4. O tempo rurgente
“Bert Fielding ainda está vivo?” — rabisquei, portanto, no postal de resposta, e acrescentei um pedido: “Se Bert ainda estiver vivo, você seria capaz de localizá-lo e enviar o endereço do velho para mim?”
Isso porque houvera uma mudança sutil, o início de uma tarefa auto-imposta, o movimento quase secreto de uma iniciativa apresentando a calva da sua cabeça principal de hidra na fronteira da mesa de onde comecei a empurrar farelos de pão e bolacha para o chão de ladrilhos encardidos da sala onde os cristais se apagaram, os quadros (reproduções) recuaram para trás dos meus olhos fixos na esperança, agora, de poder escrever sobre a morte de T. E. Lawrence, pensando naqueles dois meninos, em todos os meninos envelhecidos — e no ancião que Lawrence poderia ter chegado a ser, rabugento e ainda com a mania de se esconder da imprensa etc, ou apenas “misterioso” (gosto dessa palavra, mas ainda gosto mais de “estranho”, quando surge estranho na descrição de uma biografia chapada, então o biografado recua um pouco da luz, dobra uma perna e acende um cigarro antes de entrar numa casa onde ninguém sabe o que ele vai fazer e por que se dirigiu para aquele endereço do subúrbio) nos movimentos imprevisíveis de um homem oscilante, sempre, entre a grandeza e uma curiosa vontade de rolar nas verdadeiras sarjetas da Dinamarca podre do reino da Inglaterra, de John Profumo a Tony Blair, de Christine Keeler à princesa Diana morta como uma galinha na madrugada do túnel parisiense em que há sempre flores que o caminhão de lixo da prefeitura tem a gentil ordem de recolher só quando estão com aquela aparência fanada das rosas esquecidas sobre lareiras mornas.
Minha imaginação está excitada, admito, desde que recebi o postal de Glaser. Penso em coisas disparatadas, faço associações estranhas, tomo mais café.
O que aconteceu naquela estrada — voltei a me perguntar —, envolvendo os dois jovens ciclistas da versão “oficial”, nunca totalmente aceita? O filme de David Lean acolhe, como matéria pacífica e incontroversa, o acidente que pôs Lawrence fora das veredas, dos desvios mais perigosos das “suas inclinações e do seu temperamento” (do ponto de vista do serviço secreto; as aspas são de um relatório confidencial de Comptom MacKenzie, diretor da inteligência inglesa em Chipre).
Pelo contrário, persistiam muitas dúvidas, faziam-se ainda muitas perguntas em torno dos dois rapazes na estrada quase sem tráfego, enquanto vinha quase voando, em sentido contrário, a moto poderosa do conquistador de Ákaba colhendo o vento, de face, contra os óculos de esportista (Lawrence vendo, pelo canto do vidro, o verde amarelado das cercas vivas, até se desviar de supetão, supostamente para não atropelar os garotos surgidos na curva da vida estranha do “herói incômodo” que era ele — para o Reino Unido).
A notícia sobre a morte do obscuro Frank Fletcher tivera o condão de me remeter de volta para o terreno das interrogações. Fui remexer em gavetas, procurar anotações envelhecidas nos envelopes onde eu rabiscara o assunto (“LAWRENCE, T. E.”) que subsistia, duvidoso, quando acontecia de pensar numa operação do próprio serviço secreto britânico, “queima de arquivo” voltada contra o meio irlandês Thomas Edward Lawrence. Comecei a fazer contas e a tecer conjecturas, de novo. Bert Fielding estaria com que idade, caso ainda estivesse no mundo dos vivos? E ainda se recordaria — bem — do acidente? E o mais importante: estaria disposto a falar, mais uma vez, sobre a manhã de 13 de maio de 1935?
(“Costumava sair com o meu amigo, Frank Fletcher, percorríamos as estradas vicinais de Dorset, desde o cemitério de Moreton até…”)
Seja como for, decidi que precisava ouvi-lo. O tempo, urgente, rugia. Frank Fletcher já era, morrera, nada mais poderia dizer, de verdade ou mentira. Sem um depoimento do menino restante, do antigo garoto do “passeio”, em dupla, na tarde perdida no tempo, o texto que eu estava planejando iria soar frio, só com depoimentos requentados da leitura de entrevistas feitas, há décadas, por outros. Eu ainda achava Lawrence um assunto quente, emocionante na sombra de tendas, hotéis e quartéis ingleses cuja visão refratada…
Há uma foto de T. E., na frente do depósito da caserna, lendo um jornal que a luz atravessa, pois ele está de pé e o jornal se acha aberto, talvez houvesse acabado de tomar o chuveiro do descanso (seu cabelo está molhado, parece), na hora derradeira de luz, quando, no Oriente distante, ecoa o chamado dos muezzins nos minaretes azulejados, no fim de um dia soprando poeira de água das fontes dos palácios nos quais novos ventiladores de teto ainda rodavam sobre as cabeças de falsos viajantes conspirando contra líderes nativos sustentados por potências em decadência…
Deixa pra lá. Não sei por que essa foto… Eu esperava, enfim, ouvir Bert (penso no menino — que era um velho — como “Bert” de calças curtas, meias, um doce embrulhado no bolso da mentira) principalmente sobre as menções a um furgão preto, visto por Ernest Catchpole — cabo do Royal Army Ordnance Corps e morador de Dorset —, o sujeito que olhava na direção da estrada, naquele instante, a uma distância de noventa metros da curva, momentos antes de ouvir o estrondo do choque da moto de Lawrence saltando para o ar como um camelo de ferro ferido de morte. Desgovernada, a roda gira até parar no silêncio de libélulas do campo, pequenas lagartas e mato úmido, o último fragmento do mundo que fica rente ao olhar apagado do motociclista.
Eu queria localizar Fielding, até mesmo achava que o postal viera para isso (o mundo é um colar de contas ligadas pelo fio das coisas perigosas e calmas), não poderia prosseguir vivendo e escovando os dentes num mundo de pérolas à solta, saltando com o ruído de pedras de granizo num toldo de metal quente, debaixo da mais sonora das sete pragas do Egito e uma canção que se perde. A minha mente… Conheço essas dores de cabeça. Sei quando estou sendo tomado por uma idéia fixa, no meio de imagens que assaltam as paredes do crânio ainda mais quente do que o metal debaixo das estepes. Sinto quando as palavras se metem entre meus esforços para manter um mínimo de ordem num mundo de trens que se chocam e torres que desabam com rapidez muito elegante para esta época. Posso sentir meu sangue debaixo da pele, uma idéia quando o impele, o desgoverno… Tornava-se algo imperativo, o mecanismo das fixações uma vez posto em movimento imprevisível, tudo isso trazendo uma foto, a vontade da juventude, as recordações dos outros, o cinema da mente regulando, não muito bem, sob determinados estímulos, a saudade do passado (mesmo que alheio) e uma espécie de não-redimida vontade de ser outro, ter sido uma outra pessoa, haver vivido uma vida diferente, longínqua e desconhecida (“amamos o que não conhecemos, o já perdido”)…
Resolvi, então, pedir aquele favor a Gerald Glaser, o meu amigo aposentado e, talvez, com todo o tempo do mundo para fuçar um pouco na zona cinzenta de obscuridade na qual se perdera o menino um dia quase atropelado pelo herói falecido na melhor hora — para os que não simpatizavam nem um pouco (e eram muitos) com aquele fantasma da guerra, o aventureiro vestido de branco, capaz de cuspir no prato em que comera, e de rejeitar uma das mais altas condecorações inglesas, aqueles penduricalhos no peito de pavão de Allenby…
Escrevi a resposta em dois postais de negras baianas fotografadas por Pierre Verger, e os remeti para o antigo endereço de Glaser — recuperado da mais velha das minhas agendas. (Porque eu guardava as agendas de anos mortos, sabendo que viria a me sentir fascinado, mais tarde, pelas anotações, meio criptográficas, da pressa — agora sem sentido — num ano qualquer, que ficara para trás, a vida se inscrevendo nos rabiscos riscados, debaixo das letras canceladas sob traços, fracos ou vigorosos, aplicados sobre palavras e nomes apagados como as lápides de um cemitério lavado pelas águas das represas lunares, você caminhando lá em cima, os pés nus, na perfeita calma de quem…
5. Resposta
“Bert H. Fielding ainda está vivo, ao que tudo indica” — foi o que veio como resposta de Glaser, mais cedo do que eu esperava.
Em seis postais numerados — de seis negras opulentas, tudo num envelope caro, o que era surpreendente — Gerald informava que Fielding se transferira de Dorset ainda na juventude, uns três ou quatro anos depois do acidente com Lawrence da Arábia. Alguns diziam que o menino, chegando a idade, fora prestar serviço na Marinha, e outros afirmavam que Bert se tornara um homem esquisito, um professor obscuro numa cidadezinha do interior da Escócia. Lá, perdera-se a pista dele porque sua “mania de perseguição” (?) o levara a sumir na “fumaça do nada” (gostei desse arroubo do estilo de Glaser), mudando de condado para condado, ao longo dos anos, até desaparecer noutra curva de estrada ensombrada, vamos rimar e fazer o concurso de frases mais bonitas sobre o sumiço de Bert H. (“H” de quê?) Fielding, o jovem ciclista número dois da via crucis de T. E. Lawrence finalmente deitado, em coma profundo e guardado por agentes (por quê?) num quarto de hospital branco como o Neged.
Havia mais versões do destino provável do garoto da bicicleta na contramão do herói: Fielding se tornara bancário, corretor de seguros, guarda florestal, decidira trabalhar fora do Reino Unido & Desunido (na porção irlandesa preocupante, naquela época). Alguém garantira a Gerald que Bert se casara com uma irlandesa e, do casamento, “nascera uma filha que, parece, vivia em Londres”…
Glaser dizia estar tentando pesquisar todos os Fieldings registrados como aposentados, dependentes do sistema de seguridade social (lá, isso funcionava, o Serviço Nacional de Saúde). Não deviam ser poucos, segundo o desanimado tom do seu estilo diminuindo de entusiasmo. Seja como for, ele esperava enviar, “tão logo quanto possível”, todas as “informações seguras” que pudesse obter sobre o homem.
“Frank Fletcher — o ciclista número um, recém-falecido, tinha um irmão chamado Denis, dez anos mais novo. Te interessa também?”
(Não, não interessava. Eu queria Bert — com as suas recordações de primeira mão, daquela manhã de tranqüilidade quebrada pelo desastre, há setenta anos.)
“Peter me disse que conheceu os dois ‘rapazes’, em 1962, quando o diretor David Lean organizou uma espécie de encontro social e de trabalho, ao mesmo tempo, com muita gente que conhecera Lawrence ou estivera envolvida com o personagem de que O’Toole pareceu estar possuído, por dois anos de trabalho, você sabe, para ele foram uma espécie de imersão em outra vida. Sonhava com T. E., lia tudo sobre o sujeito, ia a Dorset visitar Clouds Hill e o cemitério de Moreton, com uma braçada de flores na mão desocupada do uísque…”
Gerald era um gozador, nos bons tempos, e não dei qualquer importância aos sonhos do seu famoso amigo O’Toole, porém segui achando que gostaria, mais do que nunca, de entrevistar a última testemunha do acidente que viera a ser fatal para Lawrence.
Embora curta nos anos, a sua vida fora mais do que extraordinária, uma história farta de lances cinematográficos — o clichê dos clichês — vividos como arqueólogo e, principalmente, como agente provocador operando no Oriente Médio desde 1912.
Dois anos depois, estava lotado na seção cartográfica do Bureau Árabe, no Cairo, pronto para sublevar as tribos beduínas — de acordo com a estratégia, bem concebida, de abrir uma “frente oriental” que dividisse as forças alemãs aliadas dos turcos. Nesse intento, ora com autorização superior, ora tomando a iniciativa de um tenente mais que temerário, Lawrence alcançaria alguns feitos militares memoráveis, como a tomada de Ákaba (pela retaguarda, ao fim da travessia do pior dos desertos da região do Mar Vermelho) e de Damasco — capital da Síria — em 1916.
Não contente com as vitórias de homem de ação, o guerrilheiro desviado da profissão de scholar ainda iria provar ser um erudito nos assuntos da região, além de escritor de talento: como estudioso da paisagem oriental e das zonas obscuras de si mesmo, escreveria uma obra-prima sobre a Revolta Árabe, Seven Pillars of Wisdom, e o polêmico The Mint (sobre a vida na caserna). Ao morrer naquele acidente — para salvar as vidas anônimas de Frank Fletcher e Bert Fielding —, era um homem ainda jovem, aos 47 incompletos, em boa forma física e com toda uma excelente preparação militar, por sobre a experiência de caráter excepcional no Oriente.
Havia, portanto, alguns motivos para o temor — de certos setores do serviço secreto agitado por toda sorte de informações, nos anos pré-guerra — de que o velho “recruta”, afinal desmobilizado, viesse a se tornar uma espécie de reserva perigosa, algo como um “herói disponível”, ou uma legenda recrutável por partidos que iam dos nacionalistas irlandeses aos fascistas britânicos. Recentemente, fora lançado um livro dedicado ao assunto dessas duas forças políticas que, surpreendentemente, coincidiam em determinadas posições ou pontos de vista, no começo dos anos 30. A inteligência inglesa estava de olho nas pontes de ligação que pudessem trazer um homem como “Lawrence da Arábia” para dentro de mais do que “boas conversas na casa de alguns irlandeses notáveis”. Ou seja: a tese era de que não seria difícil colher aquele tipo de soldado na rede de mais uma “causa perdida”, pois o aventureiro do deserto se tornara amigo de Bernard Shaw e outros irlandeses, e isso — entre outras coisas — teria despertado nele, por fim, o amor do próprio país (que era também o de Shaw e do IRA). Em duas palavras, a “Irlanda subjugada” de Roger Casement. Em cartas, Lawrence se mostrara interessado na tarefa de escrever uma biografia do ativista executado pelos ingleses, em 1916 (alguém lhe falara dessa “tarefa” em busca de algum autor de alma vadia e tempo vago?). O fato é que a desmobilização próxima lhe daria todo as horas livres — perigosamente livres — para escrever ou para se dedicar a quaisquer outras atividades de readaptação à vida civil, após atingir a idade limite de um soldado raso (o que o ex-coronel resolvera ser, de 1926 em diante, para escândalo da hierarquia militar chocada quando foi ele descoberto lavando latrinas, em Bovington).
Fiquei aguardando — com ansiedade — alguma boa notícia sobre o paradeiro de Bert, enquanto o Iraque ia sendo mais uma vez destruído (talvez porque faltasse um louco como Lawrence por lá, para sublevar as últimas tribos contra os tanques).*
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* Nesse meio tempo, Gerald me enviou o que havia de mais ou menos “oficial” sobre um diálogo do rei da Inglaterra com o herói da Arábia, no dia em que Sua Majestade deveria espetar no peito do herói uma das mais altas condecorações do reino:
“George V — Meu caro coronel Lawrence, permita-me investi-lo oficialmente na Ordem do Banho, pelo seu grande mérito na longa e difícil campanha do Oriente Médio. Todos nós lhe somos imensamente gratos.
Lawrence (hesitando, mas intimamente decidido) — Vossa Majestade queira desculpar-me, mas fico extremamente embaraçado em aceitar tão generosa oferta. Não creio que o possa fazer enquanto a Grã-Bretanha não tiver honrado sua palavra para com os árabes. Eles foram esquecidos e traídos, e não posso aceitar nada que lembre e confirme esta traição.
George V (surpreso e tentando contornar a situação de algum modo) — Percebo, percebo. Não estou bem seguro, mas me parece que estava previsto para o senhor algo diverso da Ordem do Banho, creio que a Ordem do Mérito. Que acha?
Lawrence — Sinto profundamente ter que dizer a Vossa Majestade que não aceitarei nenhuma honraria enquanto a Grã-Bretanha não tiver mantido sua palavra junto aos…
George V (violáceo e irritado) — Muito bem, coronel. Creio que concederemos a Ordem do Mérito ao Marechal Foch. Pode retirar-se.”
O diálogo foi anotado por algumas testemunhas, e Desmond Stewart já divulgou, em letra de forma, a sua certeza de que “o rei George V ficara convencido de que Lawrence poderia acabar se tornando um inimigo da Inglaterra, na medida em que tinha condições de levantar os árabes contra as próprias autoridades britânicas”.