27. Luddy é superdotada, se você quer saber…
Sarah relatou as precocidades da criança, falou sobre o rendimento escolar excepcional da menina — e lamentou estar vendo tudo isso desaparecer na adolescente que acabava de sair para comprar camisinha (“Luddy” ia passar o fim de semana “na garupa da moto do namorado”, segundo a mãe explicava, com um ar que — ela devia achar — devia parecer moderno, sofisticado).
Eu mal tivera tempo de ouvir duas faixas da música caribenha cuja dança a menina só exibira, sozinha, por alguns instantes — para o amigo da mãe que amava o Recife que amava a Lolita da frase conhecida até da infanta Ludmila. Eu olhava dela para Sarah.
Sarah. Acho que a lamentei, mais do que nunca, quando ela trocou de blusa enquanto Luddy trocava de capa — a seu pedido — antes de sair. A despedida “humorada” da garota foi me jogar uma bolsa-sacola pesada, em forma de urso, ao surgir apetrechada para viagem, apertando-se para passar entre a mesa baixa e os meus joelhos (os joelhos fortes se comprimindo contra os meus, com divertimento).
Luddy. Da porta, gritou a frase da temporada recifense da mãe quando jovem (em despedida gentil, eu suponho, num português mais do que estropiado: “Quién no conece Rêciff, no conece Loulita”), enquanto eu passava a ouvir Sarah — “ah, sim?” — a enveredar pelo tema da herança genética de Ludmila, a inteligência excepcional do pai, o sub-James Bond da família, o russo Aleksander Zydanov, ou “Alex”, seu falecido marido. Ele se naturalizara inglês, ela esclareceu (como se isso tivesse suma importância), antes de se ver “envolvido” no terceiro escalão do escândalo Blunt.
Alex cumprira uma pena leve — se comparada com outras sentenças aplicadas contra pequenos contatos de grandes espiões — e voltara da prisão trinta quilos mais magro, para morrer de enfarte, dois anos depois.
Com a casa mais tranqüila depois da saída — ou fuga — de Luddy, a mãe pôde buscar três grossos álbuns de fotos onde havia inclusive uma minha, no Recife, sentado com Sarah num banco de azulejos portugueses. Ela dissera que havia muitas nossas, mas só havia mesmo aquela, num dos bancos da Fundação Joaquim Nabuco, no dia da visita a Freyre (“ele morreu?”, ela perguntou). As demais fotos eram de Sarah sozinha, solteira, no álbum número um. O álbum dois era do casamento, da lua-de-mel na Jamaica e dos primeiros anos da vida em comum, ela sem saber das atividades clandestinas do homem sorridente que era Alex, muito parecido com o superespião Putin, hoje elevado ao trono pós-comunista. O álbum três era o da família acrescida da doce Luddy bebê, saindo da maternidade nos braços da mãe, tomando banho, num carrinho cor-de-rosa e nos seus primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto e sexto aniversários. Antes do sétimo, Alex fora preso e as festas da família praticamente se acabaram.
Sarah enxugava uma lágrima muito elegante, depois de mostrar a última seqüência: fotos de Luddy no colégio, representando num palco de crianças e visitando Cuba, recentemente.
Meu interesse, naquela altura, estava já voltado para o “Graham file” ao qual Alex, desempregado durante seus últimos dois anos de vida, se dedicara quase em tempo integral, segundo Sarah. Melhor dizendo, o arquivo “Maria Graham” que ele apenas começara, em longas horas desocupadas naquela casa da zona mais modesta de Paddington, coletando a memória guardada na família da sua mulher e, depois, as informações de qualquer tipo sobre uma inglesa com quem provavelmente não teria se dado muito bem, arrisco dizer, se o relógio do tempo não houvesse tornado a viajante apenas uma gravura ou duas, ou três (quantas?), na parede da casa muito misturada, entre os mundos da “primeira” Sarah, da segunda e daquela casada com ele, Zydanov, o pai de Ludmila, ausente, na prisão, a maior parte do tempo em que o mundo mais novo dos três mudava velozmente. Mãe e filha haviam trocado de endereço, várias vezes, enquanto o pai cumpria pena na antiga prisão de Casement, e agora restavam só algumas fotos da pequena família Graham-Zydanov, o arquivo “MDG” e, sim, o samovar (presente dos padrinhos russos do casamento com direito a lua-de-mel pequeno-burguesa em Brighton e tudo o mais).
Livre de Luddy, Sarah me contou tudo isso — com o ar de quem resumia um filme medíocre dos anos 70, dirigido por Guy Hamilton ou por Peter Collinson (tanto fazia). Eu estava, confesso, meio alheio ao desfiar daquelas aventuras de uma família inglesa alcançada pelo frenesi da Guerra Fria agora distante — ou quase —, num mundo onde os frenesis haviam se reduzido ao que, de um modo ou de outro, podia ser espetacularizado através da gritante telinha estabelecida nas casas como janela de substituição da realidade (fosse isso o que fosse) por um simulacro cercado de imagens e (poucas) palavras restantes da “galáxia de Gutenberg” em aposentação desenfreada, tudo partindo do Centro estilhaçado que “não se conseguia manter”, Yeats. Tais pensamentos, digamos, abstratos, talvez fossem mais para me proteger do filme de Sarah — aquela locução de cenas familiares entre canhestras e ligeiramente sinistras pelas ligações, diretas e indiretas, com a espionagem —, numa sala abafada, onde os anos já pesavam.
Tudo já pesava. Até o ciúme retrospectivo fora despertado, em mim, pela vida que ela tentava desenrolar, aos pedaços, como um longa de ficção, mal montado, no qual um russo jovem seduz uma inglesa confiante — e agora estranha — que era a Sarah de anos depois do Recife (um momento, apenas, na sua juventude traída pelos anos — isso que soa solene e bonito, como na publicidade de romances baratos).
E tudo também se tornara barato, vamos convir. No meio daquela projeção do passado recente, ela resolveu me oferecer “algo mais do que chá”. Respondi que não estava com fome, mas depois entendi a gíria mais atualizada que Sarah pretendera usar para marijuana. Era londrino demais para meu gosto, e recusei polidamente, mas ela foi buscar as duas preciosidades: para ela, o “baseado melhor do mundo” — que “você vai perder de experimentar, meu amor” — e, para mim, o arquivo amador, relíquia dos Graham (com absoluto destaque para “Graham, Maria Dundas”) e da passagem de Aleksander Zydanov pelo vale de lágrimas e maconha do mundo. Eu já estava cansado, mesmo, de revirar as fotos domésticas da família sorrindo para mim, nas poses, iguais, de todas as pequenas famílias britânicas, eslavas, latinas, etc.
Sob o fumacê de Sarah, aproximou-se a hora — que eu temia — da intimidade insinuada desde a hora da chegada (quando seus dedos familiares haviam enxugado os meus cabelos sob a toalha que recendia à intimidade das gavetas da casa desconhecida, num subúrbio de Londres). Havia entrado, e percebido o erro, de repente perto de remotas tardes em Olinda e longe da juventude — que eu queria e temia mais ainda —, sendo tudo uma confusão só, de maconha e pequenas lembranças, rugas onde existira a louça da pele moça e todos os neurônios que deixamos, como ácaros, pelas cortinas cerradas da mente que se recusa a envelhecer, morrer, fazer um sexo estropiado pela nova falta de confiança total, com os anos da lonjura de permeio no meio da sala onde a sua saia de senhora sobe acima de joelhos sem frescor no ambiente abafado de retratos e censuras: ela me olha, eu evito esse olhar, estou sobre ela e talvez não a penetre, há hesitação onde não pode haver a reticência do desejo quase apagado e atrapalhado pela saída da menina elétrica que distraidamente trouxe o calor mínimo que agora eu luto para ser — oh — a chama do passado, um filme de título brega mal traduzido de lembranças truncadas, oh Sarah me desculpe, me perdoe, quando isso vai terminar?, como posso não comparar?, esquecer, ser de novo como fui com você que não é a mesma enquanto se recompõe e se levanta, depois de termos tentado rolar pelo espaço apertado que não permite rolar quem ri só da idéia de rolar na sala comprimida do tapete pisado por chinelos com fragmentos de biscoitos colados nas solas de borracha enquanto os corpos já não são plásticos, leves — musicais?
Que canção triste pode ser o amor que não devia ter voltado para o nenhum lugar de agora, Sarah, tarde demais (outra hollywoodiana breguice qualquer na memória).
28. Com Sarah a dormir
no seu quarto, comecei a folhear o arquivo mais caprichado do que eu esperava. Zydanov fora arquivista a vida toda, tinha paixão pela ordem e pelos detalhes. Tudo estava organizado da melhor forma possível, em ordem cronológica, sobre a vida de “Maria Dundas” (em solteira), “Maria D. Graham” — a Viajante, a Escritora, a Mulher (quase) Independente — com a relação das suas obras sobre a Índia, o Chile, o Brasil, e suas anotações sobre a Província de Pernambuco, no quadro do primeiro Império, que era o que me interessava.
“A sociedade dos ingleses é exatamente o que se poderia esperar: alguns comerciantes, não de primeira ordem, cujas reflexões giram em torno do açúcar e do algodão, com exclusão de todos os assuntos públicos que não tenham referência direta com o comércio particular, e de todas as matérias de ciência ou informação geral. Nenhum sabia o nome das plantas que cercam a própria porta; nenhum conhecia a terra dez léguas além de Salvador; nenhum sequer me sabia informar onde ficava a bela argila vermelha da qual se faz a única indústria aqui existente: a cerâmica. Fiquei, enfim, inteiramente desesperada com esses fazedores de dinheiro destituídos de curiosidade.”
Isso é Maria Graham descrevendo o mundo dos seus compatriotas, no Brasil que ela conheceu, de 1821 a 1823. Nascida em Cockermouth (Cumberland), em 1785, primeiro ela fez longas viagens com o pai, o contra-almirante George Dundas, e, depois, com o capitão Thomas Graham, seu primeiro marido. Após a morte do capitão — durante a estadia chilena —, ela viria a se tornar mulher de Augustus Parede Callcott, artista de certo renome na sua especialidade.
As viagens da Graham a levaram longe: à Índia, ao Brasil e ao Chile, e serviram de temas para livros conscienciosos sobre tudo o que viu e anotou nas cidades em que viveu ou nas regiões que visitou demoradamente. Diário de uma estadia no Chile (1822) — com vívidas descrições do grande terremoto — e Diário de uma viagem ao Brasil (1824) são dois dos títulos fundamentais nas estantes de estudos sul-americanos.
Maria Graham chegou a Pernambuco em 21 de setembro de 1821, a bordo da fragata Doris, da Real Marinha inglesa. O comandante era seu marido, claro, e o casal conheceu a Província durante os agitados tempos da rebelião contra o governador português Luiz do Rego Barreto.
Como era inglesa — e muito curiosa e observadora cheia de real interesse por lugares e pessoas — a esposa do honorável capitão Graham pôde visitar tanto o palácio temeroso quanto o quartel-general dos revoltosos, na povoação de Beberibe. Era uma mulher destemida, e viu a capitulação de 5 de outubro de 1821 com aqueles belos olhos que a úmida terra inglesa haveria de comer, em 1842.
Tento supor que fossem da mesma cor dos de Sarah — aquela cor para a qual W. H. Hudson procurava uma definição, nas tardes douradas do Tâmisa.
Do Chile, Maria voltaria viúva, e, de novo em Pernambuco, encontraria a Província levantada em armas, com o porto sob bloqueio da armada real comandada pelo olímpico Lorde Cochrane. Foi então que ela pôde se mostrar a “intrépida intérprete” dos líderes da Confederação de 1824 — chefiados pelo ambíguo Manuel de Carvalho Paes de Andrade —, nas negociações com o Lorde, comandante sob as ordens de Dom Pedro I. Este, por sinal, convidara Maria Graham para também prestar serviços como educadora, na corte, cuidando da instrução precisamente de D. Maria da Glória, futura rainha de Portugal, então com cinco anos de idade… Por isso, aliás, é que a Maria inglesa voltara ao Brasil, com passagem obrigatória pela Província que ela só conheceu sacudida (“pernambucanamente”, como dizia GF, o boca-mole) pelo “espírito rebelde”, ou de insurreição, de legítimos separatistas inconformados com a “suserania” portuguesa representada por um imperador luso e bem luso, pelo menos em alguns dos sinais despóticos mais grosseiros).
É tudo história registrada, aconteceu, fez parte da vida daquelas pessoas que estão mortas há tanto tempo que é como se nunca houvessem vivido e visto a mesma luz que ainda vemos, quando hoje o Capibaribe sujo também se incendeia da última luz que toca o Teatro Santa Isabel de um vermelho pompeiano às margens do rio que João Cabral, sem motivo algum, comparou com um cão sem plumas. Sarah não entendia isso: “Quando que um ‘cao’ ter plumas?”, perguntava ela — e eu, confesso, não sabia responder porque também achava a imagem arbitrária demais e demasiado conduzida pela sonoridade do verso que, claro, já ninguém questiona, porque é poesia e porque é de Cabral, que trouxe as sonoridades andaluzas para o território seco da sua visão (de porteiro) do mundo.