O inglês do Cemitério dos Ingleses (1)

Leia parte (1) do romance "O inglês do Cemitério dos Ingleses", de Fernando Monteiro
Ilustração: Paulo Fernando
01/07/2005

Toda a infelicidade do homem vem de uma coisa apenas: ele é incapaz de permanecer quietamente em seu quarto.
Pascal

Prólogo

Vejo florestas e raras fazendas, a noite sem cercas e o fim misterioso das trilhas que vão dar a lugar nenhum, num dos mais antigos lugares da terra.

São picadas abertas ninguém sabe por quem. Quem quer que tenha estado aqui, antes, e encontrado outros sinais de perdição anterior, de desejos escondidos debaixo da mente dos que procuraram — e encontraram — alguma coisa perdida para a raça que se tornou humana (e digna da piedade do Senhor), terá sentido o mesmo temor, espiado por felinos e sagüis, cachorros do mato e outros pequenos símios que têm caras de macaco parecidas com as cabeças reduzidas dos índios que habitam na fumaça das serras, longe das praias que são muito limpas.

Não se vêem os nativos senão muito raramente, no caminho daquelas aldeias que fugiram (ou “subiram”, como aqui dizem). São descendentes das pobres tribos tangidas desde o litoral para as serras, ou são herdeiros daquelas populações intratáveis que não avançaram para fazer contato com os colonizadores rudes, os homens que destruíram, assim mesmo, a cultura primitiva, limitada à cestaria simples e ao labor preguiçoso de uma cerâmica que se pode chamar de feia.

As extensões imensas, as sesmarias dos gritos, os pássaros que trazem as cores do céu, os animais tristes — e as gentes que resistem, distantes do centro do país. As negras e as índias de peitos nus não despertam cobiça mais crua, o que poderia ser bem natural neste lugar de negros duendes e fadas prenhes, de luxúria disfarçada e fomes que se saciam embaixo e em cima, confundidas.

A lenda do negrinho de uma perna só pula de região para região de trevas que eu visito e desenho, buscando o rosto e o sentido dessa nação que o verde domina, sob o metal do céu aceso que não ilumina, não esclarece, não dissipa a sombra sob verduras úmidas e pouco convidativas. Copas de árvores imensas, com frutos pesados e, verdade seja dita, de cor e forma um tanto obscenas, muitas vezes. Há frutas brasileiras que semelham às partes de fêmeas desventradas, muitas delas venenosas. Um “capitão do mato” — daqueles que contrato, como guias, apesar da mínima confiança que inspiram — ofereceu-me uma delas para comer, como boa; um negro, entretanto, arrebatou a metade que eu já ia levar à boca (era doce de gosto) e o capitão do mato riu, dizendo que os pretos temiam, sem motivo algum, aquela fruta suculenta.

Guardo o pouco que tenho em alforjes bem-vigiados, não durmo sem a pistola ao alcance do braço, por medo dos animais irracionais e humanos — sem falar que há sinais de demônios da natureza, seres antigos que permanecem vivendo em segredo.

Sabe-se dos sinais deles nas paredes de pedra, nos lajedos que afloram à beira de rios que suponho mais velhos do que o tempo. São inscrições que despertam medo, assim como as grutas vazias convidam para os seus salões esculpidos com o senso artístico de um capelista louco que houvesse bebido no hospício. Fogueiras, fumaças, fios de lã de regiões de invernos severos, viagens e transportes do fumo à roda das conversas de vilas fantasmas e pequenas cidades mortas com igrejas de azulejos, morcegos nas sacristias e padres fedorentos. Há alguns meses, vi uma mulher de branco que não mais avistei, passada a curva de um cemitério tão rude quanto inesperado (no outeiro que não era das cercanias de vila alguma).

É o mais estranho dos países para se viajar de noite, debaixo das estrelas que parecem diferentes. Subi um rio, uma vez, e ele também desapareceu. Quando me disseram que havia toda uma cadeia de montanhas esculpidas, eu não acreditei. Mas lá estavam elas, no meio da mata hostil que pertence a si mesma e resistirá aos avanços do século, das estradas e dos povoados com escolas de crianças pouco a pouco cheias das cobiças de homens feitos.

É tão estranho o Brasil. Às vezes, parece muito novo. Léguas depois, parece muito velho — e não parece querer ter a esperança que vejo noutros países saídos das cismas de europeus. Dizem que surgiu da névoa do desconhecimento, fora do mapa dos navegadores que procuravam por outras terras. Enfeitiçados, viram surgir as praias sem vivalma, os altos coqueiros balançando só quando se olhava para o céu deserto de aves marinhas. São lendas. Os coqueiros se balançam como todas as outras palmas — mais baixas — que espalham os frutos ressecados pelo litoral agora já populoso, com telhados de casas altas se espalhando à volta de igrejas que não faltam nem nas menores vilas. Não sei… Talvez tudo que se diga, aqui, tenha que ser revisto à noite.

A noite é o segredo deste país. Do império da sua sombra que simula ser entregue à claridade de águas frias. Suas cachoeiras são de arrepio, águas velhas de um mar doce que rola debaixo das grotas, quem sabe. O torrão é daqueles dos primeiros afloramentos, há cansaço nesta terra, impaciência do mundo. E pedras por toda parte, riquezas guardadas por muito tempo, incrustadas no solo que ficou fechado, como um feto na barriga de uma mulher muito velha.

A paisagem não tem piedade. Tento desenhar isso e, contudo, tenho medo. A mulher de branco, eu revi e quis desenhar numa tarde de preguiça… e, no papel, ela se mexeu. Não posso mencionar isso, nem deveria escrevê-lo, deveria ficar calado ao chegar numa dessas fazendas onde há quartos que não se abrem para nenhum hóspede. Não que me anime a confessar que se mexe um desenho meu (para o ouvido de algum padre que aceita tudo, cansado como esta terra de degredo), porém a solidão pesa nesses ermos onde se espera que uma conversa possa aliviar a alma do viajante.

Vi esses homens perdidos, filhos de europeus casados com as diabas nuas dos seus pensamentos. Ou com criaturas da realidade, de quatro patas e pêlos fartos, como o “padre das cachorras”, que ontem me recebeu, numa vila de casas semidestruídas. (O padre não me disse qual guerra havia acontecido ali.)

Pode brotar do ermo uma procissão de devotos que nem sempre parecem vivos. Houve dia em que fiquei com eles, para ver o que fariam quando o fogo fosse aceso — e se comeriam da nossa comida, normal, de gente. Os ciganos que nos viram com aqueles romeiros trataram de se afastar pela estrada que seguia para longe das pedras onde se dera a matança de inocentes semelhantes. Mas não aconteceu nada: apenas comeram, abençoaram e se despediram de manhã, bem cedo. Não disseram aonde iam, nem por que não queriam seguir conosco.

Espero, a toda hora, encontrar a mulher de branco — que poderá não estar de branco, fiquei sabendo, como um aviso (ninguém me disse). O sonho corre solto, quando se dorme no calor da tarde, sentindo o formigamento das partes que torna os padres sujos, os homens perigosos, os meninos de pequenos membros duros nas camas coletivas.

Tento ser humorado com meus “avisos”. Um fantasma que troca de roupa é, no mínimo, um fantasma caprichoso, e tal alma — mais vaidosa do que penada — só pode estar perdida nas estradas que dão em nada, e levam aos malassombros deste país de palácios enterrados e mulheres que se cobrem de um jeito que alude ao modo de estarem nuas. Isso não é coisa fácil de se entender, eu bem sei, porém é algo que intuí, vendo as senhoras nas suas casas, vestidas não para a rua, mas para os almoços e os (raros) jantares nos quais eram convivas (ou eram pelo menos apresentadas ao estranho de passagem).

Os ambientes da noite (já disse que a noite é a chave para se abrir o cofre do Brasil?) são incertos, fumarentos, as paredes perto das praias trazem os ventos para dentro dos quartos, e o mar nos acorda quase com os salpicos da espuma no nosso resto de sono. À tarde, o oceano como que se enfastia, recua, oferece as águas frias que são as águas secretas do Rio e de São Paulo, as duas cidades maiores e mais opulentas — uma porque é a Corte e a outra porque acumula muita riqueza, nos dias que correm. Descendo para o Norte, dizem que as águas são mais quentes. Ouvi falar das Sete Cidades de pedra no fundo do sertão, que se conservam como eram no tempo dos gigantes que as teriam “furado com as próprias mãos” — e a ajuda de algum demônio desse lugar sem inocência. No caminho desse prodígio, há matas escondendo montanhas toda noite iluminadas (quando passa da meia-noite e ninguém se aventura por tais infernos).

Ouvi contar coisa parecida, na Itália, mas lá é diferente, a Itália tem tanto passado que a morte é uma presença embutida sob o sol matizado, sem inspirar grandes medos. Os gregos, os romanos, os cavaleiros do medievo, toda a gente que viveu na Emília e na Úmbria, na região napolitana das cidades soterradas, toda a Idade de Ouro que faz polir as pedras e desperta o latir dos cachorros (há ossos por todo lado), tudo isso é quase amigável e próximo da medida humana, em todo caso… enquanto um país velho, que sofreu de solidão o tempo todo, é um lugar que mais assusta do que convida o viajante a se impregnar dos seus temores de grau abaixo da das subcivilizações.

O Brasil me entristece. A vontade que desperta é a de morrer entre as suas dores.

A mulher de branco… ela me acena, mas não sorri. Sua face é a de uma grega queimada num tronco. Seus cabelos são muito negros, embora não pareça jovem. Estou mais próximo e vejo que também não é uma velha — e que me olha das luzes negras de um rosto não totalmente desconhecido. Agora, posso ver que está de preto e que anda descalça — porque me estende a mão de unhas curtas, após saltar um regato que eu não havia notado ao lhe admirar os pés nus.

O que ela quer?

Estou relutante em seguir, debaixo da lua estranha, a sombra de uma sombra que pede confiança sem dizer nada (de onde veio, se é viva, se é morta). Estamos numa trilha da mata que avança pelo meio de coisa nenhuma. Nada poderia ser mais só do que uma mulher que vivesse na casa que ela me aponta com um braço roliço — o roliço braço nu que eu julguei vestido com roupa, mas que, vejo, é pele lisa como a pele de uma baleia. Devo segui-la? Aceitar um tal convite, no meio da noite neblinosa? Todas as minhas forças lutam contra a água dessa sereia que brilha como se cantasse para dentro do silêncio da passagem de um barco pela praça vazia que aparece no lugar da casa…

O feitiço é conhecido: ela faz com que eu reveja, no meio da morada de vidro, os lugares da memória — e não aumente de receios, não fuja de volta para a clareira dos cavalos assustados (se a vontade de morrer for mais forte, nesta hora, você vê o que lhe inspira a quebra da vontade de frustrar a morte).

Mas, é só fechar os olhos. É necessário, apenas, o poder da recusa — com o auxílio de uma reza, uma prece daquelas aprendidas na infância (de olhos firmemente cerrados).

Passa-se um bom tempo, os minutos longos da paciência que desanima os demônios de dentro. Abro os olhos, respirando a minha sanidade para o trecho de campina onde não há casa, não há mulher, não há vivalma.

Vejo apenas o que havia antes: a solitária mata enluarada — e nenhum sinal do fantasma amado de Maria Graham.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho