O inglês do Cemitério dos Ingleses (10)

Leia parte (9) do romance "O inglês do Cemitério dos Ingleses", de Fernando Monteiro
Ilustração: Ricardo Humberto
01/04/2006

19. “Farewell to a name…”
Dedicado a I. A.

Adeus a um nome feito de espuma da sombra
do mar que resta numa concha.
Poderei ouvi-lo para sempre e quando as ondas
rebentem na memória como numa caixa de música.

Adeus à fonte marmórea de luz do pulso
de uma estátua viva: a mão leve descansa
sobre as teclas manchadas de um piano sem uso,
enquanto o leque negro pressagia o luto
do vestido de seda de uma dama de copas.

Adeus ao valete perdido. Ao aviso da ave pernalta
cujo rumor imitava as asas cortadas de brisa.
Adeus à gaze das despedidas, da blusa da tarde
de miríades de borboletas do trópico a inflar
o ar de amplitude cor de carne.

Adeus à juventude. Ela foi a ogiva da noite
recortada no palácio esquecido, a escotilha debaixo
da água de visões da tempestade capaz de afundar
o mar de sargaços junto aos teus joelhos proibidos,
minha sereia morta antes de se afogar.

Adeus à quimera de uma ilha aérea, de um lugar
no centro de tristezas iradas da chuva que lava
os vitrais da Cidadela depois do fim do mundo.
Adeus ao rei do número…

Este poema — que vai muito além dessas cinco estrofes — foi encontrado em Southwater (Sussex), dentro de um livro com o Ex-Libris de Wilfrid Scawen Blunt (como todos os demais daquela biblioteca vasta sobre o Oriente, o Longínquo e o Estranho).

O original se compõe de quatro folhas escritas em ambos os lados do papel com o timbre de Newbuildings Place, e está datado de 1880, ano em que Blunt publicou o musical The love sonnets of Proteus. Presume-se que as iniciais da dedicatória correspondam a Isabel Arundell, mas isso não é inteiramente certo.

A quarta estrofe é muito estranha, ao falar dos “joelhos proibidos” de uma “sereia morta antes de se afogar” — porque o poeta obviamente joga com antinomias sugeridas não só aqui, mas ao longo de todo este “poema de amor” (perdido) de um senhor nascido em 1840, que resolve cantar o tema tão batido com um acento estranho, uma “desacomodação” qualquer do tom da época de William Morris e da Irmandade Pré-rafaelita. Wilfrid Blunt teve, por sinal, uma relação algo escandalosa — na época — com a bela Jane Morris (já casada com William), a filha de um criado de estábulo que se tornou modelo preferida do pintor Dante Gabriel Rossetti e de outros artistas daquele círculo esquisito de decadentistas pálidos, moças livres e arte vagamente mofada antes do tempo.

Se Farewell to a name… fosse um quadro pintado no rigor do estilo da Irmandade, entre sonos e flautas, eu diria que nele se insinua qualquer coisa “dodecafônica”, ou o som de uma desarmonia imagética (quase laforguiana), que é muito curioso encontrar num texto aparentemente composto no espírito do vitorianismo rigoroso. Blunt foi um poeta da sua época (invejável, sob muitos aspectos), mas talvez houvesse nele a vontade de fugir, um dia, de tal camisa-de-força. Este trecho do poema inédito não mantém a métrica original, justamente para melhor preservar as sutis nuances dos primeiros versos — que não desaparecem do resto do poema “dedicado a Lady Isabel”. (Mas, quem poderia ser o “rei do número”?)

20. Novo interregno
Agora, preciso de um chá ou de um café, na tarde calma, de frio suportável porque comprei um sobretudo turco, feito de couro que me torna um tanto parecido com um oficial nazista à paisana, de luva e tudo. As luvas são de lã e, às vezes, atrapalham o manuseio da papelada que acumulo na minha mesa da sala de estudos: livros, plaquetes, jornais e documentos sobre viajantes e cônsules, ciclistas e romancistas de livros de aventuras da vida perdida a vender barricas de bacalhau perdidas nos cais do outro lado do oceano.

Estou perdendo um pouco o controle da minha área de interesse original, ou talvez nem saiba mais o que exatamente procuro, entre tanto material que já solicitei e que me foi entregue com solicitude um bocadinho fria, se não descrente do consulente em busca das gravuras esmaecidas da sua pátria em botão, o “Brazil” todo verde e ainda rude, sem estradas na mata fechada em que persigo Bert Fielding, o descendente do grande escritor que nunca esteve na América do Sul…

— O senhor andou perdendo tempo, eu receio.

A frase cai como uma mariposa queimada sobre os papéis espalhados na mesa da biblioteca cheia de outras mesas iguais (só que mais “arrumadas”). E a mulher dona da voz insinuante se apresenta, com certa graça madura:

— Sou Antonia Blunt. Trabalho nesta biblioteca, e me foi dito que o senhor está pedindo tudo que temos sobre alguns compatriotas que viajaram pelo seu país tão interessante.

— Não é bem isso…

É uma mulher alta, magra e muito parecida com a jovem Dorothy Eady. Ela separa alguns dos documentos que estão sobre a mesa, com a unha do dedo indicador pintada com a cor de sangue coagulado.

— Casement, Burton, Blunt…

— Na verdade, eu procuro por…

— Saiba que ninguém procura por nada de Casement, há anos. Um homem com a mesma alma traidora do meu tio, o crítico de arte e espião a quem devo o meu nome.

Já havia me ocorrido a suspeita de estar pedindo coisas demais — para um primeiro dia, pelo menos. Estava “abusando” do cavalheirismo bibliotecário para com os estrangeiros ignorantes? “Será que esse argentino vai ler tudo isso?”

Não, eu não era argentino (os ingleses mais velhos conseguiam localizar os argentinos), era brasileiro (o que era pior, para eles), e me interessava, sim, por Casement, porém não por ele mesmo. Casement era uma peça no quebra-cabeça, assim como Blunt, a mais refinada das bichonas traidoras inglesas…

­Eis aí um modo detestável de referir o tio de uma inglesa: traidor, tudo bem, “bichona” não, se você logo imagina um rapaz na companhia de um homem mais velho, num apartamento para encontros que é melhor ignorar completamente, empurrar para debaixo do tapete trazido do Paquistão de belos jovens morenos. Eu estava a ser repreendido pela sobrinha de Anthony Blunt, era isso?

— Oh, não! Peça à vontade, meu caro. Isto é uma biblioteca. E o senhor está com as luvas que alugamos, pagou a taxa de pesquisa especial (confere no bottom que eu carreguei o dia inteiro), é nosso visitante e um pesquisador aplicado, segundo esperamos. Não… Ou melhor: sim, esteja à vontade, não se importe conosco. Entretanto, não creio que queira pedir mais sobre Casement, não é mesmo?

— Casement? Por que se importa só com ele?

— Bem, Casement foi um traidor desta pátria acolhedora, com toda certeza. E mereceu a forca por isso, não há dúvida que mereceu…

— Seu tio, me desculpe, também traiu a coroa.

— Era um rei.

— Como?

— Não era uma coroa como a rainha atual. Era um rei, naquela época (um rei como não tínhamos há muito tempo), e o irlandês o serviu, no começo, como se fosse um súdito fiel…

— Refere-se a Casement?

— Claro. E aos outros traidores todos, a partir de Philby. Tio Anthony era o curador da coleção de arte do Palácio, sabia? O que torna ainda mais deprimente, céus!, que tivesse estômago para trair a própria…

— Bem, toda aquela geração de Cambridge pensava como seu tio, senhora. Se isso serve de algum consolo.

[Nos anos 1930, um número expressivo de estudantes da universidade de Cambridge se entregara a atividades de espionagem pró-russos. Havia a ilusão, no ar, de que Stálin estava promovendo a revolução franciscana final, mesmo que usando um pouco de tinta humana vermelha demais nos degraus dos calabouços moscovitas e na neve da Sibéria distante demais dos canais da Universidade. Uma mão deles foi chamada de “a mão do anel de Cambridge”, ou seja, a esquerdista manopla dos “cinco magníficos”: um quinteto de jovens brilhantes e motivados a trair a coroa britânica não pelo ganho financeiro, mas pela firme opinião sobre o capitalismo corrupto e o que, em contrapartida, a União Soviética poderia oferecer como modelo alternativo de sociedade. Ponto.]

— Meu caro, eu não pretendo, de modo algum, defender o meu indefensável tio, mas o diabo, com perdão da palavra, entre aqueles rapazes suscetíveis, atendia pelo nome de Harold Adrian Russell Philby…

[“Kim” Philby trabalhou para a inteligência britânica de 1944 a 1946, como chefe da contra-espionagem anticomunista. Foi também secretário da embaixada britânica em Washington e trabalhou com a CIA de 1949 a 1951. Posteriormente, apareceu como jornalista em Beirute e, em 1963, sumiu do mapa em algum lugar do Oriente. Pouco depois, descobriram que ele estava na Rússia, onde havia se tornado cidadão soviético e ganho medalhas e uma pensão por “inestimáveis serviços prestados”. Ponto.]

Antes que a falsa Dorothy começasse a chorar no meu ombro, felizmente ela se recompôs e, no melhor estilo Philby, desapareceu no ar nublado.

Ninguém estivera falando comigo, e todos olhavam para mim porque eu dialogara com alguma fantasia do cansaço, sob a carga de um dia inteiro de dor de cabeça, às voltas com T. E. Lawrence, Roger Casement, diplomatas, espiões, ciclistas e tudo o que me trouxera até ali, àquele salão adornado de estantes com livros bem encadernados e cheirosos. O cheiro do papel e, por extensão, dos livros ingleses odorosos ainda não foi estudado desde o ponto de vista de algum país úmido, onde livros mofam e o papel se enche de manchas de fungo como se dedos maculados de alguma seca manteiga se imprimissem nas páginas que também escurecem como bananas numa geladeira. As capas duras ajudam, com toda certeza, a conservar o miolo cujo tom bege apenas se aprofunda numa rica tonalidade de creme, com o tempo. Creme, não (até essa palavra gordurosa deve ser afastada dos livros europeus velhos): diga “bege”, bege como o outono deitado, as flores ressecadas no chão dos quartos deixados abertos numa manhã nevoenta, tão longe do país onde não havia forcas e nem ardor patriótico (ou antipatriótico), o Brasil meio-ficção-solta-da-realidade. “O Brasil é maior que a Europa, mais selvagem que a África e mais estranho que a Terra de Baffin” — escreveu Lawrence Durrell (para Henry Miller) numa carta de dezembro de 1948. Tinha razão o autor de Justine (tão preciso na descrição das ilhas gregas e dos becos de Alexandria)? Em muitas tardes, na varanda do casarão de Tomás Seixas no bairro das Graças, Recife, ouvi o poeta de Sonata a Lilian dizer que estávamos olhando para mangueiras descendentes das árvores frutíferas do jardim recreio inaugurado pelo Conde de Nassau, um ano antes de partir do Pernambuco verde de florestas atlânticas e lagunas tristes que assombram um sonho recorrente. Ele me lança sempre em completa confusão, à noite, quando algo perturba o meu espírito ou estou doente e febril: dentro de uma espécie de quadro do aduaneiro Rousseau, na cidade portuária de caranguejos gigantes, emas bêbadas e cães raivosos, sou perseguido por sagüins e preguiças sem nenhum desânimo, bichos incompletos e outros animais inclassificáveis, cuja proximidade é meu terror, transportado numa cama-de-água cercada de peixes-agulhas de medidas desproporcionais. Eles irão furar o meu leito-balsa? Temo afundar numa daquelas correntes misteriosas do interior do Brasil cheio de sinais na pedra, de avisos toscos gravados em meia-cana, com aplicação inaudita de tempo e esforço. Enquanto não afundo, tento interpretar os pictogramas e as inscrições primitivas (e complicadas, ao mesmo tempo), nas paredes dos grotões móveis, repetindo-se ao longo do rio onde se forma a imagem de uma mulher afogada, branca como um lírio na água, linda no seu repouso de faces não inchadas, preservada dos peixes e dos caranguejos, uma morta dormindo no fundo do lodo suave.

Eu estava no Recife? Estava em Londres? Na Somália distante? Em Luxor?

Eu estava em Abydos?

21. Dorothy Eady
Durante anos, eu havia andado com uma foto de “Omm Seth” na carteira de couro gasto nas bordas — depois da primeira viagem ao Egito (aquela, do “templo-cenotáfio” repetido, como um mantra, pelo professor cego do Ginásio Pernambucano). Atrás, estava escrito: Dorothy Eady sentada num batente de pedra do temp — a palavra “templo” incompleta, enquanto “batente” é, na verdade, a base escavada de um dos nichos de pedra da majestosa construção do início da décima nona dinastia. Sonhei com ela, em Londres, naquele dia. E acordei sem saber por que, no sonho, a mendiga de Abydos, o lenço sobre o cabelo escorrido, queimado pelo sol, vinha me dizer que detestava o Egito (era curioso, então ela não deveria ter vindo viver no meio do desconforto das ruínas do templo de Ramsés II)…

O ritmo de um sonho não tem nada a ver com o ritmo, a “lógica” da vida na vigília (quem não sabe disso?), ou, então, não seria um sonho. Meu dia tautológico está longe de terminar. “Sonho” é a palavra mais fraca que se pode usar para… “Dorothy Eady?” — eu perguntava — sabendo quem era ela, conhecendo perfeitamente a história da atração extra de Abydos, da moradora do Memnonium, excepcionalmente admitida ali porque os conservadores do templo acreditavam que ela fosse mesmo Bentreshyt* a avisar sobre a morte pelos ventiladores de teto do velho Hotel Continental (as pás ainda do tempo de Lord Carnavon ameaçando decepar cabeças porque poderiam despencar, atravessando o espaço ocupado com mobiliário de vime pintado e repintado de branco, sobre as marcas de sangue).

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* Dorothy Louis Eady nasceu em 1903, no seio de uma família abastada, dona de uma confortável casa no sul de Londres. Foi nessa casa que, ainda criança, ela caiu de uma escada e, examinada pelo médico chamado às pressas, foi declarada morta. Horas depois, despertou do sono profundo (que não acusava sequer os batimentos cardíacos) e, para espanto de todos, mostrou-se animada e, aparentemente, sem seqüelas físicas do acidente. Entretanto, passou a se esconder debaixo das mesas e dos móveis, depois daquele dia, e a importunar os pais, com insistência, pedindo que a “levassem para casa”. Ninguém conseguia entender que “casa” pudesse ser a que “Dottie”, com outras palavras, descrevia como uma vasta fachada de colunas altas e retas, espécie de palácio muito maior do que os castelos ingleses, e bem diferente deles, segundo a imagem que passara a freqüentar os sonhos da menina, desde o dia do desmaio. O comportamento estranho da garota tomaria seu definitivo aspecto por ocasião de um passeio que incluía uma visita ao Museu Britânico, na companhia dos pais. Ao pisar nas galerias egípcias, Dorothy entrou numa espécie de transe, começando a beijar os pés das estátuas e, como louca, a se agarrar aos sarcófagos, enquanto gritava, numa voz estranha, que queria ficar com “o seu povo”. Pouco tempo depois, foi a vez de encontrar o palácio das suas noites de sono agitado, ao ver, num jornal, a fotografia das ruínas do Templo de Abydos, construído pelo faraó Seth I. De novo alterada, Dorothy declarou ao pai que aquela era a sua “verdadeira” casa, pois ali vivera, sob outro nome, como sacerdotisa naquele lugar do culto crepuscular de Osíris, o deus dos mortos. E a família viu a menina, já adolescente, dirigir seus passos de acordo com essa convicção profunda, pois ela aprendeu a decifrar hieróglifos no Museu Britânico, com Sir Wallis Budge, o respeitado estudioso cuja impressão foi a de não estar ensinando algo propriamente novo para Dorothy: “Ela lidava com a escrita antiga dos egípcios como uma língua da qual estivesse apenas um pouco esquecida”. Nessa altura, a moça inglesa já se achava segura o bastante para afirmar que vivera no Egito, há mais de 3 mil anos, tendo sido filha de um general que lhe dera o nome de Bentreshyt e a encaminhara para o serviço do deus Osíris, naquele templo agora restaurado por Edouard B. Ghazouli, no sul do Egito. Em 1930, a amadora de egiptologia aceitou o pedido de casamento do egípcio pivô do escândalo do filme A odalisca do Smolna. Alguém se lembra dessa produção — inacabada — de Mauritz “Moje” Stiller? Começara a ser filmada em 1922, na bela Constantinopla, com a jovem atriz Greta Garbo hospedada, já como uma estrela, no Hotel Pera-Palace. O homem que dizia se chamar Iman Abd El Megid estava na companhia de Suzanne Morel quando ela havia tentado matar Stiller por razões até hoje ignoradas (e que Acosta — companheira de Morel — se recusou a esclarecer naquela autobiografia deliciosa, Here lies the heart). Nada disso diz respeito a Dorothy, que conheceu o egípcio em Londres e, em 1933, desembarcava no “país-bem-amado-dos-deuses”, que era também o do seu marido, além de pátria remota de “Bentreshyt”. O casal foi viver no Cairo, e ali nasceu seu único filho — a quem Dorothy deu o nome de Seth. Foi assim que ela começou a ser conhecida como Omm Seth (“mãe de Seth”), enquanto trabalhava como assistente de arqueólogos tão notáveis quanto Selim Hassan e Ahmed Fakhry, já separada de Iman Abd El Megid. Este sumiu no interior do Egito, sem deixar maiores vestígios, depois de acusar a própria mulher de “charlatanices com a história antiga”. Devo, entretanto, acrescentar um PS a tudo isso: Seth El Megid foi, durante algum tempo, presidente do Centro Cultural Islâmico do Recife. Não sabia nada a respeito de A odalisca do Smolna e evitava falar na mãe inglesa, porque fora tenente entusiasta do nasserismo, depois se tornara membro da Fraternidade Muçulmana Fundamentalista e tivera de fugir do Cairo, até chegar tão longe, ao Nordeste brasileiro, onde viria a abrir negócio de confecções no Recife. A vida dá muitas voltas, eu o conheci em 1989, quando assinou a minha carteirinha de sócio do CCIR “em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso”. Em 1992 — setenta anos depois do incidente com seu pai, no Pera-Palace — Seth (que adotou o nome de Mohamed) foi viver no velho bairro comercial de Istambul…

Acordei sufocando, na claridade azulada, olhando para o alto, apavorado. Desde oitenta anos antes, não havia pás rodando no moderno hotel de Londres, tão distante de Abydos como do quintal que, dizia Seixas, fora parte do terreno do tal jardim botânico do tempo dos holandeses que haviam partido do Brasil há mais de três séculos, tudo flutuando na confusão do meu quase pesadelo entre os antigos jardins de Abydos (que “Omm Seth” ajudara a descobrir) e a estufa nassoviana de árvores frutíferas do trópico debruçado sobre o presente interminável.

Quando nos perguntamos sobre a “realidade objetiva”…

Acordei sufocado, na claridade (a natureza da experiência imediata que diz que estamos num ponto móvel do rio do tempo), essas palavras repetidas como nas provas incorretas de um livro inconcluso, sem ponto final nem palavra de partida, mas apenas a lembrança de um som que reverbera no rio do tempo azulado, sem aspas, para compor uma imagem pintada como um retrato numa sala que também é espaço se deslocando (os monges ensinavam um modo de ficar fora do tempo que não significa, necessariamente, anulação entrópica de tudo que é duração, etc.) porque envolve tanto o observado quanto o observador do fluxo que “vem” de trás e prossegue para o (que chamamos) “passado” porque não está mais à nossa frente, no vazio entre os dois intervalos que fazem a espécie de intersecção do presente — água entre duas águas —, embora “intervalo”, “interseção” ainda sejam palavras, só palavras, separando as imagens remotas do “Televisex”*…

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* Aos onze anos, eu ganhei de aniversário uma engenhoca comprada através do Reembolso Postal. Não existia nas lojas, e ainda me lembro da caixa, profusamente carimbada, que fomos buscar na agência central do correio, eu e minha mãe. A caminho da agência central, ela me explicou como preenchera um cupom anexo à edição de fevereiro de 1960 da revista Seleções de Reader’s Digest, que oferecia uma espécie de cineminha portátil, cujas imagens eram vistas aumentadas por lentes. Ajustava-se à altura da vista — como um binóculo — contra qualquer fonte de claridade, e as transparências coloridas faziam saltar, em terceira dimensão, os assuntos fotografados para dentro do “Televisex”. Foi por ele que tive um primeiro contato com o acervo dos museus do Cairo: o de Antiguidades Egípcias, o Islâmico, o Copta, tudo em duas cartelas de slides que vinham anexas (e rodavam dentro do “Televisex”): EGYPTIAN HERITAGE, etc. Eu soletrava o título misterioso, impressionado com as imagens, destacadas, das esculturas de olhar fixo, parecendo colhidas num sono acordado e de duração eterna — um menino de onze anos vendo, pela primeira vez, como se estivessem ao alcance da mão, as relíquias boiando na luz natural vinda de altas janelas onde devia se alargar o céu dourado, dilatado para muito além da praça Midan El-Tahir (em frente ao museu principal), onde um vendedor ambulante parecia estar me esperando, com toda sorte de bugigangas — e o primeiro “Televisex” que eu via em mais de trinta anos, o mesmo objeto de plástico preto, rodando as transparências coloridas fixadas na memória.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho