O inglês do Cemitério dos Ingleses (7)

Leia parte 6 do romance "O inglês do Cemitério dos Ingleses", de Fernando Monteiro
Ilustração: Ricardo Humberto
01/01/2006

10. Conrad
Em 1890, no Congo, Joseph Conrad havia sido, durante duas semanas, hóspede de Roger Casement.

Eu não sabia disso, e foi a anotação de Storrs que me pôs na pista do encontro do diplomata mais tarde enforcado com o autor de O coração das trevas.

Nas suas notas de viagem, Conrad deixou registrada a boa impressão que teve daquele anfitrião talvez interessado em obter a adesão do escritor à campanha contra os abusos sofridos pelos negros africanos. Posteriormente, mudaria um pouco a sua opinião — um pouco antes da execução de Casement, em 1916 —, ao manter a lembrança de Roger como a de um “bom companheiro em se tratando do tipo de companhia que requer uma região como a savana selvagem” (o que Conrad queria dizer com isso? Por que naquela região, e não noutras, Casement seria esse tipo — qual? — de “companheiro” para lugares como as savanas, as selvas e as cidades precárias do Congo do fim do século dezenove?)…

Era uma idiotice rematada para se escrever sobre um homem como Casement, executado pelo patriotismo errado — para os novos compatriotas do polonês auto-exilado.

Com as nuances conradianas típicas (ou seja, um misto de hesitação e desconfiança), ficamos sabendo que, para o ex-capitão da marinha mercante, o futuro diplomata condenado por alta traição era “muito emocional e uma personalidade verdadeiramente trágica”, conforme tartamudeia o criador de Lord Jim, compondo aquelas suas frases numa espécie de limiar de opinião, de limbo desconfiado e fascinado por personalidades que nunca se afirmam, ou que se afirmam tarde demais.

Ainda está para se escrever um estudo sobre o Conrad que jamais se sentiu muito seguro de haver se tornado um “inglês”, após ter deixado de ser eslavo talvez não por completo (daquela forma cabal como alguém se transforma noutro, entre dois espelhos que refletem o mesmo homem, com dois rostos talvez opostos, na sombra que cai sobre um convés de conversas convencionais sobre lembranças do mar “largo o bastante para nele se poder dizer a verdade”).

O que Lawrence iria escrever sobre Conrad? Digo, sobre Casement? Idéia interessante, a oriunda desse lapso: “Lawrence escrevendo sobre Conrad”.

Pergunta: Conrad escreveu sobre Lawrence? Thomas Edward foi um personagem conradiano típico, de carne e osso: um “Lord Jim” da vida real, encarnado num scholar de Oxford. Bem, na única vez em que se referiu a Lawrence, o escritor usou quase os mesmos termos das suas impressões sobre o irlandês pendurado pelo pescoço. Isso foi ao tempo em que o “herói” retornara da louca aventura na Arábia, viajando ao lado de Ronald Storrs para Jeddah, no coração do Hedjaz cerrado entre as portas maometanas, quando a obra-prima começa com o “jovem coração em dúvida sobre si próprio — diz o capitão Conrad —, um coração sincero traído pela velhice do mundo”…

As mesmas cismas do sentimento vago pregadas nas palavras como títulos de nobreza ao contrário, antecipando más notícias sobre o passado (nomes falsos, nascimentos irregulares, dívidas impagáveis, garrafas de bebida como desjejum em casas alugadas, a lista pode ser longa).

Você podia confessar ao mar o “seu segredo” (e Conrad fará mistério sobre quão secreto é esse segredo “murmurado” para a sombra de névoa da linha de algumas palmeiras borradas pela fumaça dos nativos”), mas…

Claro, ele hesita, o homem sentado no lado escuro de um terraço virado de face para a noite forrada do odor de jasmins e charutos caros (a hesitação se tornará parte do seu estilo). O leitor se debruça para ouvir melhor — e o capitão se retira para dentro da alma misteriosa dos seus personagens, com todos os “segredos” que o mar refuga entre conchas, latas de conserva e preservativos hoje usados pelos falsos nativos das ilhas de sombras simplesmente poluídas, nada mais. É impossível ter um destino, entre anúncios de excursões cujos roteiros convidam para trilhar a “Lawrence’s Journey” saindo de Ákaba, no Mar Vermelho, até chegar à bela mesquita omíada de Damasco e aos antigos aquedutos romanos, de onde se deve seguir em frente rumo à prefeitura improvisada, de onde “El Aurens” governou a cidade por alguns dias, até entrar em colapso, trocar as roupas e pedir permissão para se retirar do teatro de guerra da Frente Oriental (com Allenby ali, era mais do nunca um teatro de preparação do Vice-Reinado da Índia)…

“Ah, meu caro! Se houvesse feito apenas um gesto, antes de partir”…

Eu gosto — ainda — do tom conradiano típico, tão antiquado em meio às frases diretas, pronunciadas entre chicletes, por moças de botas de couro falso. Às suas frases entrecortadas podem se atribuir obscuros significados. Suspeitas indefinidas se elevam, mas se rebaixam pelo levantar de uma linha tênue de admiração mal sugerida, numa história escrita para ser meio obscura. Uma solene enfatização de culpas vagas que disputam com a confiança (nunca inteiramente confirmada) na alma intimorata que — oh — é uma criação da dúvida. Quem nos cativa não é sequer essa “alma” indecisa, ou semivelada sobre a linha d’água de romances que quase adernam sob o peso das pausas — aquelas que são responsáveis pelo fascínio dos meios tons usados por quem recorda, mal, uma visão borrada pela chuva, entre pausas calculadas enquanto o narrador acende um charuto e lança o fósforo para trás da cadeira de vime trançado. Conrad escreveu histórias que não são verdadeiras histórias sobre heróis que não são heróis autênticos — como Lawrence.

A anotação de Storrs parecia se lançar como o pirilampo desse fósforo, para trás, na noite africana em que Casement também afirmara, sem mais preâmbulos, que W, X e Y eram espiões em Saint James.

11. Aqui está o momento, digamos, mais
interessante do diálogo com Julian E. Storrs (conforme anotado de memória, no hotel, por este imbecil que esquecera o gravador e havia viajado sem o equipamento essencial até mesmo para um estagiário que faz a sua primeira entrevista com uma rainha de maracatu desmemoriada):

— Você sabia que Bert descende de Fielding, o romancista?

— Fielding? Henry Fielding?

— É, o autor de Tom Jones.

— Sei quem é. Escrevi um artigo sobre a sua morte em Lisboa…

— Lisboa? Fielding morreu em Lisboa?

— O senhor não sabia?

— O que ele foi fazer em Lisboa?

— Buscava um clima mais quente, a conselho dos médicos. Sofria de asma, gota e icterícia, como sabe.

(Mas, como aquele inglês — daquela ainda boa geração — poderia ignorar onde se dera o fim do autor das clássicas aventuras de Jones, o enjeitado?)

— Foi por volta de 1750, não?

— Foi em 1754. Ele morreu… — parei para pensar naquela coincidência curiosa. — Ontem fez um século e meio! O exato sesquincentenário da sua morte, em 8 de outubro de 1754.

— Lisboa era muito longe, naquela época. Ele estava lá há quanto tempo?

— Fielding não passou mais do que dois meses em Portugal. Mas teve tempo para redigir um journal da viagem, publicado após a sua morte. E Bert, então, era…?

— Tataraneto de Fielding. Seu bisavô tinha o mesmo nome do pai: Henry Fielding Junior.

— “O tempo correndo por baixo dos nomes cobertos pelo limo.”

— De quem é o verso?

— Não é um verso. É apenas parte da frase inicial de um romance inacabado.

Vi que aquele homem estava agora cansado de um modo que exige paz e quietude em torno dos velhos melancolizados pela percepção brutal da passagem das gerações, e me despedi do seu silêncio alheio e sem resposta, tomei o rumo do portão de subúrbio.

Saí dali com a notícia da ascendência ilustre de Bert e mais o livro das cartas de Lawrence, imaginando que Julian poderia cometer suicídio, em alguma futura tarde de maio, quando já não houvesse mais livros para suplementar a sua renda precária, e ele talvez concluísse que vivera demais. Isso acontece — essa percepção — quando as lembranças, todas elas, participam de um passado morto, sepultado, exumado e tornado a sepultar na casa de pombos dos jazigos particulares abarrotados de defuntos que, cada um ao seu tempo, havia considerado de alguma época “gloriosa” (a que viveram). Pela primeira vez, essa não era a impressão dos vivos assustados, dos sobreviventes gastos como um espelho de bronze de dois mil anos. Doris Lessing talvez quisesse dizer isso, quando falara da consciência “desagradável” não apenas das coisas que dizia, mas “também da grande maioria das coisas que pensava, por terem sido tiradas de um cabide e experimentadas” — o que era, em ponto pequeno, a essência do impasse de todas as civilizações, como a cristã, nascida do meio de pescadores e da vida dos pastores de cabras nas ruínas palestinas cobertas de sangue queimado.

12. A cotovia calcinada
Londres nunca mais será a mesma — por tabela — desde quando Nova York, à força, entrou no terceiro milênio entre fumaça, destruição e horror à solta, numa manhã de setembro.

A capital inglesa, acompanhou a mudança mais sutilmente, não tendo sido ferida (ainda) de modo direto. Ou seja, penetrou no século 21 empurrada quase do mesmo jeito, porque a diferença é que Londres tenta adivinhar onde será, quando e quantos morrerão, num dia 11 qualquer do futuro que algumas das 5 milhões de câmeras de vigilância, não-atingidas, gravarão para o futuro que nos espera, na marcha do ódio não detida (isto é, que não estamos sabendo deter).

O curioso é que, antes, Londres já se parecia — noutro sentido — com uma vasta necrópole, aos meus olhos, nas vezes em que viera, por qualquer motivo, sempre atordoado, um pouco, no início, pelo tráfego de Austins e por ônibus de dois andares correndo sem a ansiedade dos carros particulares à volta da região central da cidade (para nunca, entretanto, sequer indicar a mais leve intenção de ultrapassar os semáforos). Por mais chavão que pareça, os ônibus e as calçadas limpas, algumas inglesas que ainda parecem haver retocado a maquilagem um minuto antes… Tudo isso — toda essa bobagem — talvez fosse apenas o efeito da noite fresca que ainda não caíra sobre galerias e centros comerciais iluminados, feericamente, no cemitério alegre e triste, ao mesmo tempo, morto e vivo como o filho postiço de Storrs que eu acabava de deixar para trás, no pequeno chalé cheio de fotos do pai mais jovem do que o homem talvez cansado de explicar que era “herdeiro” de um inglês ilustre. Quantos livros Julian (o nome fora mesmo uma homenagem, de Sir Ronald, ao imperador apóstata) havia herdado daquela respeitável biblioteca particular dividida em partes, como um pudim de Yorkshire? Quantos houvessem sido, Julian E. Storrs Esq., agora se vira obrigado — dissera — a vendê-los, numa época má, em que ninguém mais sabia avaliar adequadamente, “com conhecimento e respeito, as coisas, e atitudes próprias de pessoas educadas”, etc.

“NINGUÉM” (a caixa alta da sua boca um pouco torta, na ênfase da palavra) sabia mais quem fora Ronald Storrs, governador de Jerusalém e amigo das mais altas autoridades britânicas do seu tempo, incluindo um aventureiro de nascimento duvidoso como Thomas Edward Lawrence (fiquei sabendo que Casement também era bastardo — expressão que Julian não usava —, nessa altura da nossa conversa empoada). Os ingleses como ele, isto é, os da sua geração, viram o fim do espetáculo, chegaram tarde sobre as pedras atapetadas de hortaliças, seringas e preservativos à frente dos teatros na zona das antigas feiras livres de Pigmaleão. E não parece possível surgir, de novo, nenhum filólogo da névoa, capaz de elevar alguém da atual baixa classe social de Londres que não soubesse ao menos reconhecer os bons serviços de louça, etc.

Era outra Inglaterra — ele tinha razão — e, mais do que tudo, era outra Londres chuvosa como nos filmes de calçamento molhado quando é necessário mostrar mais do que os ônibus vermelhos do corte onde sobra qualquer letreiro supérfluo: LONDON, Londra, a cotovia calcinada de Pepys (em espanhol, alondra; uma cotovia também estivera, durante toda a semana anterior ao acidente de Lawrence, cantando no peitoril da sua janela, de tal modo que “Ned” se sentira incomodado, e escrevera sobre o pássaro, pelo menos numa das cartas postadas entre 6 e 13 de maio de 1935).

Samuel Johnson cunhara a frase que todo jornalista mais ou menos instruído repete, quando escreve sobre a capital: “Quem está cansado de Londres, está cansado da vida”.

Quanto a mim, estava simplesmente cansado da viagem longa num avião apertado, de poltronas falsamente largas, onde dormira mal e tentara comer, sem sucesso, o carneiro com gosto de peixe, servido a bordo da aeronave que balançara como um bambolê da antiga — muito antiga — Rita Pavone. Eu me lembrara dela porque a visão de Piccadilly fizera com que me recordasse de outra Rita perdida no ostracismo, a magra Tushingham (cabelo de Anne Frank, joelhos ossudos e mãos de Audrey Hepburn), uma atriz de um filme em preto-e-branco de Richard Lester ou Tony Richardson, já não sei bem (ou era do esquecido Lindsay Anderson?), um filme de alguém sempre citado quando ainda se falava do free cinema inglês dos anos 60, quando a tristeza daquelas ruas, as botas e as pessoas frias, crispadas, davam a entender, tão longe, que havíamos perdido qualquer coisa imediata: digamos, o sentido de tudo que estava passando como o fulgor cinzento do metrô nas passagens de superfície (“por entre os verdes campos de ovelhas, cada vez mais afastados”), no meio do começo do fervor da droga, que é onde se deve buscar, entre os subúrbios da usura de pounds, menos poesia e mais opções de explicação para a danação, o sofrimento, a humilhação da esperança surgida tão logo os locutores anunciaram, chorando, o fim da guerra, isso ainda me toca — sem ter vivido a emoção captada num documentário em que as pessoas contavam como se abraçavam na rua e nas estações, nos subúrbios de escolas e chicletes colados em edições raras também surrupiadas das bibliotecas para serem, agora, vendidas nos sebos de poucos clientes de Soho. Moças de meias presenteadas por pilotos americanos beijavam estranhos com graça e quase sem malícia nas pernas dobradas no ar (no ar onde nada mais tem muita importância). Recordações confinadas nas lembranças — com data certa para se tornarem menos que as imagens dos documentários do GPO.

Mesmo o clima de Blowup que viera por sobre as imagens em preto-e-branco, estavam se cancelando na memória — sendo de boa educação que jamais ninguém perguntasse sobre o fim daquela esperança dos jovens-sem-esperança de Osborne (e outros) nos noticiários da noite ainda agora trazendo a imagem fugidia de Julie Christie (a septuagenária de Tróia) a segurar um colar de pérolas, com certo nervosismo de velha sobre o colo de couro de crocodilo que já fora a visão mais bela do coral humano no fundo da minha própria juventude tão longe dos baixios da Cotovia e próxima de uma fonte de pombos (na praça italiana onde o vento faz o chapéu da darling voar para junto das aves brancas).

W. H. Hudson escrevera, em 1893, sobre as passantes do coração buliçoso de Londres: “Seria um enigma para qualquer estrangeiro que caminhasse por Piccadilly numa tarde de verão, dizer qual é a cor predominante dos olhos das inglesas”… A cor dos olhos antigos de fogo de Julie será capaz de me perseguir na minha primeira noite de novo na cidade que, no primeiro ano da Besta, fora quase completamente destruída pelo maior de todos os incêndios, desde aquele de Roma, que Nero não ateara — e que também ninguém ficara sabendo como havia começado.

O daqui poderia ter se iniciado até pela mão oculta da Besta 666 — conforme arriscava um bruxa moderna, parecendo realmente herdeira daquelas do Macbeth, no programa noturno de tevê que a minha insônia me levara a ver inteiro, certo de que sobreviviam bruxas disfarçadas de donas de casa na periferia londrina harrypotterana de cortinas baratas e tijolos ocre-cinzentos. Bem, sobre o grande incêndio, alguns boatos haviam circulado, na época (tão irresponsavelmente quanto hoje alguém que aponte, numa rua de Chelsea, alguma respeitável senhora como uma fada má à espera de ônibus).

Segundo consta, o fogo teria se originado na casa do padeiro real, que vivia na rua do Pudim. Não é piada. Não se pode fazer piada com chamas que só deixaram intactas a zona noroeste (Hampstead, hoje) e os limites extremos do oeste extenso de Londres, a cotovia queimada durante quatro dias — que foi quanto durou o desastre pior do que o da antiga Roma: 13 mil casas e 87 igrejas arderam, e não ficou de pé nem sequer a muito sólida catedral de Saint Paul, de cujas ruínas partiram as acusações contra os católicos que teriam conseguido destruir um quinto da capital mais orgulhosa da Europa. Fielding fez uma bela descrição evocativa da catástrofe. Henry Fielding. Era o novo nome que se fazia apresentar, no começo da noite longa de museus e bibliotecas fechadas. Eu teria que esperar pela manhã de pardais e cotovias vivas, para saber mais sobre a ainda mais longa linha da família do célebre escritor que fora o tataravô de Bert, o outro ciclista do cenário do acidente de Dorset, quase trezentos e quarenta anos depois da hora da Besta, no primeiro ano de sombra que se iluminara de vermelho durante cem horas de pesadelo tão parecido com o inferno que teria assustado, um século antes, até mesmo o cardeal Wolsey…

 

 

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho