O inglês do Cemitério dos Ingleses (6)

Leia parte (5) do romance "O inglês do Cemitério dos Ingleses", de Fernando Monteiro
Ilustrção: Ricardo Humberto
01/12/2005

8. Julian Storrs era um dos poucos que ainda

escreviam sobre T. E. Lawrence. O “herói da Arábia” não era mais assunto de impacto (ou de grande interesse) para a imprensa, com o passar dos anos. Até, digamos, a metade do século passado, movera rios de tinta, o homem e a sua aventura estrelada, o acidente e os ovos esmagados na manhã frita sobre o selim de couro (não adianta tentar entender, é uma piada britânica demais) que Bacon retratou como uma mancha de “amarelho” — gema e pérola rolada no cinturão dos cavaleiros virgens, dos Templários do Nada —, sangue e areia (as duas botinas que, depois, dois enfermeiros venderam para um colecionador foram devidamente substituídas por duas botinas falsas, isso em 1955, vinte anos depois do acidente, no auge da memória das coisas que haviam se passado com um herói perdendo a aura, em plena Guerra Fria), o frio, a lápide gelada, os anos que me trouxeram aqui para perto de um assunto portanto algo anacrônico (estou numa casa abafada, ouço uma bicha velha falando sobre o arqueólogo e militar controvertido, morto há setenta anos). Ninguém que desapareceu há tanto tempo consegue continuar vendendo jornais apenas porque se afirme que foi assassinado e, não, a vítima de um acidente de estrada…

— Não há mais muitos leitores interessados nessa história — Julian Storrs era enfático. — No seu país, então… Faz muito tempo, claro. Eu imagino que você tenha sempre de explicar, primeiro, quem foi Lawrence, para, em seguida, discutir sobre o sujeito que o leitor acabou de conhecer, não é assim?

— Mais ou menos. Mesmo o filme de Lean tem mais de trinta anos.

— Mais de quarenta, você quer dizer. É de 1962, se não me engano. Tudo faz tanto tempo, agora… O século findou e as coisas se enfiaram para trás, na dobra…

Se fosse uma conferência numa sala abafada, aquele homem fora de moda estaria dizendo Thomas Edward Lawrence não pertencia ao século 20, mas ao 13, saíra dele, da bruma dos cavaleiros desconfortáveis em qualquer época que não a sua. Ele poderia falar das sarjetas (conhecendo o assunto), de pombas brancas de claustro e poços de pedra trabalhada, mãos frias de uma moça vestida de homem como Santa Joana — a peça de Shaw baseada na vida de Lawrence.

O veludo das cortinas da sala de palestras do Arab Hall, os muitos bocejos, a troca de um bilhete indiferente ao “ascetismo” dos cavaleiros virgens, implacáveis e crentes…

Só em relação à crença, havia uma grande diferença: a fé de Thomas Edward era vazia de um Deus, “e oca e miserável na terra desolada”. Ninguém podia entendê-lo, agora, com o “elo que faltava” (o elo?), “a qualidade remota, velha de duzentos anos de ausência… uma antiguidade de porcelana sobre mobília eduardina que você vê abarrotando os antiquários baratos. Os melhores antiquários já começaram a recusar peças desse período extenuado”…

Interrompi aquela conversa de fresco refinado, perguntando sobre o furgão preto, diretamente (eu estava cansado e sem querer falar sobre antiquários, jornais modernos ou a beleza dos adolescentes que amavam homens mais velhos, “por dinheiro, naturalmente”).

— Não há nada sobre um furgão preto nos relatórios. Quem você disse que teria visto esse carro?

— Ernest Catchpole, cabo da RAOC*. Disse que o caminhão vinha também na estrada, na direção de Lawrence. Uma dessas furgonetas…

— Ah. Mas essa tal “testemunha” do acidente foi, depois, inteiramente desacreditada. Não me diga que fez uma viagem tão longa só para falar desse cabo! Tudo que ele teria visto… a uns noventa metros. E Catchpole estava lá… fazendo o quê?

—  Passeando com o cão, o senhor sabe muito bem. E ele viu quando…

— Sim, diga-me o que ele viu, meu caro senhor. Setenta anos depois, esta conversa me diverte. Não tenho mais o que fazer na vida.

Era um velhote difícil, mas eu não fui na sua onda. Disse exatamente o que Catchpole declarou ter visto:

— O cabo viu a motocicleta, a 85 ou 90 por hora, sem precisar de óculos ou de versões ensinadas. Depois, ela teria ficado encoberta, segundo ele, exatamente como os ciclistas, por causa do declive do terreno. Foi quando Catchpole viu o furgão e, depois, já ouviu o baque, o choque (dois choques, aliás: o outro foi o do corpo). Então, ele correu para buscar socorro, no Campo de Bovington, depois de dar uma olhada em Lawrence e na Brough, atirada longe.

— E o caminhão?

— Sumiu.

— Bem, então Catchpole não andou dizendo que viu nada de especial, na verdade. Um furgão preto trafegando por aí. Nada demais. Era uma estrada como outra qualquer.

— Aquela era uma via secundária…

Eu não esperava uma resposta: era mais um pensamento em voz alta — que ele interrompeu, com sua voz ainda forte e os olhinhos vivazes:

— Não era um caminhão militar.

— Pela cor, acho que não.

Rodei o copo com gim nas mãos, antes de acrescentar:

— Dois policiais à paisana “velaram” Lawrence, o tempo todo. Um na cabeceira da cama, praticamente, e outro na porta. Só foram embora quando ele morreu.

— O senhor acha estranho? O nosso “Lawrence da Arábia” era um tipo e tanto.

— Também acha natural que Clouds Hill ficasse toda guardada?…

— Guardada como?

— Cheia de policiais. Foi um aparato dos diabos.

— Vou lhe trazer um jornal do dia da morte de Lawrence, para que possa julgar por si mesmo…

Disse isso, e se levantou, a fim de ir buscar um álbum amarelado de recortes de jornais e revistas das últimas semanas de maio de 1935, onde localizou uma notícia do dia 19, contornada com tinta de caneta, em traço grosso:

Faleceu ontem, no começo da manhã, no Hospital Militar de Bovington, Dorset, o famoso “Lawrence da  Arábia”, depois de seis dias de coma provocado por um acidente que sofreu no dia 13 último, na estrada de Bovington Camp. Disseram os médicos que, logo às primeiras horas da manhã de ontem, o coração do herói da Arábia começou a dar sinais de que não iria continuar resistindo às conseqüências de ferimentos (sobretudo na cabeça) oriundos da manobra que fez, na sua moto, a fim de evitar o abalroamento, segunda-feira passada, contra uma dupla de ciclistas que seguiam pela mesma estrada secundária. Ainda segundo os médicos não só do Hospital de Bovington, mas de Londres (inclusive Sir Farquhar Buzzard, médico pessoal do Rei), enviados a Dorset, as aplicações de oxigênio e de adrenalina, ontem, de nada adiantaram na crise verificada na madrugada do sábado.

O ex-Coronel Lawrence — que usava, atualmente, o nome de “T. E. Shaw” — faleceu no leito de hospital do campo militar onde havia servido, há poucos anos, ao se alistar, como recruta, sob essa nova identidade (escolhida em homenagem ao eminente escritor G. B. Shaw, seu amigo pessoal). Assim que se espalhou a triste notícia, começaram a chegar parentes e amigos, além de personalidades das relações de amizade do orientalista que em 1926 publicou o relato de suas aventuras na Arábia apenas para seleto círculo de subscritores da edição, privada, do livro intitulado “Os Sete Pilares da Sabedoria”. Uma nova versão, mais condensada, deu a conhecer ao público em geral a participação destacada de T. E. Lawrence na chamada “Revolta do Deserto”, através da qual os Árabes, no seu movimento de “libertação” nacionalista (liderado, militarmente, pelo ex-Coronel) levaram a cabo operações contra a Turquia — aliada da Alemanha —, que muito contribuíram para o bom êxito do esforço britânico na Frente Oriental, entre 1916 e 1918…

“Parece extraordinariamente distante (e está), descrito desse modo inodoro. Na verdade, o torvelinho de areia pisada pelas cargas de camelos, entre gritos de guerra tribais no meio do rumor do vento respondido pelo drapejo de seda dos estandartes do sherif de Meca, um som perdido no meio da cena dos trens dinamitados, queimando ainda, no meio dos gemidos…” (estava anotado num papel de rascunho, dentro do jornal velho. Era bom o estilo de Julian, sobrevivente das redações cheias de pontas de cigarro e papéis amassados, de antes dos computadores)

O Bureau de Imprensa do Palácio de Buckingham teve a gentileza de excepcionalmente fornecer o teor da mensagem de pêsames já enviada à família de T. E. Lawrence. Diz Sua Majestade o rei George V, em certo trecho do telegrama dirigido ao Professor Robert Lawrence, irmão mais novo do herói tragicamente falecido:

“O nome do seu irmão perdurará através da história. Eu, o Rei, reconheço a proeminência dos serviços que ele prestou a este País, e considero trágico que tenha chegado ao fim, dessa forma, uma vida tão cheia, ainda, de promessas…”

O sepultamento do enigmático Lawrence da Arábia, desaparecido de maneira realmente tão trágica quanto inesperada (para quem se expôs a perigos tão maiores, no deserto e noutros lugares), será no cemitério de Moreton.”

“Isso das promessas — na circunspecta visão palaciana — era digno do mais irônico dos inimigos de Lawrence (que eram muitos), se algum deles tivesse senso de humor e a oportunidade de redigir os telegramas do rei George”.

— Fui convidado a escrever sobre as tribos do Iraque atual, mas recusaram o texto que eu apresentei, a guerra vista sob o ângulo a respeito do qual ainda não vi ninguém tratando, até agora. — Ele me estendia umas três ou quatro laudas que, no mínimo, seria polido ler, com toda a curiosidade que  fosse possível fingir diante do título absurdo:

Faltou um Lawrence no Iraque?

9. Faltou…?

Bagdá era, para T. E. Lawrence, um dos “sete pilares da sabedoria” — junto com mais seis cidades presentes no título da obra-prima (Seven pillars of wisdom) que ele escreveu com base nas suas anotações sobre a Revolta Árabe. Lawrence ficou conhecido como o condutor militar dessa “revolta”, inspirada em parte pelo Bureau Árabe, onde trabalhou para o arqueólogo e agente D. G. Hogarth. Jovens ingleses que dormem tarde e assistem, eventualmente, reprises de velhos filmes na tevê, terão visto uma parte dessa aventura no filme Lawrence da Arábia, co-produzido e dirigido por Sir David Lean, em 1962. Nos anos 20, o jornalista americano Lowell Thomas já populariza a vida e as ações do então tenente Lawrence, como agente de ligação e comandante de guerrilheiros na região do Mar Vermelho e da antiga Mesopotâmia, entre 1916 e 1918. Se as datas parecem recuadas no tempo, as conseqüências dessa ação permanecem no noticiário: Lawrence foi responsável pelo surgimento do reino do Iraque, saído diretamente do compasso regulado por ele, sobre os mapas orientais do Foreign Office, como conselheiro plenipotenciário e figura-chave da Conferência do Cairo, convocada por Winston Churchill em 1921.

Apesar disso, o famoso “aventureiro” ainda não foi ainda tão mencionado quanto mereceria, nos comentários de fundo da guerra atual. A urgência em relatar os bombardeios e choques de tropas, via satélite, até este momento falou mais alto do que as tão menos estrondosas ressonâncias de acontecimentos antigos, que nem todos recordam, mas que estão na raiz dos conflitos em curso no Oriente Médio, mais uma vez sacudido pelo piscar dos mísseis na escuridão. Enquanto escrevo, é a ponte Allenby (nome do general superior imediato de Lawrence) que surge no noticiário — uma vez que ela é a via de passagem, agora, de muitos dos jovens mártires atraídos para o sacrifício em defesa da capital iraquiana. Talvez nem eles se lembrem das batalhas sangrentas ali travadas, assim como das incruentas conferências dos políticos. Tanto umas como outras no entanto alteraram os destinos deles, dos seus pais e dos seus avós, vindo a culminar com a hora estranha dessa torre de loucura em que muitos partem da antiga “Transjordânia” para lutar pelo Iraque, ambos criados no Egito — há oitenta e dois anos — como monarquias entregues a dois príncipes da família hachemita que levantou as tribos em luta (sob o comando de Lawrence) contra os turcos aliados dos alemães, na Primeira Grande Guerra…

Sei que é confuso, porém não há como descomprimir a menção de tudo que vai de uma ponte a outra, na história recente do mundo. A sensação de oportunidades perdidas, de acontecimentos abortados e tragédias repetidas, é grande.

Há algumas semanas, Saddam Hussein parecia inspirado na estratégia lawrenciana, quando percebeu o valor tático das tribos iraquianas, que ele conclamou para lutar, em típica ação de guerrilha, contra o avanço das tropas invasoras. O ditador poderia ter feito suas as palavras de ordem da Revolta Árabe de 1916, pois literalmente exortou as tribos “a golpearem em qualquer lugar, com determinação, sem esperar pela ordem dos comandantes”. Lawrence da Arábia teria aprovado — como o meio mais adequado, por sinal, de combater na região bem conhecida dos xeques e guerreiros lançados em raids mortais contra as tropas regulares otomanas, conforme se acompanha nos Sete pilares.

Sob as ordens do tenente enviado, pelo Cairo, apenas como “observador militar”, eles investiram contra as linhas de abastecimento turcas, via estrada de ferro do Hedjaz (ainda mais longa do que a linha das tropas da coalizão, no primeiro avanço para Bagdá), em pouco tempo cortadas. A estrada de ferro se tornou irrecuperável, e ainda hoje é possível encontrar, no deserto das proximidades de Amann e Medina, os restos de vagões e ferros retorcidos da antiga linha, nos trechos pessoalmente dinamitados pelo herói vestido de beduíno — “El Aurens” — cuja atuação deixaria marcas indeléveis na história na região.

DE ONDE VEIO O HOMEM
Thomas Edward Lawrence (1888-1935) se formou naquele molde, de velha linhagem inglesa, dos “orientalistas” antigamente ouvidos para a definição da política, dos gabinetes, para o Oriente. Alguns deles eram francos partidários do modelo colonialista, mas outros se mostraram sensíveis ao apelo nativo, ao anseio das colônias distantes. E um grupo ainda mais restrito fez da “Questão Oriental” algo vital nas suas vidas, meio sonho político e meio “visão de estranhamento”, ou de libertação (espiritual) através da liberdade do Outro. É o que Lawrence confessa, logo na epígrafe do seu grande livro: “Por isso tomei nas mãos estas ondas de homens/ e a minha vontade eu inscrevi/ entre as estrelas, para ganhar-te a Liberdade/ o Solar de sete pilares/ que talvez brilhasse para mim/ em teus olhos, quando chegássemos”.

Quase todos saídos de Oxford, tais especialistas tomaram o caminho profissional da diplomacia, da arqueologia, da literatura e da cátedra, como eruditos de uma têmpera cuja receita hoje parece perdida, ou pelo menos substituída por pragmatismos sem imaginação, se não inteiramente estúpidos. Os ingleses de antes — e ainda da geração de Lawrence — eram, alguns deles, “sonhadores acordados”, dispostos a trocarem as confortáveis camas de Londres pelo chão rude das tendas, no deserto, e foi assim que seus nomes de fato se inscreveram “entre as estrelas” do céu oriental: Wilfrid Scawen Blunt, Richard Burton (não o ator de Cleópatra, mas o escritor e diplomata inglês que foi cônsul em Santos, na segunda metade do século 19), Charles Montagu Doughty, Ronald Storrs, David George Hogarth, Gertrude Bell e o próprio T. E. Lawrence foram alguns dos viajantes e orientalistas dessa estirpe, tornando-se autores obrigatórios da disciplina saída do limite dos estudos, para tentar redesenhar políticas e mapas modernos. Nas palavras de Edward W. Said, “cada um acreditava que a sua visão era individual, criada a partir de um encontro intensamente pessoal com a região, com o Islã e com os árabes e cada um deles exprimia um desprezo geral pelo conhecimento oficial sobre o Oriente”…

DE ONDE EMERGIU A SITUAÇÃO
A política “descompressiva” do colonialismo no antigo Crescente Fértil — pelo menos no que diz respeito à visão britânica — iria partir da já citada
Conferência do Cairo, como encontro de especialistas convocados pelo Colonial Office subordinado a um político novo e inquieto como Churchill se mostrou, pelo menos no início da sua carreira.

Por sugestão do venerável Wilfrid Blunt, ele convocou Lawrence para atuar como “ministro plenipotenciário”, na conferência de 1921, entre orientalistas e altos funcionários civis e militares, britânicos e árabes. O objetivo era dar o “conserto que fosse possível” a alguns aspectos da “Questão Oriental”, muito mal encaminhados durante a Conferência de Paz, em Versailles, dois anos antes. Em outras palavras: o que poderia ser feito para se conseguir, no Cairo, um mínimo cumprimento das promessas inglesas, feitas aos árabes revoltosos representados pelo rei Hussein, emir de Meca?

A resposta veio a ser, como já foi dito, justamente a criação dos reinos do Iraque e da Transjordânia, confiados respectivamente ao príncipe Feisal — companheiro de batalhas de Lawrence — e ao seu irmão mais velho, o emir Abdullah. Filhos do velho Hussein, ambos eram aristocratas da família hachemita, descendente do profeta, e, mais, aquela que dera o “aval” político (e religioso) para que as tribos do deserto se unissem às forças inglesas, cujo alto comando buscava abrir uma segunda frente, no Oriente, de modo a dividir tropas e esforços do Kaiser — aliado da Suprema Porta. Tal frente fora aberta e, em dois anos de guerrilhas e conquistas militares (e tomadas as cidades-símbolo de Jerusalém e Damasco), estava definida a vitória aliada nos dois “fronts”, com Allenby e Lawrence emergindo como heróis do conflito. O general no seu jardim de esguichos desligados para não borrifarem as muitas medalhas no seu peito largo, e o jovem tenente-coronel mais afastado, não pelos toques de água, areia ou sangue na camisa debaixo da túnica emprestada…

Ficava aberto, também, o caminho da paz e da prometida criação de um “grande país árabe”, o qual teria significado a existência, desde 1919, de uma nação aglutinadora dos povos de origem semita — no sentido mais amplo da palavra — e, portanto, sem fronteiras reclamadas, sem conflitos e sem um povo desalojado na Palestina (ferida aberta na carne do século 20, desde que Lorde Balfour começou a “preparar o terreno” para um futuro Lar Nacional Judaico), por exemplo.

Em vez disso, até a nobre família do rei Hussein se veria desalojada de Meca, em 1926, quando o trono hachemita foi usurpado, à força, pela tribo “estrangeira” de Ibn Saud, sultão do distante Neged. Isso aconteceu quando a exploração do petróleo começava a mudar a face da região, e esse interesse é que parte para o uso do mapa interno — das disputas étnicas, territoriais e religiosas — a fim de tornar cada vez mais lucrativa a desunião árabe. De outro modo, talvez não se possa entender, por exemplo, o quanto Osama Bin Laden odeia os ianques (aos quais desgraçadamente nos associamos). Fomos os primeiros patronos da família saudita, por intermédio do “pequeno Lawrence” que foi Kim Philby — de triste memória para este país —, até entrar em cena, com mais pragmatismo, a política americana do pós-guerra para o Oriente Médio, que incluía o pleno apoio dos usurpadores do trono da cidade santa dos muçulmanos. Como conseqüência direta disso, os descendentes de Ibn Saud aceitam tropas dos EUA, estacionadas no coração da chamada Arábia Saudita, e fica, por isso, difícil de acreditar que…

Não li até o fim. Ali, naquela casa, não havia nada do que eu esperara entre os papéis daquele lawrenciano triste, sonhando com o fragor de batalhas há muito esquecidas, numa Arábia distante — de antes do petróleo. Ele esperava despertar o interesse do pragmatismo de hoje por um desenho riscado, na areia, pela mão de um homem antigo como Aquiles, absurdo como o Quixote e quase tão esquecido quanto Casement?

Deixei aquela casa pelo mesmo curto caminho — um pequeno jardim maltratado — do começo da tarde. Uma velha gravação de “Skip” Nelson (eu apostava) fazia In the blue of evening sublinhar a minha partida, como se fosse num filme nostálgico da guerra animada ao som de orquestrações de Glenn Miller ou Tommy Dorsey passando qualquer coisa ainda mais recuada no tempo.

A conversa mole de Julian — sobre o acidente, acima de tudo — não me demovia de nada, nem desanimava, até porque eu estava saindo, pelo pequeno portão sem tranca, com uma relíquia inestimável, adquirida diretamente do “herdeiro” de Sir Ronald Storrs: The letters of  T. E. Lawrence, primeira edição toda anotada por Storrs, com a sua letra elegante (Julian era filho adotivo do antigo governador de Jerusalém, “o homem mais generoso que já viveu na terra”, na opinião parcialíssima do velho cercado dos últimos livros da biblioteca particular daquela autoridade).

O livro custara salgadas 300 libras que, via-se, eram bem-vindas para aquele homem retirado, cheio de queixas e vivendo no passado, entre as obras raras da biblioteca do seu “protetor”, na casa de subúrbio fedendo a almofadas úmidas e comida talvez grudada na louça que ele mesmo fora lavar (ouvi o som de água e xícaras) para servir um ótimo chá de menta, enquanto eu folheava o exemplar com as anotações de Ronald Storrs, lendo algumas com surpresa. Pelo menos duas tratavam de Roger Casement e, numa delas, algo surpreendentemente relacionado com Joseph Conrad — duas figuras que eu não juntaria jamais, em qualquer quebra-cabeça.

Ao me despedir de Julian**, enquanto ele me oferecia uma capa de chuva difícil de, mais tarde, devolver (“o senhor a envia de volta pelo correio”, sugeriu ele, com um misto de timidez e otimismo), pensei — não sei por quê — que ali estava alguém fisicamente perfeito para representar Country life, de John Ward, trabalhando o estilo rebuscado de acordo com a hora, a moda e o clima tão britânicos:

“O céu, vestido com seu delicado manto de cinza, colocara o Sol em seu bolso de cima, como um lenço de seda escarlate.”

É claro que não levei comigo a capa caspenta — pela amostra dos ombros do pulôver do filho adotivo de Sir Ronald.

* Royal Army Ordnance Corps

** Este livro já estava na prova final quando fiquei sabendo que Julian Storrs havia lançado, em Londres, um certo Lawrence of Arabia of Night. Estranho fato e estranho título. Oferecendo seu chá de menta, ele não mencionou que, da sua lavra, estava no prelo “o que não é mais uma biografia de Lawrence, nem uma obra de ficção desabrida sobre um das figuras mais controvertidas do século passado”, conforme anuncia Constable & Company Ltd (10-12 Orange Street, W.C.2). O título é particularmente intrigante, ao se referir talvez à noite sanjuanesca da alma — no sentido em que, associando-a à “Arábia” (lembro o conto de Joyce, no Dubliners), alarga a curva de ressonância da palavra como que suspensa num parque de diversões apagado. É o que suponho, ou melhor, é a impressão que me passa o batismo da obra que já encomendei, via internet, ao preço de 29 libras (mais 8 de  postagem). Espero que o calhamaço de 519 páginas valha as 37 esterlinas pagas pelo livro daquele homem hesitante e tão longe do autor “vigoroso e imaginoso no trato do seu assunto”, segundo elogia a Granta, entre outras páginas inglesas de literatura.      

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho