O inglês do Cemitério dos Ingleses (11)

Leia parte (10) do romance "O inglês do Cemitério dos Ingleses", de Fernando Monteiro
Ilustração: Ricardo Humberto
01/05/2006

22. O quarto atrás da vidraça
Mais uma vez, ficava claro — no meio da minha confusão — que eu precisava acordar, voltar, retornar e, na terrinha, então tentar, quem sabe, “pôr a cabeça no lugar”.

Era uma exortação velha conhecida: aqui e ali, alguém sempre a fizera, na minha vida. Ao jovem que eu havia sido, sem dúvida, e, mesmo agora, era reconhecível nos conselhos que eu ouvia, de um ou outro, sob forma disfarçada (porque não se dizem certas coisas a um homem maduro). Eu já não era o adolescente naquele quarto do segundo piso da casa assobradada das Graças. Ainda o ocupava, mas tudo havia desmoronado em torno, meus amigos há muito haviam “constituído família” e ocupado algum lugar na vida provinciana, olhando para trás com um sorriso de condescendência para suas melhores esperanças — derrotadas.

Para mim, segundo eles, era a altura de “pôr a cabeça etc”. Encontravam-me no mesmo lugar das febres, das promessas. No meu desleixo, eu permanecia fiel a elas, e, de algum modo, jovem, quero dizer, não era, na mente, o que era na carne, se é que me entendem, o corpo envelhece — porém, quando a cabeça faz aniversário? Claro, ela declina, acontece de a memória ir perdendo o fio, a imaginação empalidece como um espelho soprado, a mente se enfraquece naquilo que era alimentado pelos jovens neurônios, mas isso não significa que você tem a idade da pele no obscuro centro da terra redonda do homem rolando na cama na grama da infância recuperada por algum sonho desconcertante, pleno da confusão do tempo que somamos só enquanto acordados. O tempo, onde está a sua borda? Onde termina o seu abismo invertido? O que há debaixo dele e acima do céu, na escuridão sem portas?

Essas perguntas não estavam canceladas, no ser solitário que eu havia me tornado — enquanto todos os amigos casavam, à minha volta, esqueciam e desdenhavam delas, encontravam poemas rabiscados na folha em branco de um livro e não sabiam que eram seus, não lembravam, não gostavam de recordar uma época de poesia e disponibilidade, leituras intensas de alguns e conversas das quais parecia depender alguma coisa importante para o futuro (e, quando o futuro chegava, ele não se parecia conosco, com nada do que fora esperado em quartos e camas, jardins secretos e bibliotecas públicas).

Há uma hora, no entanto, em que se “deixa de ser jovem”, sei, e eu já não o era, naturalmente, nem almejava ser visto como um garoto velho, não podia (e não queria) ser visto assim, embora a traição geral não fosse do meu gosto, aquela deserção dos que haviam casado e tomado um “rumo” afinal, deixava-me tenso, triste (mais triste ainda, no meio do meio quarto fiel, onde as coisas estavam como sempre: o retrato de Lawrence, os livros — os amados — lidos e relidos, algumas cartas das quais eu não conseguia me separar porque seria como cancelar um tempo que pedia para não ser cancelado atrás do espelho, nos cantos do “aposento dos sonhos” (o poema de SF, que começava: “Rasguei o que não interessava./ Certas palavras em desuso/ “o ritmo de certas frases/ arrumei-os em outros aposentos/ do sonho”)…

De qualquer modo, eu não era mais um menino — embora ainda agisse como tal, por exemplo, ao decidir esta viagem em busca da sombra de uma sombra. O que eu viera fazer aqui? Qual mão me trouxera no rasto de uma frase rabiscada no postal de uma das fotografias velhas de Gerald Glaser? Como se pode partir por tão pouco? Talvez nem sequer isso houvesse me trazido, neurastenicamente, até Londres de novo, gastando um dinheiro que me faria falta depois, e, pior, desperdiçando horas, presa de inércia, olhando as aguadas de algumas manchas na parede (as do meu quarto, no Recife, eu não permitia que nenhum pintor viesse apagar sob camadas e mais camadas de tinta nova).

Pode ser dito que eu viajara justamente para sair de estado semelhante, após receber o postal de Glaser como um sinal distante, uma espécie de chamado, uma pista falsa que me inoculara a necessidade de transformá-la em verdadeira. Não era a primeira vez que eu agia assim, talvez não fosse a última, sendo capaz de tomar decisões repentinas que me faziam “acordar”, num avião, anotando:

O grande jato atravessou a noite, roncando nas alturas, sobre a obscuridade do mar e os borrões de cidades mal apagadas lá embaixo. A noite artificial da nave ficou para trás, com as luzes incertas sucedidas pela manhã que invade os aviões com uma sensação de realidade vinda do ar gelado de fora, rosa e azul, ao se inclinarem as asas de aço gelado na direção do Cairo.

Estou de volta, Omm Seth? Releio tudo isso? Olho pelas janelinhas redondas, nas escotilhas de cortinas cerradas para a noite e abertas para ver o Egito de cima, descortinando-se toda a empoeirada região do delta oriental, aos olhos dos passageiros estremunhados, que sobrevoam a antiga planície com a placidez indiferente dos homens de negócios?

Pelo rumor (e as luzes acesas), estão servindo o café de bordo, desde as poltronas do fundo da aeronave com pouco mais da metade dos lugares ocupados. Entre fazê-lo — com um certo mau humor maquilado — e recolher coisas como os pequenos travesseiros rolados para o chão, aeromoças informam não ser possível esquentar mais leite para mamadeiras nas mãos de mães árabes, viajando com crianças de peito. Se fossem inglesas ou americanas, aceitariam a negativa tão facilmente? As mulheres com lenços na cabeça aceitaram, sussurrando sons ásperos para aquietar os filhos, enquanto elas próprias eram servidas. O desjejum apressado já começa a ser recolhido pela contramaré das moças caçando brioches, torradas, manteiga, geléia sem gosto e café puro ou com leite mais ou menos frio. A pressa se justifica: veio um aviso — em inglês e em árabe — solicitando que a tripulação se prepare para a aterrissagem no aeroporto da capital egípcia, o nome masculino da cidade afirmando a justaposição estranha do antigo e do novo, dos espigões de vidro e das mesquitas, das torres de antenas e dos minaretes boiando acima do tráfego de formigas aumentando de tamanho, nas estradas. Começo a vê-las, pela janela oval que deixa entrar a luz reta e viva, enquanto uma criança chora com as novas manobras de perda de altitude. Estou aqui para o quê, mesmo?

Uma anasalada voz feminina agora avisa, em árabe, inglês, francês e alemão, sobre já ser possível “ver a grande Pirâmide, do lado esquerdo”, se você encostar o nariz no vidro e conseguir enxergar o quadrado achatado — quantos metros abaixo das turbinas ronronando sobre arranha-céus e pontes? A grande pirâmide não é uma construção para se ver exatamente de cima. Ou de baixo, ao pé dela, quando se perde a visão afunilada do prodígio da “primeira das sete maravilhas do mundo antigo” (a voz chuta uma possível ordem das cansadas maravilhas). Quando aqui estive pela primeira vez, via-a à distância, dos andares mais altos, na primeira semana: três triângulos de massa cinza, exatamente como nos postais baratos. Depois, fui visitá-las, como obrigação turística, na capital de “dezesseis milhões de habitantes, temperatura mínima de 22 e máxima de 33 graus em setembro”, segundo prossegue informando a voz, enquanto cintos de segurança são atados e se instala aquela leve excitação controlada das aterrissagens em lugares suspensos de um tal prestígio que chega a ser quase chocante que eles existam do modo mais prosaico, com pessoas saindo para o trabalho pelas rodovias bordejando o deserto quase imóvel, não muito distante…

decisão repentina, como sempre, na ânsia de me ver o mais longe possível do quarto cheio de livros, horas mortas e pensamentos que jamais porei num livro, para estranhos lerem (e muito menos os mestres dos conselhos, os sensatos sensaborões certamente afinados com o ruído e a luz comum, lá fora, em torno de outros bem sintonizados com as coisas “como elas são”, a vida “como ela é”, pão-pão-queijo-queijo).

O que eu estou querendo dizer é simples como fazer um sanduíche assim, e não da carne misteriosa da ave do paraíso perdido das quimeras entre as sombras da fumaça no quadrado da janela recortada na parede da juventude que não aprende. Ninguém permanece fiel a ela, todos a traem de alguma maneira, você se despede do adolescente no quarto olhando para nada precisamente, e, um dia, aceita ficar parecido, afinal, com todo mundo que envelhece igual em silhueta, coração e cabeça.

Ou seja, no meu caso estava na hora de abandonar o devaneio que prolongara as vacilações dos anos jovens na mente hesitante, a relutar na rendição incondicional perante as armas (poderosas) das coisas tangíveis, do próximo e do perto, do aqui e do cá tautologicamente trançados em brasão barato no portão de ferro atrás do qual você mesmo se fecha como num cemitério de rapazes mortos há muito tempo.

Objetivamente, por que não ser outro? Por que não me ocupar das coisas aqui da taba, nas proximidades tranqüilas das lagoas dos tais “estudos nordestinos”, por exemplo? Era ao que me haviam exortado não poucos amigos (com as melhores intenções, acredito), sendo o mais enfático o poeta Lêdo Ivo, entusiástico e monótono como os próprios estudos nordestinados monótonos que seus autores nos oferecem com longas dedicatórias, sobre mesas de camarões e mariscos, entre lufadas do ar calorento no restaurante onde professores de literatura se confessam ensaístas inéditos, romancistas frustrados, poetas que ensinam literatura portuguesa quando preferiam até morrer gangrenados como o burguês de Aden, Monsieur Arthur Rimbaud. “Eu queria escrever sobre ele, mas terminei fazendo um estudo da poesia de Augusto de Lima, você já ouviu falar?” Sim, você já ouviu falar, não quer passar por esnobe, e elogia as edições baratas, os assuntos escolhidos — sem necessitar de exortações, eu imagino — pela maioria dos intelectuais do lugar que você visita, gentilmente acolhido por ocasião de alguma feira “internacional” de livros, alguma bienal de livros entre dois anos de monotonia. O que pode se fazer contra os vinte quilômetros, por hora, da vida no autódromo do relógio parado das cidades dormindo à beira do mar encharcado de sol do dia seguinte, da segunda-feira de garras afiadas de monotonia?

Seja simpático, e simplesmente faça exortações, como Lêdo Ivo, anime os locais a se      concentrarem no próprio umbigo meio torcido (diferentemente do redondo perfeito do umbigo de uma estátua desnuda de Vênus sem braços, porém íntegra no ventre seccionado da barriga de Gea pelos ventos soprando sobre a cabeleira arrepiada de Netuno — da qual Afrodite emergia vestida da prata do luar antigo), sorria e se espante diante do fruto da solidão que leva para mais longe do que as margens de lama do Capibaribe, rumo à praia remota de Patmos…

“Patmos?” Lêdo estranhara a minha poesia distante do Atlântico, e partira logo para o terra-a-terra das sugestões de objetos de estudos entre os quadrantes mais rasteiros das lagoas de Abaeté e Mundaú:

“Falta um ensaio definitivo sobre Castro Alves no Recife!” — gritava o poeta, escolhendo a dedo os temas para mim, numa conversa velha de quando eu era jovem interessado nisso que me atrai ainda agora: não a geografia dos assuntos, mas o mar sem fronteiras do quintal de dentro, com os seus frutos encostados no muro alto, acima da cabeça chata de Lêdo retirando pautas do seu chapéu de couro imaginário da pátria áspera de Graciliano:

“Escreva sobre o Nabuco diplomata, sobre a biblioteca de Oliveira Lima, sobre as contradições de Rosa e Silva, ou sobre assuntos mais amenos como a face donjuanesca de Delmiro Gouveia, fugindo para se esconder no alto da chaminé de uma fábrica de Olinda!…”

Eu ainda ouvia as interjeições do incentivo do poeta sempre exclamativo, nos meus ouvidos entediados de música armorial, num restaurante de iguarias nordestinas típicas, durante uma das raras visitas do alagoano ao “ninho de cobras” da sua Maceió mantida à distância. Turista nada acidental, sua intenção era a melhor possível: fazer-me o bem da escolha certa dos objetos de estudos que geram monografias e livros recolhidos nas academias estaduais de notáveis estudiosos de figuras locais e temas caros à província dos maracatus, reisados, caboclinhos, bumbas, cocos-de-roda, pastoris, cirandas e bacamarteiros. (E o esconderijo de Delmiro não fora na chaminé da Tacaruna, que não ficava em Olinda.)

Degustando uma lagosta na manteiga, Lêdo lembrava um Lampião degolado ao vivo, o riso permeado das mordidas no crustáceo macruro, a dar sugestões de temas de ensaios, na noite do Trapiche: “E se você escrevesse sobre um pernambucano da gema? Porque Delmiro era cearense, Castro Alves, baiano até a medula vergada da capoeira (outro tema de escol!)… e vocês recifenses são bairristas, sempre foram. Então, por que não se debruça sobre a vida do seu parente distante, Antonio Peregrino Maciel Monteiro, poeta dos bons?”

Lagostas, literatura e história jaziam naquela mesa capenga, de toalha quadriculada na qual Ivo passara, mais de uma vez, o dedo engordurado, rapidamente. Dedo Ivo ama — do andar mais alto de um edifício de Botafogo — a terra natal idealizada para efeitos literários sonoros. Ele gosta de recordar os mangues desde a secura do décimo andar de um edifício de Botafogo, assim como também confessa o mesmo amor ao Recife (“Amar mulheres, várias! Amar cidades, só uma: Recife!”). A capital pernambucana foi capital — opa — na sua formação de jovem poeta sentado no colo de Manuel Bandeira, segundo a lenda crônica daqueles tempos de inocência duvidosa, plenos de histórias de intelectuais brasileiros típicos, amantes de tudo o que seja do tamanho da cabeça dos alfinetes sentimentalmente pintados por miniaturistas que antigamente se exibiam nas feiras, junto com a Mulher Barbada e o Bode de Seis Patas.

No ar cinzento de Londres (não ouso aposentar a cor tradicionalmente pespegada à cidade, por distração e preguiça visual de matizar melhor o ar da cidade, etc.), eu havia parado para pensar no bode — prisioneiro de um cubículo fedorento, onde ficava amarrado, à espera dos curiosos pagantes de entradas para ver aberrações — e na tristeza das matas brasileiras, das praias de Limite e do céu que desmaia quase sem avisos: “cai a tarde/ tristonha e serena”…

Estava esquecido de Lêdo, naquele momento tomado pela recordação da tarde brasileira “serena” — que não cai, propriamente. Ela desaba sobre as nossas cabeças tristonhas e preocupadas com temas locais, empregos, títulos e prêmios. Sim, eu deveria me dedicar à pesquisa do avoengo Maciel Monteiro, barão de Itamaracá, péssimo poeta, dandy do Recife e sedutor de opereta, na cidade que Darwin detestara, desembarcado do Beagle para altercar com os “grosseiros pernambucanos” a respeito de alguma ninharia qualquer.

Havia tantas para pesquisar! O verbo “pesquisar” é um dos verbos amados da “língua de Camões” e um dos lugares-comuns dos quais dependem as nossas boas conversas serenas. Somos os homens cordiais das raízes brasileiras, matamos a três por quatro, porém escrevemos memórias, verdadeiras, dos amores e dos crimes violentos, e só nos afastamos das praias de caranguejos para retornar, o mais depressa possível, de viagens começadas com o arrependimento (eu já estava querendo voltar, com menos de uma semana de “pesquisa”, frio e 300 libras pagas, logo no primeiro dia, pela primeira edição das cartas de Lawrence).

“T. E. Lawrence?” Lêdo se espantara, cedo. “Por que Lawrence? Quem quer saber disso?”

E isso porque via, Ivo, a uva dos nomes pátrios, dos temas de melhor aceitação pelo Brasil de Catulo da Paixão Brasiliense — mulato de luva de pedicuro a sarjar o bicho-de-pé da coceira dos assuntos do Trapiche visguento, beco sem saída do vate emigrado para o Rio do varejo de versos longos como bocejos. Para Lêdo, o meu engano era incorrer fora do dele: um descendente do feioso barão deveria escrever sobre a amizade do aristocrata com o elegante engenheiro Louis Vauthier, por exemplo, no tempo da construção do teatro onde Castro Alves pela primeira vez declamara Navio Negreiro, “obra-prima condoreira”. Ou levantar a passagem do gênio universal Albert Einstein em navio que havia aportado, no Recife, no dia 14 de maio de 1925 (não há certeza absoluta de que o matemático tenha aqui desembarcado, como fez o intratável Charles Robert Darwin, em agosto de 1836). E havia, também, aquela madrugada de farra de outro gênio, o cineasta Orson Welles, “marido de Rita Hayworth”, na zona do baixo meretrício, ciceroneado por Caio Magarinos de Souza Leão, Benício Dias e Tomás Seixas, aos quais o jovem americano de fama então mundial ficara devendo o roteiro da “noite esplêndida”, terminada nos braços da famosa Alzira Batalhão (que trepava cantando a “Marselhesa”)…

Lêdo Ivo ria, deliciado com nossas pequenas lendas. O nordestino tem, antes de tudo, um fraco pelas histórias miúdas das rodas dos terraços de chuva, que dão para os muros baixos das casas de pianos ouvidos serenamente, nos quintais de mangas derrubadas pelos contadores de “causos” da rasteira crônica interna (que inclui alguns estrangeiros aqui chegados, de preferência, para provar sapotis suculentos e os camarões das nossas águas demasiado quentes).

Antes de render-me, leda e lodosamente, eu precisava, entretanto, firmar-me nas águas frias daquele assunto de velhas “ninharias inglesas” (a expressão anotada por Storrs na bela edição de Jonathan Cape), girando à volta de Fielding, na história torta que, mais uma vez, me levara pelo nariz, trazido para tão longe de casa, entre assuntos longínquos e a cidades estranhas, estrangeiras. Toda cidade é estrangeira para alguém. Claro. Dá nisso ouvir os conselhos dos Ledos Enganos da Terra, entre móveis de sótão e ruínas de aquários derrubadas para pescar peixes cegos, no fundo da minha sala afogada do Recife debaixo do rio (eu ouvira notícias de novas cheias na cidade baixa como a Amsterdã dos holandeses expulsos das nossas quimeras de águas e calores do fogo de fornalha deste lado do hemisfério).

Quando voltasse, talvez os peixes estivessem mortos, e a casa úmida da marca de um metro de enchente nas paredes da biblioteca inundada, por sobre a eterna desarrumação. As cheias recifenses odiavam os livros, as coleções de discos raros e as gravuras, os desenhos de nus guardados em gavetas e as cartas, não-enviadas, para pedir perdão. Todos os recifenses vêm tudo perdido, alguma vez na vida. Isso era um consolo, um castigo, uma purgação?

É verdade que uma semana em Londres já me havia destroçado, mais uma vez, à beira, como eu estava, de um ataque masculino de nervos (que é um ataque que só se revela por nada que se veja, lágrimas abortadas e anotações precisas de frases desconexas, etc.). Minha Londres era distante da Londres de todo mundo. Meus olhos úmidos poderiam ser, de repente, de churros oleosos e cheiro de borracha subindo das estações do centro — se acontecesse de eu perder a corrida para as portas do metrô se fechando para a pressa amadora. O amador constante sou eu, somos nós, a Inglaterra nos comunica isso, aponta o dedo armado e nos executa, com desculpas. Talvez não fosse bem isso, porém eu sentia como se fosse — e, para mim, era. (Se isso soa confuso, é porque você nunca partiu em busca do que está atrás, bem na sua frente.) Abandone esta leitura se você acredita em coisas lineares alinhadas como casacos num guarda-roupa onde traças se alimentam da esperança de vestir roupas que nunca mais serão enfiadas no corpo, paletós molhados, camisas mofadas e camisetas decoradas pela ação dos fungos. “Não temo a morte, mas temo a tristeza.” O fato é que eu já me encontrava de um jeito que conhecia muito bem. Havia ficado olhando para a cortina de chuva em Old Broad Street por uma hora inteira de relógio — molhado, quase hirto debaixo das marquises que vazam água em qualquer parte do mundo, ou são insuficientes para proteger da chuva de vento que se inclina na direção do seu recuo. E você ouve música vulgar, num lugar vulgar, e pode começar a chorar, sem ruído, como uma mulher grávida que se põe a chorar sem nenhum motivo ou porque viu a foto de um menino africano faminto sorrindo para a câmera dos Glaser fotografando a África cheia de cadáveres.

A inauguração da Fonte Diana, no Hyde Park — a água correndo em duas direções como cortinas de neblina correndo sobre o grande anel ovalado de granito — me deixara arrasado, ao pensar na vida da princesa como luz, movimento e fumaça de água se evaporando sobre o chapéu lilás da rainha que chamou Diana Spencer de “um ser humano extraordinário”.

Vai passar, a gente pensa e se diz isso, repete o curto mantra profano da infelicidade — que não vai passar. Se eu soubesse rezar, talvez…

Esta viagem fora resolvida de uma hora para outra, a pretexto (você precisa saber ao menos para onde ir) do quê? De conhecer o destino de um velho doente que não interessava a mais ninguém, embora quisesse eu entrevistá-lo, sim, sobre o único acontecimento notável da sua vida: o atropelamento que não sofrera, o quase abalroamento da sua bicicleta pela potente moto do homem que “Omm Seth” dizia ter sido o faraó Ramsés II, muito antes de vir a nascer, no quarto final do século 19, como filho bastardo de um baronete arruinado, para tornar-se herói e vagabundo do arrependimento, convidado para ser vice-rei da Índia e, em último caso, dirigir o Banco da Inglaterra ( “Diga, Lawrence, o que diabo quer? A coroa?”)…

Você acredita nisso?

“Claro que não. Mas, gostaria de saber quem era a pessoa que eu vi na câmara, sem nenhuma ruga, o cabelo escuro e viçoso, amarrado com miçangas e flores do Nilo?”

Podia ser uma turista que não se parecesse com uma turista. Turistas (os verdadeiros, pelo menos) são sem imaginação e não usam miçangas e flores antigas no cabelo.

“No meio do inverno, dentro da sala de dois pilares desenhada para ser inacessível? Ninguém entrava ali”.

Ela falou alguma coisa?

“Eu acho que desmaiei”.

E depois?

“Fui acordada por ‘Omm Seth’, com a canção que ela cantava quando pensava que estava sozinha”.

Nunca estava?

“Quase nunca”.

Receavam alguma coisa?

“Tinham medo, eu creio”.

De quê?

“Não sei”.

Claro que sabe.

“Talvez tivessem medo de que ela fosse mesmo quem dizia ser. Um dia, apareceu com uma autêntica jóia antiga, nova como qualquer outra que se compre numa joalheria de Londres.”

Então, era uma jóia nova?

“Não. Tinha três mil anos, e era de ouro. Um anel maravilhoso”.

Ela poderia ter achado no fundo das câmaras…

“Estaria, então, com o aspecto de coisa enterrada há 30 séculos, como a câmara e o próprio templo-cenotáfio debaixo da areia que nunca deixa de…”

Era do tesouro do templo?

“Sabe-se lá de onde era! Seja como for, estava como novo, um anel intocado pelo tempo (que é uma abstração). Parecia acabado de sair da oficina do ourives real e, assim, não poderia ser daquele chão de coisas roubadas do pó, amassadas e incrustadas de sujeira que saía somente com o tratamento químico no pequeno museu improvisado, onde limpavam e classificavam as poucas peças achadas em Abydos. Nada, porém, sequer parecida com aquela peça estupenda de delicadeza”.

E ela ficou com o…

“Claro que não. Foi guardado pelo dr. Hassan, que nunca se manteve lá muito honesto, quando se tratava de ouro. Digo o que todo mundo diz hoje, na ausência do morto.”

Mas, ele guardou o anel para si, assim, na frente de todos, tomado de Dorothy?

“Ela sorriu, deixou que ele guardasse e levasse, tentasse vender numa caixa de jóia vulgar…”

E ele vendeu?

“Ele não encontrou nada dentro, quando abriu a caixa, no Cairo (onde tudo pode desaparecer)”.

Eu estava confuso assim. E via uma capital também confusa, uma cidade de cacos do meu espelho partido nos anos em que outra juventude buscara outros objetivos, todos confusos e todos perdidos, sem encontrarem causa à altura da rebeldia diluindo-se em colorido de roupas, estilos de cabelo e furos étnicos nos lábios, no queixo, no umbigo e noutros lugares mais secretos de uma desesperança diferente daquela das gerações que haviam mantido o desespero sob controle — e não só abrindo as portas para as damas, a fim de esperar o temporal passar, com elegância, alguma paciência e a compostura certa para não derrubar tudo ao mesmo tempo, pinos e garrafas, certezas e incertezas precárias, igualmente, até virem as novas gerações de funcionários e caixeiros de hoje, bancários on-line e passantes sem guarda-sol num mundo em que você viaja de túnel para túnel, sobre escadas e esteiras rolantes que não carregam mendigos e excluídos. Via no primeiro um mundo exausto de conforto oferecido pela produção de bens de consumo em excesso coisas do tipo que ninguém havia pedido, via o que havia para ser visto, cheirado, tocado, comido, ingerido, inalado, bebido — quando ainda havia água em abundância, sentido (algum), velas, bússola, direção, rumo ditado pelo orgulho do motor a explosão, os espelhos da perfeição e agora a alta tecnologia de robôs sensíveis, prontos a substituírem a confusão de uma lembrança à volta do ombro nu de uma mulher, molhado da chuva. É tão estranho. Uma mulher “antiga” que não é Dorothy Eady nas suas ilusões egípcias, uma mulher talvez até do Recife — se a cidade fosse reconhecível, quando ela se afasta da janela (que pode ser uma escotilha). A água vem do mar? Você vê dentro, quando se empenha em sair do túnel de cristal líquido da realidade que pode ser partida por uma decisão inesperada seguindo o trilho da água que se torna pátina enegrecida — aquela película de poeira e fuligem sujando os dedos no ato de descascar milímetros de umidade do que parece a solidez de um mundo físico real, onde uma mulher vestida à maneira das mulheres de Arca Russa (eu acabava de rever o filme, sem legendas e ainda mais estranho num cinema londrino, as imagens parecendo mais do que nunca fluidas na longa procissão da corte saindo do palácio, interminavelmente), você então invade, ou pensa invadir, o quarto atrás da vidraça da frágil bolha do espaço-tempo, a jaula da realidade da qual muito raramente escapa a nossa mente. A daquela mulher, escapava? Não falo de Dorothy, charlatã (“charlatã?”) simpática, um destino a seguir a imagem de algum livro da infância, no fim do arco-íris após o fundo do coração do Congo das trevas, um talismã disfarçado de leitura de viagens, um livro curto cujo circuito podia descarregar rápida eletricidade selvagem de três ou quatro imagens do mesmo relâmpago a invadir o sono prosaico, na segurança do quarto. Do quarto de paredes de chuva onde Tomás concordava em que um demônio “havia espiado sobre o ombro de Conrad”, enquanto ele escrevia Heart of darkness. Dê uma gargalhada. Veja claro e não confuso, como eu via claro — agora — o que havia me trazido para as praças desfocadas, entre ruas embrulhando o meu estômago (vomitei em Soho Square). Você se afasta, recua, viaja — e então percebe as coisas que estão existindo longe, que só podem existir assim, fora do seu alcance e distante das outras coisas modificadas. Sei que é difícil de entender — mas eu vomitava de verdade, estava tonto, molhado, deslocado de algum eixo qualquer, numa cidade mudada a tal ponto que a mudança alterava o meu modo de perceber o passado e a realidade. É diferente quando você é dali, nasceu no norte de Londres e, talvez, no final da Década Vazia, estava à espera de nada. Há um velho trilho azeitado (como sempre), para os cidadãos nascidos no seio da hipocrisia ou das grosseiras relações dos “menos afortunados”, conforme o eufemismo dos dircursos para as eleições parlamentares, entre escândalos ocasionais de gabinetes e alcovas, festinhas de todo tipo e daquele, em especial, da periferia da classe, sem grande futuro, dos netos de antigos ferroviários ou porteiros que admiravam Stephen Spender, digamos, porque tinham se tornado razoavelmente cultos, à força das bolsas de estudos destinadas a contemplar as “classes baixas” com o disfarce do desprezo, subjacente, de moças da “classe alta” trepando com africanos drogados, vestidos supercoloridamente ou imitando (mal) os ingleses, com sovacos de paletós fedidos a rato zulu morto debaixo do braço. Estou me referindo a todos que nasceram tarde demais, num mundo sufocado por cultura, tédio e tevê, fora da imposição do euro que ora ganha do dólar, entre os últimos ônibus vermelhos e turistas morrendo porque não acham a escada de incêndio das notícias novas sobre clonar ovelhas e entradas nos estádios, câmbio negro, jogo sujo, polícia branca e as torcidas querendo quebrar alguma coisa. Olhem as praças dos canhões esfriados, as estátuas dos soldados e dos generais, dos artistas e dos políticos que cresceram noutra época, quando havia a mesma indelicadeza, disfarçada diferentemente. Vejam as cabeças coroadas de cocô dos pardais. Tudo o que aconteceu foi há tempos, sempre antes de você nascer depois das grandes festas, da luz emanada dos quadros dos museus de arte subvencionada e, dizem, falecida na mão da técnica. Admirem o resto das cores esfumaçadas na paleta de Turner sobre o Tâmisa despoluído regularmente, entre jacintos e jardins de esculturas das mulheres jacentes de Moore nos parques bem cuidados da violência tornada em estatística: morrem mais em menos tempo, embora haja a seguinte explicação do Ministério: ehfbcxesoswknjjsgeifdnfgeteodkfgsjdbcfgerpoamncvwwodnafxoemdbsfaskddhcfdsb

vidraças no interior ligeiramente tremidas apenas pela ondulação do som de sinos no ar dobrado entre aves descidas do metal do céu para ciscar na cinza após camada de cinza, desde quando a cidade fora parcialmente arrasada, etc. Jovens ingleses comparecem às aulas, visitam os museus, são perguntados sobre Van Gogh e Hogarth, “Rake’s Progress” e outros orgulhos nacionais particulares, numa nação colecionadora de tudo, desde frisos gregos às curiosidades da Old Shop, “antiquário de 450 anos”. O senso do passado pesa como na casa-museu dos Fields, um acúmulo desorganizado já na cabeça de John Soane, cavalheiro e diretor do Banco da Inglaterra, a instituição financeira mais sólida do planeta, que Lawrence recusara dirigir — quando o oferecimento absurdo do posto fora feito ao ex-coronel talvez para evitar que ele cometesse suicídio em algum beco secundário, morto de fome, de vergonha e de desgosto por compor o quadro dos heróis britânicos da Primeira Guerra, todos de botões dourados, bigodes e fé no Império decadente: “Eu me achava preso num mundo de morte, cercado de maus presságios, quando tomara a resolução quase sem causa imediata: partir com as legiões há muito sem combate, na companhia daqueles meus soldados sem mácula, rapazes de olhar branco (os despidos de vícios). Era a hora. E, agora, era tarde para desfazer os preparativos da guerra imotivada. Estava tudo em marcha como se põem as coisas nos assuntos de guerra, e, ali, na tenda armada às portas da cidade, os camareiros já chegavam, solenes como camelos, para trazer, com pompa e almofadas, o elmo e a couraça de ouro, pesados e opressivos debaixo do sol. Ouvia-se apenas o resfolegar dos cavalos, seus cascos impacientes, e o drapejar dos estandartes de guerra, um farfalhar de pano dobrado e esticado pela rispidez do vento, que me desagradava como som, porém não como significado: o ar, a claridade, o dia maduro, dessa vez estavam do nosso lado. Um menino de bela tez (que parecia a moça magra, de rosto anguloso, cujo fantasma pisava de leve nos meus sonhos) em seguida apareceu, saído da comitiva de cortesãos e sacerdotes, a fim de me anunciar os presságios das vísceras dos pombos. Não dei atenção ao adivinho persa, nem ao padre de Ravena, mal tolerados. Toquei com a ponta dos dedos na face fresca da criança, depois de ouvir que os augúrios eram bons. E lhe dei uma moeda de ouro, antes de degolá-la”…

Meninos, aproveitem o melhor do sistema educacional no velho país que se esforça por se manter ligado nas ataduras das múmias vivas, parecidas consigo mesmas na hora — mantida — do chá, entre outras inglesices de piada. No mais, tudo se apaga — som, sentido, sentinelas — à volta dos monumentos inutilmente lavados, enquanto os carros dão a volta em torno de catedrais e palácios de pedra ecoando frialdade. O Centro se desfaz como um círculo de menires cansados de sustentar o resto da visão encarnada por poetas e guerreiros “em perda de convicção” — mas não importa. Desde há muito tempo vinha caindo o reboco da Casa Inviolada, estuprada para dar lugar aos muitos “abrigos das criaturinhas, na sombra poluta da tua dádiva”…

Eu via Londres, e, logo a seguir, não a via. Era como Lêdo vendo Maceió na lembrança confortável, à distância, embora a capital inglesa fosse o local onde eu de fato estava — sensação física possível de conferir com apenas o abrir de uma janela flagrando a manhã fria, com inglesas lentas na maturidade e jovens de calcanhares machucados por elegantes sapatos, lépidas a caminho do trabalho. A cidade desaparecida era a cidade real, por entre o rumor dos parques de balões de gás e os corpos brancos das mães olhando para trás, em busca de velhas crianças perdidas como Ned, Sarah…

Onde vivia Sarah? Eu precisava vê-la, antes de voltar.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho