O inglês do Cemitério dos Ingleses (12)

Leia parte 11 do romance "O inglês do Cemitério dos Ingleses", de Fernando Monteiro
Ilustração: Ricardo Humberto
01/06/2006

23. Sarah Graham
Voltei de Londres sem ter visto Gerald Glaser — assim como, oh, a mudança da Guarda mecânica, dada a corda neles, os soldadinhos da carne de chumbo quente, os rapazes corados debaixo do frio e da chuva encharcando a barriga de urso dos seus capacetes. Os turistas enxameiam em torno dessas coisas, vieram para isso, não esperam — nem acreditam — nas coisas que alteram o rumo da existência, no fundo do bazar à nossa espera nas cidades de madrepérola marchetada nas paredes sonhadas por devaneios que fazem a curva do Trapiche ou do bairro de “dentro do Recife”, que consumira uma parte da minha vida diante de navios fundeados, barcos parados, águas mais ainda.

Meu retorno foi deprimido pelo fog, a neblina de água que todos associam à Torre e à Ponte (“prodígio de engenharia, capaz de funcionar com o movimento de uma única alavanca”), assim como a todo e qualquer cenário clichê das madrugadas de Kipper1, que fora “ninguém menos que o príncipe Eddy, duque de Clarence”, me informou Sarah Graham.

Essa é a recordação essencial de uma viagem falhada exceto por ter me dado a oportunidade de revê-la, transformada em mãe e “sensitiva”, pouco antes do retorno para a gaveta da minha vida, a gaiola da casa de pirilampos mortos e fotos esmaecidas, prisão sem ferrolho do Recife onde eu podia circular à vontade — desde que voltasse para o quarto cheio de mim mesmo, abarrotado de mim, entupido do eu farto de si próprio.

Sarah Graham aparecia num dos instantâneos emoldurados, que o tempo retocava, ano a ano. Fora obtido em Olinda, milênios antes de eu me ver na sua casa, molhado até os ossos, custando a crer que fosse ela aquela mulher madura, a massagear a minha cabeça com uma toalha felpuda, depois de me emprestar calça, camisa, cueca e sapatos do falecido marido (um russo menor do que eu).

“Quando você cruzou a rua, eu sabia que ia tocar a campainha, que era você e sua tristeza ensopável, meu amigo.”

Ela queria dizer “incurável” ou “ensopada”? Ou ambos? Estava tudo misturado como naquela indesculpável visita-surpresa à casa de uma viúva ainda jovem. Isso já não tinha a menor importância, neste século 21 servindo, afinal, para alguma coisa. Eu não podia estar cem anos enganado, e olhava para a descendente de Maria Graham com ternura para com meu próprio passado também sem importância. Estou antecipando tanta coisa.

Aquilo que ela me disse — sem demonstrar surpresa — soa agora como a fala de alguma personagem de soap opera espírita transmitida no último horário noturno, depois que você não suporta mais ver o canal dos peixes no aquário, ou outro qualquer para  hóspedes solitários de hotel, sem programa e sem a lembrança de sair do quarto sombrio ou da vida insuportável-incurável-ensopável…

Se eu não havia procurado Glaser (por bons motivos), no entanto pensava em procurar Sarah Graham, e esforçadamente me dedicara a isso, nos momentos de folga do museu. Apesar de temer a perspectiva — acertadíssima — da senhora madura me abrindo a porta de ferrolhos e trancas, e piscando os olhos para a claridade matizada da garoa que torna ainda mais melancólicos os reencontros do gênero, etc. Não posso ser acusado de má vontade ou de preguiça. Logo ao chegar, mesmo com todos os receios, eu havia usado o velho caderninho de endereços, antediluviano, riscado e anotado até com pequenos poemas registrados contra o esquecimento.

No caso do endereço dela, já não conferia com o de nenhuma “Miss Graham” descendente, ou não, da antiga viajante que viera conhecer o “Recife de Maria”, há dezessete anos. Foi preciso muita determinação, um pouco de sorte e o fato de Sarah ter se tornado uma “sensitiva” — aqui e ali aparecendo nos programas vespertinos destinados ao público feminino —, para encontrar a pista que me levou a um apartamento de Paddington, na zona dos novos empobrecidos da cidade assistindo tevê, entrevistas com paranormais e bebês salvos de serem devorados por cães de guarda, veteranos sem braços que pintavam telas com pés de unhas maltratadas e mulheres de astros do futebol de duas décadas atrás, se não John Mills precisando ser apresentado a telespectadores que jamais haviam assistido ou não recordavam de nenhum filme daquele velhinho simpático.

Ela morava num pequeno apartamento decorado com gravuras do Brasil colonial e alguns desenhos da escritora e pintora do adorável “panorama da baía da Guanabara” — de mais de três metros — que faz parte do acervo do Masp (os trezentos e sessenta centímetros de comprimento daquela paisagem carioca são um pequeno prodígio de observação alongada e delicada; uma vez, fiquei hora e meia diante da “tira” de papel e tela dignificados pela proximidade dos Reynolds e outros mestres de olhar agudo, perto da sala onde o caprichado — e espichado — quadro de Maria Graham está pendurado como uma pequena ilha de paz longitudinal e distante, no meio da Avenida Paulista).

Os desenhos de alto valor estavam mal-emoldurados, e, pior, lado a lado com reproduções baratas, no bricabraque da decoração de classe média misturada com restos de elegância vinda de época na qual a pobreza ainda podia se resguardar de certas aferições, do crédito consignado e dos enterros nos novos cemitérios da periferia da periferia.

Logo ao entrar, vi um samovar notável num dos cantos da sala. Retratos de uma menina e de uma adolescente um tanto aciganada, correspondiam à filha — Ludmila —, com olhos negros bem diferentes da mãe e a idade das minhas lembranças da “primeira” Sarah.

Sarah. Fazia muito tempo, e eu estava tentando conciliar a recordação da Sarah de pele de louça com a senhora gordinha de pele queimada (“de Cuba”) que me abrira a porta, antiga estudante de história que se casara com um “dissidente russo”, tivera uma filha e havia ficado viúva, tudo em dezesseis anos. Agora, estava me abraçando, de novo, dizendo sentir “uma perturbação na minha aura”, e que, no ano passado, quisera levar a “sua” Ludmila em viagem-presente de quinze anos para… “adivinhe qual país?”…

Claro que era o Brasil. E queria ir ao Recife, aonde pretendia me procurar, “mas o quê, quem imaginaria, você chegou quando?, e está preocupado, muuuito preocupado, estou vendo uma zona escura em volta da sua anima, meu querido, se eu fosse você me cuidava, mas você nunca se cuidou, deve ter algum parente meio ‘fora do ar’ na sua família, puxou a algum maluco manso como Ludmila, você sabe (como eu poderia saber?), saíra ao pai, não parava, visitara Cuba recentemente, tinha preferido, era louca pelos músicos cubanos e também pelas praias e pela comida de Cuba, a menina. Você esteve pensando na pobre Dorothy Eady — acertei, meu querido”?

Como poderia ter sabido?

Sarah — a nova — também se acalmava (passado um tempo), graças a deus.

Quando ela serenou, eu disse que sonhara, sim, com “Omm Seth”, tinha um pesadelo relacionado com aquela senhora (“você a conheceu”), ela sabia, e eu fui ficando com medo, confesso, da Sarah que eu fora reencontrar em Londres, empurrado pela melancolia, os sonhos da véspera (luz entre as colunas), o fato de estar querendo me sentir de volta à “Swinging London” suando o sweat nunca sweet das trocas cabreiras de palavras, da semelhança, de ressonâncias ocultas entre elas — além do culto da princesa, que ainda estava nas ruas, meia dúzia de anos depois daquele longo cortejo acompanhando o corpo de uma inglesa ligeiramente parecida com a do Recife (o que era nada incomum para a promíscua Londinium amoral desde os tempos do imperador Cláudio, se é que “amoral” significa qualquer coisa que sugere você se perder num apartamento vazio, na companhia de uma estranha, e ambos jogando a roleta de trepar sem camisinha e sem identidades, último tango retardatário de Londres, cujo anacronismo era a “novidade” sexual da cidade a conviver relativamente bem com a Aids).

Acima de tudo, agora eu me sentia mais confuso do que nunca, no meio de uma viagem impensada. Como se fosse outro, eu me perguntava o que exatamente viera fazer ali, e por qual impulso maluco mais uma vez comprara uma passagem para sair, quem sabe, da proximidade das coisas só reconhecidas à distância. Eu precisava disso: de ver tudo recuado, sob a lente de binóculos invertidos, pelo buraco de um olho-mágico no fundo da madrugada em que você bebeu e acorda numa cama que não é sua.

Lawrence? Eu não viera só pelo acidente de 1935, quase esquecido na pele, milhares de vezes mudada, do mundo envelhecido outro tanto desde então. O impulso que eu seguira estava mais embaixo, como o perfume que me escapava, sentado no sofá da sala do apartamento cheirando a incenso e a algum outro aroma qualquer, difícil de identificar.

Eu não esquecera que Sarah detestava Lawrence, e dei umas voltas na explicação da minha viagem “surpresa” (que ela não deixava de censurar).

No Recife — há quase vinte anos —, minha admiração pelo herói atormentado colidira com a gratuita antipatia da moça. Recordava, bem, de uma frase reveladora (e simplificadora): “O mundo dele é masculino demais”. Seria engraçado se ela estivesse “sabendo”, igualmente, que viera eu pelo motivo lawrenciano da carta de Glaser, em busca daqueles nadas que ia levar nas mãos, de volta.

“Você viaja depois de amanhã.”

Olhei para Sarah. Ela sorriu:

“Não me pergunte como eu sei.”

Eu não pretendia perguntar nada. Estava longe, furando a capa de distância do ano de 1986, que mostra cenas mal filmadas nas redações de jornais e bares do Recife, onde sou eu aquele ali, vestido com uma camisa de malha amarela com a qual eu me sentia muito elegante quando partia ao encontro de nada, nas noites vagabundas dos “verdes anos” (oh, as palavras). É a camisa que eu visto, em Olinda, quando encontro a inglesa que rompeu a correia da sandália mal fabricada pelo hippie das ladeiras de artesanato. Ela se chama Sarah, e é descendente de Maria Graham, além de turista inquieta e estudante aplicada, a comprar sandálias de dedo e a investigar sobre a avoenga, a Sra. Graham, enquanto se encanta com a cidade saqueada pelos corsários ingleses James Lancaster e Edward Fenner, no dia 9 de abril de 1595. Falo dos seus compatriotas flibusteiros, digo que Fenner também era inglês, contra a opinião de Handelmann, Rocha Pombo e Veiga Cabral (que sustentavam ser Edward um holandês cujo nome correto se grafava “W” de Wenner)…

Tento mostrar conhecimento da história da antiga vila assolada pelas tripulações da frota corsária, constituída pelos navios Consent, Salomon, Virgin, Peregrin e — ironia das ironias — Welcome. Tudo verdade. E realmente bem-vinda era a descendente da Viajante, a moça de carne alva e pronúncia de português matizado do espanhol que Pepys usava como uma espécie de código “Spanglish”, nos seus diários cheios de “mamilos rosados e delicados pêlos pubianos” taquigraficamente citados (por falar em pêlos: Sarah Graham era a primeira mulher que eu via manter intactos os — ruivos — da axila). Eu recordava a jovial Sarah de camiseta, nada de sutiã, e raras, raríssimas saias enfunadas sob a aragem, nas ladeiras.

Não podia haver memória de vela de navio pirata que fosse mais atraente, após trezentos e tantos anos, do que a quase transparência do tecido leve contra o sol do trópico dourando o corpo — então esguio — da inglesinha a subir o cruzeiro de São Francisco para tirar uma foto que deve estar, ainda, numa gaveta da minha juventude (contra a luz, de ângulo baixo, vendo-se o suave delta em silhueta). Diante daquilo, era difícil imaginar alguém de fato interessado pelos hirsutos Lancaster e Fenner que (eu recitava, distraído) “foram cercados pelos pernambucanos, perderam quarenta homens — incluindo cinco capitães — e só conseguiram romper o cerco à noite, fugindo para os navios carregados de riquezas, fundeados na costa”.

Enfim, eu tentava impressionar Sarah Graham de todas as maneiras, em 1986. Conseguira até agendar um encontro com Gilberto Freyre, na casa senhorial de Apipucos, e a levara para apresentar ao mestre, na sua poltrona preferida, de meia e chinelo levantados com a perna sobre o braço do móvel. Na Fundação GG, há hoje um boneco de massa do escritor escrevendo nas coxas, o bigode sorridente para o próprio estilo. Sarah, entretanto, não sabia direito quem era Gilberto, eu tentei explicar e terminei resumindo: um conhecedor profundo das viagens de Maria Graham e outros ingleses, desde os tempos de Canning. Não sei se ela entendeu — mas pôs calcinha e sutiã debaixo do vestido de decote curto com que me esperava no Hotel 4 de Outubro, de frente para a cadeia transformada em Casa da Cultura (ali estava uma oportunidade: “Casa de Cultura Giba” — ex-Detenção — teria sido muito mais justo do que pespegar Aeroporto Internacional Sir Canary no nosso terminal aéreo onde puseram uma hirta estátua de bronze do mestre de dedo-duro)…

Tomamos o caminho tão recifense do bairro de Casa Forte, e toda a solenidade do encontro veio por água abaixo logo na primeira pergunta dirigida à “menina Graham”:      

“Você conhece Lolita?”

Ninguém me avisara que o escritor já estava senil, e só entendi isso em face da indagação intempestiva, feita pelo sorridente sábio na nuvem, já, da doença desonerando um mente outrora poderosa. A pergunta havia despertado olhares inquietos de Dona Madalena, a mulher vigilante do homem que me estendera a mão mole:

“Mas você, meu jovem, certamente conhece Lolita?…”

Freyre não se referia ao romance de Vladimir Nabokov, mas, sim, a certa figura muito popular no Recife, que a jovem inglesa não poderia conhecer, evidentemente. Logo que saímos do gabinete do autor de Sobrados e mocambos, situei as coisas para Sarah, remontando à frase — “quem não conhece Lolita, não conhece o Recife” — corrente na zona do baixo meretrício da cidade que, assim, ela fora conhecendo, por palavras, num gabinete de estudos que já recebera Aldous Huxley (como Freyre gostava de lembrar, encantado)..

E a frase ficaria sendo a nossa predileta, repetida com a imitação de voz de macaíba-quente-na-boca, que era o sotaque “oxfordiano” cuidadosamente mantido pela macaíba na boca de GF2.
           “Você conhece Ludmila?”

Acordei das recordações recifenses para a apresentação da filha de Sarah, chegada da rua debaixo do casaco rosa-choque. Tomei um choque. Claro que eu não a conhecia. E a frase talvez fosse uma forma de lembrar a pergunta-piada, enquanto eu tomava o pequeno susto — por estar tão longe e ver aquela moça divertidamente molhada, ao tempo que era examinado enquanto me levantava para beijar, na face, a bela adolescente que me retribuiu com um chiclete rolante na boca. “Bela” é o adjetivo que me ocorre, velho como o tempo – que não é belo.

A filha era muito mais bonita do que a mãe sensitiva anunciara corujamente, aquela Sarah irreconhecível como uma persona envelhecida da Zelda que avisara ao jovem Fitzgerald:

“Mas eu o previno: só sou realmente eu quando sou outra pessoa. Se você quiser essa pessoa, então estará pronto para me amar ou para me matar, o que dá mesmo no mesmo, Scott” (uma das confissões mais puras e mais sinistras entre namorados — e que viera à minha lembrança no exato momento em que

 24. Era isso: eu estava tentando me compor
Me compor com aquelas lembranças, quero dizer. Eu fazia um esforço enorme para não destroçar as lembranças, diante da “sensitiva”, a Sarah reduzida a pouco mais do que uma mãe britânica, uma inglesa gordota com os restos de alguma vida independente da de Ludmila parecendo sinais de rádio fugindo da onda, a moça leve da memória antediluviana perdendo-se na sintonia difícil, fluida, uma hora quase parecendo que ela poderia surgir, voltar, apagar os anos, restaurar o ouro quente da voz, alguém é capaz de entender isso?

Assim que terminava de chover — e mesmo quando continuava, com gente acotovelada debaixo das marquises —, eu costumava sair sem um lugar para ir, vagamente levado para próximo do cais cuja mão de gelo então me alcançava à maneira do que se passa no sinistro poema A cidade, de Kaváfis:

Não acharás novas terras, tampouco novo mar.
A cidade há de seguir-te. As ruas por onde andares
serão as mesmas. Os mesmos os bairros, os andares
das casas onde irão encanecer os teus cabelos.
A esta cidade sempre chegarás. Os teus anelos
são vãos, de para outra encontrar um barco ou um caminho…

Era como colecionar borboletas mortas, num álbum caído de um caminhão de mudança aos pés chagados de mendigos vomitando sobre o peito das próprias camisas sujas do excremento de pássaros agora recolhidos em alguma parte. Onde estavam os pombos de Trafalgar e da praça Maciel Pinheiro? Onde estavam Sarah e Clarice, sim a Lispector, que passara  a infância num prédio de frente para a praça?

Meus pensamentos erravam na sala daquela casa como tantas outras — eu esperara que se parecesse com as minhas lembranças inventadas da busca de saídas? —, a imaginação pulando de galho em galho, de cidade em cidade, de poema para poema, de Sarah para Sarahs (e Dianas e Clarices e Dorothys).

Enquanto ríamos de nós mesmos, ela recordara a frase “quem não conhece Lolita, etc.”, porque, afinal, eu lhe explicara quem era a Lolita do Recife, já disse isso, há quase vinte anos, saindo da sala do mestre Gilberto meio demente, tresvariando sobre seus fantasmas de caspas, as universidades americanas da sua juventude como um jato nas nuvens da fantasia organizada do homem meio aristocrático e meio fanfarrão nas entrelinhas da vaidade descarada. Velho pavão. A minha amiga ria-se, divertida com o ancião assanhado. O efeito de si mesmo permanecia afrodisíaco para Gilberto Freyre — ou o que ele ainda achava que fosse isso, numa jovem européia cruzando as pernas quentes do sol na sua frente. Pobre Giba despedindo-se da vida com frases descosidas (eu sabendo que havia mil olhos, para isso, na Fundação de jardins atlânticos e puxa-sacos vigilantes).

Tiramos uma foto num dos bancos de azulejos molhados, e saímos para a tranqüilidade de Casa Forte, um bairro recifense até à medula das padarias, dos restaurantes e bares adaptados de velhas casas onde era possível sentir a antiga vida doméstica maquilada sob os avisos de que “aceitavam Visa” e permitiam o acesso à cozinha instalada nos quintais de bananeiras desaparecidas. Recordo tanta coisa. Posso dizer do que falamos, quando a conversa morreu. Vivemos para recordar, um dia, alguma coisa completamente sem importância, que nos pega pela garganta, numa esquina banal, na hora mais inesperada. É tarde demais, mas essa coisa volta, diz respeito a alguém que está morto ou vivo, não importa — porque não se pode fazer mais nada: telefonar, pedir desculpas, enviar um livro, a quinta sinfonia de Mahler, a primeira das palavras, em muitos anos, numa carta que relutávamos em enviar (quando passa a coragem perdida), até que um dia negro, um poço de solidão num sábado, arranca nossa piedade do limbo, e faz a mão, os dedos deslizarem sobre um papel manchado.

Alguém sabe do que estou falando? Sabe, sim. Vim aqui para Londres a fim de perceber que estou, como Kaváfis, para sempre na Alexandria que me persegue como as formigas gordas da chuva. Estou na sala de Sarah — a de agora — e meu esforço é todo para entrar na corrente da vida de agora, uma frase idiota, um desespero real, ali, em face de Ludmila fazendo parcialmente real a ilusão de que ela fosse (tão diferente!) uma jovem Sarah cigana de tempos mais difíceis, de mais indiferença em meio ao colorido, de menos vida e mais monotonia nas casas de gradis recuados para…

“Monotonia?”

Eu fizera a pergunta. Ela ria. Adorava Londres no verão, detestava a Londres que as pessoas pensavam que era Londres porque liam nas revistas de bordo reportagens sobre “pubs” antigos, táxis amplos e portões de palácios com soldados de chumbo vermelhos como os cacetes dos cachorros. “Ludmila!”

“Você nunca viu o cacete de um cachorro? O primeiro cacete que eu vi foi o do macaco do colégio que, às vezes, se masturbava na frente da gente…”

“Ludmila.”

Ela seguiu contando como as meninas davam um jeito de levar o macaco para os fundos do parquinho da escola, onde ele fazia o seu número obsceno, sem perigo para as suas colegas. Depois, o macaco morrera “e o segundo cacete que ela tinha visto”…

“Ludmila, vá buscar a água do chá para a mamãe, querida.”

“Vá você. Estou fazendo sala pro teu amigo”.

“Então, encerre esse assunto”.

Que riso maravilhoso. O riso de Sarah? Não. Outro riso. Um riso desconhecido e mais do que franco, uma fileira de pequenos dentes cínicos na boca fresca e vermelha de uma jovem parca com piercings, a certeza jovem de pisar um mundo morto com os pés ligeiramente sujos das mocinhas indecentes de um modo novo, se é que me entendem (pelas costas das palavras que haviam perdido sentido, substância e utilidade). A geração de Luddy deixaria as coisas correrem, cada vez mais. Não adiantava pensar ou dizer que elas “estavam perdidas”, lamentar, rezar, sequer tentar acompanhar um tipo de mudança baseada na indiferença profunda, na demissão capaz de ser mais ativa do que tudo.

Notas

 1. Gíria cockney para Jack, o Estripador.

2. O autor de Casa Grande & Senzala disse que a mesma “indagação” havia sido feita a Charles Darwin, “quando o notável naturalista desembarcara, em 1832, no velho porto dos mascates (onde Maria Graham também desembarcara, quase dez anos antes)”. O inglês, garantia Gilberto, “certamente lera sobre ‘Lolita’, no Journal of a voyage to Brazil, publicado em Londres, no ano de 1824”. Foi uma visita desconcertante. Misturava demência senil e informação precisa. Ao fim da entrevista, Gilberto Freyre autografou a segunda edição de Ingleses no Brasil para “Maria Graham”, trocando o primeiro nome da visitante pelo da sua ancestral quase duzentos mais velha. Sarah achara graça.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho