O inglês do Cemitério dos Ingleses (13)

Leia parte 12 do romance "O inglês do Cemitério dos Ingleses", de Fernando Monteiro
Ilustração: Ricardo Humberto
01/07/2006

25. Ludmila
Era muito pouco sensitive, a Sensitiva — ali na sala cheia da presença de Ludmila, a não-sensitiva intuitiva e certeira nas cômicas descrições de cacetes de macacos e cachorros.

Depois da aula zoossexual, a filha de Sarah estava sentada, desabada (sem preocupações com a saia) sobre o braço do sofá, apertando-me sem cerimônia. Havia trinta centímetros de coxa nua, colados no meu braço, e fiquei com receio de ser um vidro transparente para muito menos do que as tais “faculdades paranormais” alardeadas pela sua mãe. Era tão óbvio que a menina brincava com o fogo (e a ausência do fogo), seu desabar era tão falso e tão irônico, pleno de vitalidade disfarçada acoxando a chaleira fria do corpo do outro — que tive vontade de rir ou morder aquela carne rija e, com certeza, um tantinho salgada de suor e banhos apressados (sempre com pressa e sem cerimônias), enquanto Sarah fora botar a água do chá (que havia oferecido talvez apenas para dizer alguma coisa — na hora em que Ludmila estivera tentando encaixar um cocar de índio brasileiro na minha cabeça de brazilian indian visitante, com direito a puxada do meu lábio para baixo, no estilo Raoni. Senti o gosto dos seus dedinhos na minha boca, devo confessar, sem desconforto).

“Deixe ele em paz, Luddy, enquanto eu vou fazer o chá.”

Não vá. Meu pedido mental não foi — graças a Deus — atendido pela nada sensitiva descendente de Maria Graham, sorrindo ao me ver com a coroa de penas enfiada na testa:

“Comportem-se!”

Tirei o cocar. Ludmila passou os dedos na blusa, fazendo franca careta de nojo. Eu ria, mas você não consegue ficar realmente à vontade, no temor de uma Ludmila Zydanov zapeando o olhar em torno, à cata do instrumento de alguma nova travessura — pela qual também se anseia (e ela também?), de algum modo, assim como se pensa em palmadas avermelhando a pequena bunda redonda da certeza de nunca vir a ser punida assim. (Sarah Graham adivinharia um pensamento desses?).

Na verdade, era outra a temer, mesmo sendo uma velha amiga — virada em sensitiva de tevê — acostumando-se com o amigo saído de uma nuvem de lembranças, meio apagadas, para o meio da sua sala, ou indo lá, a fugir para a cozinha onde agora preparava o chá antes de vir lhe dizer com o que você havia sonhado na véspera: com a adolescente mais adorável dos subúrbios da usura, dançando uma contrafação do ula-ula? (“Há um ukelele por aqui? E você sabe o que é isto, brazilian indian?”)

“Um samovar. Um samovar russo…”

“Eu mijei nele, uma vez” — e Ludmila cheirou o samovar — “mas não tem cheiro mais nenhum.”

Sarah estava prestes a voltar da cozinha, enquanto eu me recusava a cheirar o samovar de prata meio encostado no meu nariz. Empurrei o objeto agarrado pelos dedos com esmalte verde nas unhas descascadas da jovem huna. Dessa vez, ri, com vontade, da expressão daquela menina linda e danada, minhas palavras velhas de admiração trouxa. Ela parecia resolvida a me fazer correr, para algum lugar mais protegido (havia) da salinha, da cozinha ou, mesmo, porta afora, rindo como uma jovem cabra — se é que cabras jovens riem quando imitam a própria mãe, que falava qualquer coisa entre os sons da cozinha (“odeio chá”, Ludmila confessou, fazendo uma careta pouco inglesa).

“E gosta do quê?”

“Adoro chocolate. Mas engorda. Detesto pensar em ser gorda como a minha mãe.”

“Você está longe de ser gorda ou pré-gorda.”

“Você acha? Ou tá bancando o índio nerd? Você é meio gordo”…

“O que é um nerd?”

“Nerd é nerd. Eu acho que você é meio gordo e meio nerd.”

“Obrigado.”

“Obrigado é resposta de nerd…”

“Então, eu sou um nerd.”

“E o nerd quer ver Luddy dançar?”

Quando Sarah me apresentou à filha — Ludmila sorrindo o mais cínico-ludmilento dos sorrisos Romanov —, achei que, digamos, o perigo rondava, mas era muito pior do que eu imaginava, ela era imprevisível e cínica, rápida e descrente, observadora e objetiva. Não pensem numa caricatura qualquer, de “velho sujo” em diante, enquanto as palavras se arrastam diante de um monte de neurônios circulando livremente por uma sala inglesa apertada. Sei que não são tão grosseiras, porém é preciso mais do que delicadeza para se compreender que um homem de quase cinqüenta anos pode compreender a juventude de uma mocinha de quinze muito mais do que ela pensa. Essa compreensão é uma pequena força que comove o próprio coração, talvez o paralise um pouco — de medo — no centro hesitante do “nerdismo” de qualquer homem maduro e desgracioso que admira a zombaria solta no riso de alguma menina debochada o bastante para ser temível e fascinante, ao ficar o homem, sem graça, sozinho numa sala, com a graça toda dela, por dois, três, cinco minutos de danças loucas e engraçadas como nunca mais serão outras danças malucas, Ludmila com o cocar na cabeça e um pedaço de coxa à mostra, de novo, só pelo prazer de fazer um Humpert-Humpert levantar a vista, deslumbrado…

Porque era impossível, Vladimir, velho entomólogo, não olhar e não se deslumbrar com o breve despudor daquilo — até Sarah chamar, lá de dentro, com voz tremida: “Ludmilaaa!”

Ela deu um salto, meio da dança, meio da pressa, na direção da cozinha.

Um minuto depois, voltavam ambas com o serviço de chá e pratos de bolo e biscoitos, postos sobre a mesa baixa, diante do retrato de Maria Graham, sobre quem comecei a falar apenas para não pensar em como pode uma garota urinar num samovar de prata no meio de uma sala (qual o problema?). Falaria de qualquer coisa, enquanto Ludmila fazia caretas bebericando o chá, estirando a língua falsamente queimada e se coçando impudicamente.

“Os Insurrectos de 1821” — a rara palestra improvisada pela nada vidente Maria Graham (que profetizara a vitória dos rebeldes pernambucanos): esse o assunto que fui encontrando para aborrecer Ludmila, mortalmente, se possível. Agora, ela estava me olhando com o ódio particular das meninas ignoradas, enquanto a mãe se entusiasmava com a ancestral:

“Ela ficou feia ao envelhecer, você não acha?”

Sarah apontava um retrato da Graham, realmente gorda e feiosa.

“Parecida com você, mamãe”.

Sarah ignorou o comentário, enquanto mudava de assunto com o nervosismo a que eu ainda não me acostumara na mulher de cabelo pintado retirando desenhos e gravuras do Brasil de Maria Graham, para dar lugar a um Jesus-charada (“VOCÊ PODE ME VER?”) e um pequeno ícone maravilhoso (o qual me escapara ao olhar para os outros objetos na parede).

“Você acredita em Deus?”

Por que não responder, simplesmente, “acredito, Sarah”?

“Ele acredita, mãe. Ele é um nerd.”

“Cala a boca, Luddy.”

“Em qual Deus você acredita?”

“Tem mais de um?”

“Minha mãe tem vários” — Ludmila se meteu, mais uma vez (e derramou o resto do chá amarelo no samovar, olhando diretamente para mim; Sarah estava de costas para ela) — “e tem também um amante que pinta o cabelo.”

“Ludmila, pare de se exibir”.

“Eu não estou me exibindo”.

“Claro que está”.

“Então estou.” — Ela me encarou, a mão no queixo de enfadada. — “Ei, você quer ver os meus pentelhos de duas cores?”

Sarah corou, eu fiquei com a cara apalermada de quem poderia ter dito “quero”, mas não disse. Sarah se levantou, menos para levar as sobras do chá para a cozinha do que para ter o que fazer nesse minuto. E Ludmila ficou encarando o visitante-nerd incapaz de propor: “Vamos, agora mostre seus pentelhos de duas cores, sua diabinha de Paddington”.

Quando a sensitiva voltou, veio com a adivinhação do motivo aparente da minha viagem:

“Você ainda se interessa por Lawrence, então?”

Era uma boa mudança de assunto, em todo caso. Nada menos ligado a “El Aurens” do que pentelhos de qualquer cor e dos sexos todos que fossem passíveis de se encontrar numa festa londrina, num pub mais ou menos clandestino e mesmo nas ruas, de dia e a qualquer hora da vida da metronecrópole colorida de todos os tons do arco-íris (para quem acredita que está em Londres quando circula pela Londres do turismo de dois andares).

Ela intuía umas coisas e outras não, graças ao deus das sensitivas bloqueadas para o mais simples — enquanto pareciam adivinhar o complicado.

“Sua viagem tem a ver com o velho mentiroso.”

Ela se referia a quem? Havia Glaser, havia Bert — e havia quem (como Suleiman Moussa) chamasse Lawrence de charlatão, acusando-o de ser o mais mentiroso dos jovens oficiais ególatras, na Arábia, dispostos a redigirem memórias de campanha descaradamente em favor de si próprios. Sarah achava — nos bons tempos — que T. E. fosse uma espécie de bicha machista adorado pelos gays, naquelas roupas de árabe de carnaval. Era engraçada, a descrição. Havia acerto e irritação nela, má vontade de uma moça indiferente às questões ociosas colocadas, para si mesmos, por “homens complicados”. Agora, falava ainda naquele tom, sobre o “velho mentiroso”, mas não acrescentou mais nada, ficou à espera de minhas explicações. Talvez estivesse associando o meu silêncio ao silêncio das cartas, eu via seus olhos examinando o fundo dos meus eventuais motivos para ter feito a viagem intempestiva que eu fizera (“Londres está tão cara, você podia ter vindo para cá, temos o quarto de Ludmila, que poderia dormir comigo”), talvez tentando encontrar a si própria no fundo levemente lodoso das minhas razões para fazer ou não fazer as coisas, viajar ou não viajar, ficar acordado até altas horas ou ir dormir cedo na noite que nos deixa mais sozinhos do que as manhãs e as tardes.

Resolvi dizer que viera, também, para recolher subsídios sobre a passagem de Maria Graham pelo Brasil e pelo Chile — o que fez Ludmila perguntar se eu gostava de música cubana, rumba, merengue e salsa. Me confessei fã ardoroso dos ritmos latinos, do Buena Vista Social Club e do falecido Compay Segundo. Como em 86, no distante Recife, diante da jovem Sarah (havia uma balada de Paul Anka, ou de alguém compondo como Paul Anka, cantada pelo deprimente Pat Boone?). Bem, não importa, nem a balada nem a moça do passado, branca de louça, a imagem guardada e banal, e agora quebrada contra gordura e “rugas de ansiedade”, lendo revistas gentis com senhoras — de modo que é preciso limpar os óculos, a mente, a ilusão sobre os anos e as diferenças abismais numa sala, ou mesmo debaixo do sol de Olinda teimando em vir revelar o sol do sexo que só-é-jovem-uma-vez (quantas vezes irei repetir isso?). O fato é que eu queria — eu apenas queria — ser incapaz de qualquer pequena trapaça inofensiva para impressionar a “Lolita” do sexo certo na idade errada, vinte, trinta anos depois de nada, quando minha vida afundava e a dela, a da filha de Sarah, mal havia acabado de começar (ó língua que juntas verbos enrolados como tapetes de névoa) também para nada?

Oh, eu estava confuso. Confuso e encantado, esperando um chá (ou já viera a bebida e eu já a bebera?). Eu estava mais do que confuso. E pronto para recuar noite adentro de uma máquina torta do tempo que trouxesse o último prazer, inesperado, de flertar com uma neta das cheeky girls e de quem mais? Beatles? Mary Quant? Os clichês jurássicos todos? Após pós-tudo, as frases saltam, nostálgicas, entre poemas retrospectivos sobre o passado recentíssimo, Carnaby Street e outros cenários pintados para turistas japoneses e compradores de velhos discos de vinil, na necrópole empenhada em se manter parecida com a paisagem vulgarmente associada àquela London das músicas (exatamente na ironia ácida das Ludmilas). A juventude me inspira, sempre, uma saudade desesperada, a sensação total do tempo que não pode voltar pelo caminho de veias saltadas do mapa da mão envelhecida: “mais do que no rosto/ pode-se ler de graça e de repente/ o mapa de vicissitudes/ sorte ao contrário/ traçada a veias e sulcos/ nas costas da mão”…

26. É a notícia do tempo que vem, reticente
— mas não muito, sem nunca dizer diretamente: coração em sobressalto, sangue célere, cabeça em febre, teu auge passou. Acontece sem alarde, o pequeno eclipse de esperança, anônimo, a cada hora, em cada peito arqueado, durante anos, para aspirar o céu…

ou pelo menos não tão longe quanto para as suaves meias americanas nas pernas das enfermeiras dos filmes da guerra, o descontrole do meu pensamento entre um poema (era um poema?), talvez eu devesse sair para me acalmar por sobre as imagens vindas talvez do cinema (há recifes de coral de celulóide na imaginação do século depositado na nossa cabeça, um mar artificial se encontrando com o céu pintado na mente, um detalhe do afresco condenado a desaparecer, um parte da pintura que a outra encobre, sentimento, arrependimento, volta atrás, vidro de um pesa-papel onde desaba a neve fora da nossa experiência), Londres tinha esse efeito, eu estava longe e perto do que outros haviam vivido, podia imaginar o chá gelado na memória das ex-enfermeiras pálidas, esta ou aquela que o cinema costumava mostrar grávidas dos jovens pilotos voando pela Força Aérea canadense, “com idades falsas nos brevês da morte” (conforme se lê, com a dose de dramaticidade calculada dos resumos, no museu londrino do bombardeio agora inspirando saudade escondida num poema da juventude começada quando os escombros esfriavam).

Quando a guerra acabou, ficaram os cartões de racionamento sem utilidade nas bolsas, entre bicicletas consertadas e carroças vendendo frutas na calçada de Westminster, as máscaras contra inalação de gases guardadas no sótão do colo arfante, segundo o verso metafórico das “garotas abusadas” de uma canção de Vera Allen, gravada sob pseudônimo masculino. Era literal, num país que adora e detesta a literalidade. Então, tudo tende a se tornar metáfora de outra coisa diretamente referida, se me entendem. Se não, não importa: a canção, de qualquer modo, já estava esquecida quando Sarah nasceu, tendo ficado, então, completamente para trás, na Inglaterra morta de antes e de depois dos Jovens Irados, quando se tornara quase impossível estabelecer o verdadeiro elo das duas Londres perdidas, uma ainda vista no free cinema literário (na melhor expressão da palavra) saído do teatro de Osborne, das peças curtas de Pinter, dos primeiros romances de Angus Wilson e talvez dos Alan Sillitoe (houve mais de um) que parecem, hoje, mais antiquados do que aqueles senhores de palidez perfeita para o ambiente escurecido dos bons clubes, tipo E. M. Forster, Graham Greene e Evelyn Waugh. Quem sabe, The servant (o filme de Joseph Losey e não o livro de Robin Maugham, publicado em 1946, não por acaso) fosse o melhor epitáfio da Inglaterra da jovem Thatcher (ela fora jovem, alguma vez?), ao som do riso de Sarah Miles rolando, nervosamente, escada abaixo. Além de Anitona, essa Miles, de boca larga e pernas dobradas, fora a derradeira das minhas paixões cinéfilas por mulheres vinte e quatro quadros por segundo e um ou outro instante imortal: Julie Christie debaixo do sol, na Itália, a espalhar sombra debaixo de um chapelão que contém sombra e frias mãos licenciosas da recém-casada (em lua-de-mel) vivida pela Cardinale na obra mais secreta de Visconti, Vagas estrelas da Ursa, sobre um incesto entre as cerâmicas de Volterra, os muros altos e os poços, as cisternas de solidão minada pela confusão política retrospectiva, no filme que deveria ser somente sobre o sombrio amor dos irmãos. Eu peguei os filmes que se despediam — sem saber — do século onde podia vir tensão certa de um “amor proibido”, alguém se lembra disso? Havia interdições, tabus, proibições melhores para se escrever, Byron, boa poesia, ou para se filmar um jardim tempestuoso vigiado por gárgulas cúmplices de crimes, manhãs e tensões. Quando tudo é permitido ou se tornou banal em revistas de fofocas rasas como a praia artificial vendida num supermercado de esquina, o que poderia restar para nós? Os ambientes propícios estavam sendo vistos quase pela última vez, naqueles filmes cheios de espelhos e jardins e estátuas de braços amputados, sem cabeça ou caídas dos quiosques de folhas quebradiças, sob a balada pop aumentada de volume no filme de Luchino (ou naquele Darling já não sei de quem, com Dirk Bogarde, Julie e Lawrence Harvey, visto numa noite de chuva, no Trianon, em 1967 ou 1968).

“Algo está se perdendo — algo que não voltará mais.” Quando eu descia a escada encardida para o pequeno lago postiço da sala de livros espalhados entre os cristais, lembrava-me disso. O tempo é também uma confusão. Ainda agora, ao responder — mecanicamente — às perguntas de Sarah, eu pensava nisso, no laço das coisas passadas, que se desfazem aparentemente, colunas de açúcar num bolo azedado, cujo glacê atraiu uma longa fileira de formigas apressadas, mas ordeiras no assalto metódico do doce. O tempo estabelece fios assim, só que invisíveis, vindos de zonas obscuras da memória e do pensamento cristalizado como a liga pegajosa que passava das formigas para o órgão digestivo de aranhas saltando dos Cadernos de Malte e de Vinte mil léguas submarinas lidos na infância e na adolescência solitária entre livros, filmes e pequenas mentiras. Sempre me sinto pouco seguro a respeito do que de fato aconteceu — o Talvez de Lillian Hellman é a minha pequena bíblia secreta de desconcerto e de um certo aturdimento que a escritora relata sem surpresa, como alguém aprende a relatar a vida que consome certezas como formigas deixadas em paz nas suas longas filas — só que não fazem isso, não nos deixam em paz, nem é doce o alimento das migalhas que restam para as lembranças pouco firmes, o filme incerto das recordações tremidas, a sonata que “outro recorda”, a minha “cotovia” do sul, calcinada na chuva, tudo isso vindo enquanto ainda não chegara ao rés-do-chão e estava em desarmonia, entre abstratos furores como o personagem daquele romance da Sicília que erra o caminho de casa, toma um trem para o passado, um navio para atravessar o mar noturno da memória de tocaia ao pé da escada.

Eu ficava sem ar, na juventude, e fico ainda agora, sentado num sofá, ancorado no instante cuja fita azul penetra na sombra. Tento reconhecer o rosto de Sarah e fingir que não era mais do que a “passagem do tempo” o que me afligia naquele momento. Como se não houvesse esperado a outra inclinação da areia sobre o relógio de mármore afundado debaixo das coisas mudadas, sempre mudadas, ainda mesmo durante o intervalo, quase inexistente, entre ter fechado a porta, lá em cima, e estar pisando já no pequeno tapete puído de acesso a uma escada que eu conheço melhor do que todas as outras escadas do mundo. A sensação é, sempre, da perda de algo, de alguma coisa deixada um degrau abaixo ou num banco de trem ou de vagão de metrô rápido demais para mim.

O que eu esperava? Sarah em formol, abrindo a porta para o fantasma de 1986? Fico chocado quando as coisas se mostram afetadas, alteradas, brutalizadas pelo tempo. Você está imaginando a sala de Paddington, calculo que esteja me vendo, olhos pregados nas jovens opulências de Ludmila do modo mais vulgar possível — e eu reconheço que sim, estava fascinado pela quase violenta juventude de Luddy — mas isso em contraposição à minha Sarah irreconhecível na senhora Sensitiva Gordinha que fazia o elogio da filha, naquele momento.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho