O inglês do Cemitério dos Ingleses (2)

Leia parte (1) do romance "O inglês do Cemitério dos Ingleses", de Fernando Monteiro
Ilustração: Ricardo Humberto
01/08/2005

1. O postal
Fazia tempo que não vinha qualquer notícia de Gerald Glaser — um amigo dos meus tempos de Roma. Glaser era (quer dizer, é) inglês, isto é, meio inglês e meio irlandês, na verdade. Hoje se diz “fotógrafo aposentado”. Mandou fazer um cartão, de brincadeira, com sua ocupação tratada com o humor britânico que ele afirmava não existir, e que era “uma lenda do teatro” (nunca me respondeu porque “do teatro”). Trabalhava na Vogue, não era para qualquer um, só os profissionais muito bons trabalhavam naquele lugar que, quando você estava lá, não parecia a Vogue…

Bem, estou me afastando da notícia, que chegou, de Gerald: um postal — dos seus, de imagens da África — que merecia ser considerado enigmático, palavra para não ser usada à toa, mas o postal era isso, um pequeno enigma, no curto texto rabiscado no espaço onde cabem só algumas frases curtas, naquela área em branco, à esquerda, para escrever a mensagem, ao lado dos traços reservados ao destinatário e seu endereço, à direita, sendo que algumas pessoas parecem apreciar aquela limitação de espaço, porque sempre avisam, aliviadamente: “Este é um postal rabiscado às pressas, tão logo possa, enviarei uma verdadeira carta” (que nunca chega).

Hoje, escrevem-se cada vez menos cartas. Há o telefone e o e-mail para volatizarem o que um dia já foi a “República das Cartas” na Europa Central dos séculos 17 e 18, e, em qualquer lugar, as relações humanas das quais se guardavam maços de cartas enrolados com uma liga, um elástico, uma fita brilhante cujo nó, às vezes, resistia em se desatar (lá vou eu, de novo, para longe).

O postal de Glaser. Nada menos que uma notícia fúnebre que não me dizia bulhufas: Frank Fletcher has died at the age of 82.

Quem era Frank Fletcher? Ou, mais corretamente, quem fora — uma vez que havia acabado de falecer, naquilo que se chama de idade avançada (assim como temos a precoce, a madura, a média e a idade morta dos úmbrios a esboçar um sorriso de pedra nos túmulos). Gerald Glaser achava que eu teria motivos para me interessar pela morte do homem “at the age of 82”, uma vez que se dera ao trabalho de enviar o postal de Londres.

Meus pêsames — embora eu não houvesse conhecido nenhum Frank Fletcher em Roma, em Paris, em Londres ou em qualquer outro lugar, que eu lembrasse. Era uma surpresa receber a mensagem, nem boa nem má, que o sovina Glaser tinha resolvido transmitir ao preço de um selo daqueles em que se vê o perfil da rainha (uma mulher sem graça, de nariz reto e cabelo arrumado em coque, com a coroa perigosamente inclinada).

Para mim, a morte do inglês — imaginava eu que Frank Fletcher fosse inglês — não queria dizer nada, o nome soava até um pouco improvável (como os nomes inventados por um novelista preguiçoso, com prazo curto para entregar alguma ficção barata). Eu também não me recordava de nenhum Fletcher notório, que houvesse alcançado qualquer tipo de fama nas letras, nos esportes, na política ou mesmo no mundo do crime britânico, por vezes tão interessante…

Até algum tempo atrás, Glaser costumava me enviar postais de mulheres somalis com os peitões de fora, ou então imagens de marroquinas com as mãos pintadas de hena e outros assuntos fotográficos das suas viagens à África de há três ou quatro décadas (o tempo passava). Os postais tinham ficado velhos, e ele seguira remetendo, usando os portraits de mulheres e (raros) homens que eu calculava já mortos, talvez, enquanto suas fotos prosseguiam circulando como antigos modelos de um “fotógrafo aposentado”.

Gerald Glaser não me escrevia desde 1997 ou 98 (fiz o cálculo). A última vez, eu tinha certeza, fora em resposta a um convite meu, quando fora lançar um livro em Lisboa e lhe enviara o tão luso impresso da Livraria Bulhosa, espécie de piada que Gerald talvez não percebesse (e não percebeu mesmo: respondera seriamente, agradecendo e desejando sucesso).

Agora, eu me dava conta dos anos passados sem mais notícias do fotógrafo… exceto por dois ou três cartões de Natal daqueles bem ingleses, com douraduras em alto relevo. As imagens de postal que Glaser fizera das suas fotos artísticas, em preto-e-branco, eram muito bonitas, e mais de um amigo havia pedido para ficar com alguma delas — que, a bem dizer, eu colecionava (como lembrança do amigo dos tempos, cada vez mais recuados, de uma Roma só não mudada nas ruínas do Fórum). Glaser também enviara algumas poucas imagens romanas, lembrado de mim durante os anos em que as amizades ainda vigoram a distância. Depois, nada.

E então viera o novo postal velho, o cartão mostrando um ancião africano praticamente nu, de óculos, sorrindo para a câmera. Com a notícia, que não me comovia nem alegrava (“Frank Fletcher has died…”) escrita no peito do seu modelo das ruas de Serra Leoa.

E era tudo. Não havia mais coisa alguma no espaço próprio para as mensagens, ao lado das linhas de endereçamento, preenchidas com a letra de arquiteto do meu amigo, clara e reta.

Glaser julgava que eu conhecia Fletcher, obviamente. Ou que devia conhecê-lo. Não era, certamente, nenhum dos repórteres fotográficos da Vogue, amigos dele — como o irlandês que andava com a gorda Anita Ekberg e que, um dia, nos levara para a casa da atriz, cheia de cachorros, numa tarde romana qualquer da Via Appia. O tal fotógrafo não teria 82 anos, jamais. E a sua morte, por lamentável que fosse, talvez não precisasse ser comunicada a mim, desde os longes de Londres (e sem qualquer anotação auxiliar, tipo “morreu o cara que comia a Anitona”).

Porque eu era amigo de Glaser, e estava, por acaso, no seu estúdio da Piazza Navona, bem próximo da embaixada brasileira, fora com eles conhecer a atriz envelhecida, e não na glória dos tempos em que eu fora apaixonado por ela, como tantos adolescentes da lua distante do Brasil, nos subúrbios úmidos da distância. Uma vez eu fora pego, no ginásio, com um bom desenho da Ekberg de mamas à mostra, algo no estilo de Carlos Zéfiro. Era uma série crescente de licenciosidade, desde Anita semidesnuda à franca fantasia de Anita debruçada sobre um garoto de pau duro e óculos (talvez fosse eu, talvez fosse algum colega que houvesse encomendado a “série” meio no estilo de Carlos Zéfiro, se não me engano, depois de tantas mudanças: hoje, sequer desenho como desenhava naquela época relativamente inocente). Enfim, eu não tinha nada melhor para fazer e fora junto, convidado educadamente. Lembro que pensei: se ainda tivesse os desenhos, poderia levá-los e presentear a Ekberg com eles, explicar o que eram e, quem sabe, ouvir sua gargalhada feroz, de mulher que já fora bela. Riria da minha paixão recôndita? Uma mulher experiente, uma atriz, principalmente, adivinha as coisas no ar, importantes ou supérfluas, enquanto olha para trás como para as fontes apagadas, de águas passadas sobre o vestido colado no corpo que se tornou um dos fantasmas do cinema. Uma atriz pode se ver jovem e selvagem, e ainda sem a decepção nos olhos, com toda a força que emana, justa, de sua beleza animal, qualidade tão breve quanto sagrada por um instante, por um jorro da eternidade de gelo que se desfaz, continuamente, à nossa frente… Tudo isso eu pensava (acho que pensava), descendo as escadas do estúdio de Glaser, a alguns metros de ruínas romanas cheias de gatos alimentados por ele, quando estava com paciência. As frases fluíam, sorridentes, daquela descida em demanda da Via Appia, de uma deusa aposentada pelas chamas apagadas da sua época, eu era jovem e sabia que tudo entrava por esse túnel, para a catacumba à luz do dia, um momento suspenso e mais nada: teu auge passou.

Anita Ekberg ainda estaria viva, na periferia emiliana? E daí, caso ainda vivesse na mesma casa cheia de cachorros? Já não era mais a dos meus desenhos, uma mulher imensa, gorda, fanada como a idade de glória que vivera, a beleza que se fora com os anos adiposos, os adeuses a Fellini e outros mortos (Roma também estava progressivamente penetrando na virtualidade a desfazer mesmo as mais)… Não, Frank Fletcher não era o “irlandês de Anita”, um homem bem mais velho que Glaser, se houvesse acabado de morrer aos 82 anos (Gerald era uns quinze anos mais novo). Idades, contas, Anita Ekberg obesa — o cabelo ainda farto, mas sem vida, afugentando os cachorros, justamente como ela é vista a fazer em Entrevista com Fellini, correndo para abraçar os velhos amigos, Federico & Mastroianni, o ator vestido de Mandrake incapaz da mágica de trazer de volta a juventude, a vida dolce (ma non troppo) na cidade desmaiada dos afrescos da memória (quando vi o filme, a primeira coisa em que pensei foi mais desmaiada do que eu julgava, aliás, caso aquele “Frank Fletcher” houvesse sido importante, de algum modo, no filme das noites herdeiras da curva do final dos anos sessenta se encaminhando para o mundo pop que iria soterrar a Europa de Visconti, Antonioni, Zurlini e outros poetas do cinza agora borrado pelas cores berrantes.

Em suma: quem raio era o falecido “Fletcher”?…

Cheguei a pensar em telefonar para Londres, porém não tinha a certeza de ainda ter o número de Gerald (se é que era o mesmo, o telefone de outra Londres, como outra era Roma). Eu estava curioso, virando e revirando o postal do africano semidespido, com a inscrição no seu peito luzidio, apesar de enrugado: “Frank Fletcher morreu aos 82 anos”.

Talvez Glaser quisesse mandar para outro a notícia. Tudo bem, mas endereçaria e postaria o cartão para o Recife? É claro que não. Um endereço do Brasil é um endereço do Brazil, para qualquer europeu que não seja débil mental: está tão distante dele como os fósseis vegetais das florestas extintas de Marte.

O engraçado é que eu acabava de citar justamente o irlandês, num pequeno artigo intitulado “O Lawrence do Cinema”:

“‘Você gosta da atuação de O’Toole em Lawrence da Arábia? Hoje, o próprio Peter a considera pesando mais para uma overacting…’

“Esse trecho de carta recente do amigo Gerald Glaser foi o que me veio à memória, na noite de 23 de março, quando a figura esguia de Peter O’Toole surgiu no palco do Kodak Theatre, para receber das mãos de Meryl Streep o chamado ‘Oscar de consolação’ da Academia de Hollywood, pelo conjunto das suas atuações no cinema. Glaser foi — e ainda é — um dos melhores amigos do ator, irlandês como ele, e, como o astro, participante meio louco daqueles bons tempos ainda da dolce vita que se prolongaram pela década de 70. Saudades.

“Quando foi lançado T. E. Lawrence: Morte num Ano de Sombra, em 2000, juntamente com a segunda edição brasileira de Os Sete Pilares da Sabedoria, eu enviei dois exemplares para Londres: o primeiro para Gerald e o segundo — aos seus cuidados — para o ‘Lawrence’ cinematográfico. Sei que Glaser não entende patavina de português, mas ele me respondeu com entusiasmo, dizendo que Peter havia achado bela a capa (o retrato do verdadeiro Lawrence, magnificamente pintado por Augustus John). Em retribuição, mandou-me uma das fotos que ele tirou do amigo, nas roupagens branco-douradas do herói de Akaba.

“Não foram poucas as vezes em que conversamos sobre T. E. Lawrence, sobre o filme de Lean e sobre o seu protagonista, de quem Gerald havia sido companheiro de farra. Mesmo depois, sendo o seu compatriota já uma ‘celebridade’ internacional, os dois, irlandeses até a etílica medula, na boa época se encontravam sem outro objetivo além das aventuras de uns restos de tempo-sem-compromisso, próprio da juventude de que ambos se despediam no melhor estilo do ‘esporte’ nacional da terra de Joyce ‘conservada em névoa e álcool’, segundo Liam O’Flaherty. [Depois descobri que fora O’Flanagan, e não O’Flaherty, o autor dessa bobagem]. Foi por Gerald que fiquei sabendo que Peter O’Toole levou mais de vinte anos usando meias verdes, não por superstição, mas porque perdeu uma aposta, num pub qualquer. Pura questão de honra, o ator levou ao pé da letra a coisa: andou de meias dessa única cor, por duas décadas de peças malcombinadas. ‘A aposta era sobre escrever de trás para frente, algo que Peter (ou Pee-tah, na sua voz anasalada, com sotaque de Glendalough) é capaz de fazer sem maiores dificuldades do que encontra para inventar apostas malucas’ — garantia Glaser…”

Então, me lembrei.

Claro! Frank Fletcher. O nome veio não de Roma, mas do fundo de Dorset, na Inglaterra, como se guarda um cartão que caiu atrás do armário: Fletcher era um dos dois garotos que seguiam de bicicleta pela estrada entre o Campo de Bovington e Clouds Hill, num remoto dia de maio de 1935.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho