio tão sério. E aí aparece alguém, como um bêbado sem estilo, a romper com a teia sutilmente juntada das muitas babas de uma paciente aranha quieta…

Bem, todos ficam atônitos, mas ainda presos pelo resto de regras de cortesia que norteiam as boas sociedades, por menores e mais distantes que estejam das capitais que tudo suportam. Aqui estamos muito longe, vemos picos furando as nuvens e animais delicados — que não são caçados pelos nativos — bebendo água nos regatos sempre límpidos das frases feitas. Confiamos nas palavras — e nas intenções.

Confiamos? Que raça estranha. Parece que nascemos para sermos postos à prova em lugares remotos, em competições difíceis para a nossa crença firme nos meiões até os joelhos de homens que não agem exatamente como se pensa (isto é, que somos brutais mal disfarçados pelos tais meiões e pela indumentária inteira, passada a ferro em barracões úmidos o tempo todo, na estação enlouquecedora das chuvas), não é bem assim, nossa cultura tem mil anos de quietude vigiada por céus nervosos… Se uma inofensiva aranha aparece esmagada, isso trava o leite nos nossos copos de ouro e, talvez, trave até o leite das mulheres no ouro do seu peito, sob as muitas voltas dos colares. Deus, que é Justiça acima de tudo, não gosta de ver as coisas confusas aos nossos olhos, destroçadas por alguma alma pouco gentil que pisa no tapete de seda com um sapato de areia grossa que agride o tecido nunca dobrado. Sei que estou me alongando. A revolta ainda ronda e, entretanto, no círculo mais íntimo do Rajá e da Mahani… Não, isso deve ficar sob o véu de decência da discrição que prefere cometer pequenas injustiças a fomentar um grande escândalo. Meu Deus, como o mundo pode ser injusto — com um bom (?) motivo.

Esse excelente homem, chefe-de-intendência, parte com as suas coisas modestas num saco de lona. Não leva moedas de ouro ou de prata, dentro, como o Rajá gostaria que levasse. Não seria cortês premiá-lo — como gostaríamos! — em virtude da sua desonra, entre os seus. Mas ele será sempre bem lembrado, aqui nesta região distante dos lugares para onde segue, agora, o bom homem modesto da intendência que nos livrou do pior dos casos, em muitos anos. Seu rumor de pequeno escândalo, seus círculos de propagação nos ouvidos, por bastante tempo ainda, seguirão subindo das fogueiras dos caçadores… quando começar a se contar, de novo, o “caso do Samadhi”. Será conhecido assim, mais tarde. Um chefe branco com vergonha dos brancos (o que é muito raro e deveria ser motivo de comemoração também, como uma vitória da justiça que nem sempre triunfa, etc). Estão desolados. Nada se pode fazer por esse inglês que não é um selvagem, e que parte somente com a maleta modesta, tendo perdido todos os anos de trabalho, e alguns nem sequer lhe estenderão a mão, quando ele descer para o alpendre ensolarado, a farda composta, a irrepreensível limpeza, o bigode direito, caminhando direto para o transporte que o espera debaixo do sol tão quente.

Os cães latirão como latem para qualquer ruído de motor engasgando antes de pegar a força necessária, e a sua alta cabeça desaparecerá pelo portão fechando-se sobre a solidão do posto deixado para trás, sob a cega visão das Duas Mendigas distantes.

15. Alguém lê devanagari*?
Então leia, devagar, o que realmente significa samadhi, em sânscrito.

— Bem, significa paz interna, olhar-para-o-Interior, no caminho contrário da consciência dual, porque se alcançou a União (ou Realidade), num estado “de estar ciente da nossa existência sem pensar”, conforme qualquer ex-hippie de esquina poderia lhe dizer. Ainda há alguns deles tocando instrumentos fanhosos no metrô…

— Não, não. Não simplifique tanto o samadhi, meu caro. Esse brasileiro obviamente inculto irá pensar o quê? Que samadhi é apenas a bobagem usual que se lê nas revistas de introdução ao conhecimento oriental longe de todos nós, ocidentais ignorantes (o que é pleonasmo). Tudo, para ele, se tornará claro como os textos de propaganda de meditação “yóguica” que definem samadhi como “a consciência pura, que se alcança em três etapas da ascese espiritual: Savikalpa, Nirvikalpa e Sahaja Samadhi”…

— De fato, é mais do que isso, rapaz. Quando o yogui ascende a tais níveis, ele os encara como confirmação final do estado de libertação, pois samadhi significa, como deve ter entendido, o estado superior entre os superiores, quando o Ego (alma) renuncia ao corpo físico e, compreenda, até a respiração pára…

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho