O inglês do Cemitério dos Ingleses (15)

Leia parte 14 do romance "O inglês do Cemitério dos Ingleses", de Fernando Monteiro
Ilustração: Marco Jacobsen
01/09/2006

29. Partidas
Eu tinha um bom motivo para ter trazido Maria Graham para o centro das minhas “pesquisas” fracassadas na biblioteca do mais sólido museu do mundo.

Ali, naquele claustro das letras de todas as épocas, suponho que não faltasse nada delas, de quase todas épocas e lugares distantes como o Recife visitado pela Graham, antes de completar-se o primeiro quarto do século 19. Por exemplo: eu não tinha, em casa, um exemplar de Ingleses no Brasil — do Gilberto Freyre ainda lúcido —, porém a instituição inglesa possuía a primeira edição, da Livraria José Olympio Editora, ano de 1948, e também a segunda, de 1977, pela mesma editora.

A primeira era a única edição que trazia menção de Henry Fielding — e do Fielding Junior — estranhamente suprimida na edição mais recente. Desde 1977, não saíra uma terceira (se o mestre de Apipucos fosse vivo, com mais de cem anos, a obra estaria pelo menos na décima edição perfeitamente negociada pelo astuto político que GF também foi, numa vida nada curta. Não importa. Ingleses no Brasil mereceria a terceira, a quarta, a quinta edição que falta nas estantes das bibliotecas brasileiras).

Em Londres, fui lendo, afinal, o livro do sociólogo-antropólogo que refere os Fielding, pai e filho, e encontrei o tal trecho suprimido na edição seguinte. Está no Capítulo III, OFÍCIOS DE CÔNSULES DE S. M. B. (Primeira metade do século XIX), página 271:

“No mesmo ano de 1823, o representante da firma Sally Walker & Co., da Bahia, protestou perante o Cônsul de S. M. B. no Recife contra a Junta Provisória da Província de Pernambuco pela detenção de 500 barricas de bacalhau carregadas em Lisboa por Henry Fielding Junior na galera Nicolau Augusto (…) sendo as ditas barricas legítima propriedade britânica.”

E Gilberto prossegue: “O curioso é que parece tratar-se de filho de Henry Fielding, o romancista inglês falecido em Lisboa. O que, sendo verdade, mostra que não há lógica na sucessão de pai por filho: a pai romancista pode suceder-se um filho negociante de bacalhau”. Ou negociante do tráfico de influência (acrescentaria eu, nabuqueanamente).

Fielding fora sepultado no British Cemetery das últimas melancolias de Garret, com a sua capela britanicamente sisuda — para descrevê-la com os advérbios queridos de Freyre — ainda mais por situar-se nas proximidades de Basílica tão lusa, ao seu modo, como é a da Estrela, segundo eu recordava (não é mais o antropólogo-sociólogo falando oxfordianamente etc.) de um passeio no qual ignorara a campa do “pai do romance” (para Walter Scott), falecido em 8 de outubro de 1754, na capital portuguesa.

E, agora, o filho do grande romântico ali estava, conectado com o Brasil, naquela reclamação prosaica, de 500 barricas pesadas de bacalhau importado. Anotei o registro valioso, achando importante encontrar aquilo, quando na verdade era uma titica, um nada sem valor algum se comparado com a notícia que me chegou por um e-mail enviado do Recife, pelo professor Nelson Saldanha, a quem eu pedira ajuda: Henry Fielding Junior estava sepultado no Cemitério dos Ingleses do Recife!, a cidade distante no trópico onde fora se apaixonar por ninguém menos que Maria Graham…

“Mas, é só fechar os olhos. É necessário, apenas, o poder da recusa — com o auxílio de uma prece daquelas aprendidas na infância (de olhos firmemente cerrados). Passa-se um bom tempo, os minutos longos da paciência que desanima os demônios de dentro. Abro os olhos, respirando a minha sanidade para o trecho de campina onde não há casa, não há mulher, não há viv’alma. Vejo apenas o que havia antes: a solitária mata enluarada — e nenhum sinal do fantasma amado de Maria Graham.”

Precisei ler mais de uma vez a mensagem do autor de Filosofia, povos, ruínas: Fielding Junior viera para Pernambuco, naquele mesmo 1823, já não no rasto de barricas de bacalhau, mas na caça da amada perfumada, a então viúva do capitão Thomas Graham, falecido no Chile.

Imediatamente vi um homem ainda jovem, carregando o peso de não ser um Fielding original como o pai talentoso. Ele é ruivo e um tanto hesitante no caráter típico dos juniores. Olha para uma latada portuguesa de flores, acima da visão do porto com a sua floresta de mastros de navios lusos e estrangeiros, e, de modo muito pouco cristão, comenta para si mesmo: “Oh, que notícia tão promissora!”…

O professor Saldanha — filósofo e crítico de idéias — ficaria chocado (eu o conheço desde as carteiras escolares da Universidade Católica, onde fomos professor e aluno da disciplina de Comte, eu escrevendo sobre temas sociológicos com derivação para a poesia disfarçada que ele podia compreender, no deserto de professores burros até à cegueira), a imaginação menos solta do que a minha, para seguir, desabrida, neste caso de Fielding. Como aceitar que alguém viaje para recuperar coisas que não perdeu, ou para descobrir peças deixadas para trás sobre um tabuleiro de xadrez abandonado num sótão de ratos? Coisas deixadas para trás, quero dizer, no lugar exato de onde eu havia partido numa agitação digna do duvidoso cavalheiro Tom Jones, o “Engeitado”, segundo a grafia da primeira edição em português do admirável romance do Fielding Senior, acolhido no panteão das letras inglesas douradas da Catedral de São Paulo (não a capital desvairada de Mário, mas a bela igreja agora polida até parecer um cartão de Natal de mau gosto, enviado por bichas tocadas pela Natividade).

Tenho ou não tenho um motivo para saudar Maria Graham com o melhor da imaginação mais do que desvairada? Vejo o filho de Fielding a arrumar as malas. Ouço o som das patas dos cavalos — ploc, ploc, ploc — da carruagem que vem buscar o súdito de Sua Majestade britânica na Lisboa pombalina a que ele chega, vindo de Sintra, tão cansado que aluga um quarto no Hotel Internacional apenas para passar o dia, porque pretende embarcar à noite no navio que tem o mesmo nome do antigo navio corsário de Lancaster: Virgin. Sua alma está riscada, pela primeira vez, de paixão amorosa não por uma virginal portuguesa de buço, e sim pela madura viajante cujo marido escorregou prancha abaixo, enrolado na bandeira do Império, até cair em águas chilenas, já fedendo um pouco. Adeus, Capitão Graham! Que os peixes sejam gentis com as suas partes…

Tenho motivos, sim, para saudar o amor, a viuvez precoce e até o velho Freyre que me pusera na pista do Fielding Senior, para, então, encontrar o filho sepultado no Recife: quem não conhece Gilberto, não conhece o Quartel General da Inteligência Brasileira a Serviço das Armas da Cultura posta ao Serviço de Salazar e dos Governos Militares.

Agora, eu podia voltar para o Recife — de onde nunca devia ter saído a fim procurar, na garoa inglesa, a chave que girara até me fazer retroceder a um cemitério abandonado debaixo das chuvas raivosas da minha cidade, aquelas águas repentinas que eu amava e que deixavam pesadas as árvores pingando em ruas alagadas pela falta de drenagem do entulho aumentado pelas construções há muito sem controle nas cidades enfeadas pelos espigões plantados nos antigos bairros aristocráticos. A antiga casa assobradada de Tomás Seixas — nas Graças — agora eram dois espigões geminados pelos chifres da especulação imobiliária cujos emissários o poeta expulsara a pontapés, quando tinham vindo interromper suas releituras de Proust no terraço, com propostas, para ele  “obscenas”, de sair da casa onde nascera (e viria a morrer) para dar lugar à construção de um edifício erguido acima do tapete de folhas do quintal onde Tomás pretendia erguer a miniatura de um pagode chinês, assim que recebesse uma famosa herança vinda de Trás-os-Montes, a qual se retardou até se apagar na sombra da casa dos sonâmbulos. Cidades lindas — como havia sido o “Recife das pontes e dos rios” — estavam agora…

Não havia tempo. Saí da frente da tela do computador do hotel quase diretamente para remarcar a passagem, antecipando a volta, e sabendo que talvez estivesse sepultando qualquer coisa, precipitadamente, no cemitério colorido da City. O que era? Um despedida condigna? Uma nova visita à Sarah e suas adivinhações fajutas?

Não havia tempo para saber, investigando em Paddington ou em outro lugar qualquer das estações recitativas — Kennington-Piccadilly-Green Park-Earl’s Court — que, na manhã seguinte, me levavam de Elephant & Castle direto para a central do aeroporto de Heathrow. Queria encontrar logo o túmulo do filho de Henry Fielding — Attention, please: passengers leaving for Rio — no Cemitério dos Ingleses do Recife — Flight 1702, repeat, Flight 1702, Gate 32

Acordei de um breve cochilo sobre o mar cor de coral gelado lá embaixo, e a tela do avião, no início do longo vôo 1702, mostrava o making of de Tróia, no mundo achatado que vê todos os filmes ao mesmo tempo, lendo as mesmas revistas que reproduzem as mesmas imagens de uma repetição quase hipnótica.

A viagem a Londres começava a se apagar ali mesmo, enquanto eu via aquelas imagens sem som, com preguiça de colocar os fones para ouvir o homem explicando a feitura do cavalo mostrado nas revistas, tudo tão intensamente monótono que talvez fosse um alívio se o avião caísse em algum lugar verdadeiro, cheio das cinzas de palmeiras cortadas para fazer fogo (isso era outro filme? Náufrago?), no mundo que estava sendo projetado na nossa pele como as tatuagens de Rod Steiger em O homem ilustrado.

A programação do vôo incluía o making of de Tróia — programado para os vôos do próximo mês —, enquanto o longa-metragem em cartaz no 1702 era uma nova biografia da princesa Diana, tendo o cartaz de publicidade causado um pequeno escândalo: as espáduas da princesa nuas até quase a base da coluna da figura esguia da atriz penteada como a pobre inglesa bulímica, anorética, sei lá. O filme propunha — segundo a sinopse — que ela estava grávida do namorado árabe, quando se dera “o acidente em Paris” (era o título, aliás), com cara de assassinato disfarçado (como o de Lawrence), executado com a mesma perícia do Serviço Secreto de Sua Majestade britânica. Eu resolvera dormir, e não deu outra: veio um sonho — que não parecia um sonho — do Recife da passagem de Sarah pela cidade dos sonhos iluministas do muito citado conde Maurício, de mistura com o conto de Casement sobre algum crime obscuro no fundo da Índia perdida dos livros do bigodudo Rudyard Kipling: está ela sentada no banco de azulejos de um posto de fronteira em tudo semelhante a uma Fundação Joaquim Nabuco nostrômica, plantada numa selva de montanhas azuis e céus atenuados como os dos quadros de Eckhout. Está escrito sobre a sua cabeça de fios loiríssimos: “Chefe da Inteligência”. Vejo, ao fundo, dois picos nevados com uma larga, uma monstruosa faixa nevada de pano entre eles, onde está escrito qualquer coisa meio apagada pela neve, como no trenó de Kane, no qual se lia “Rosebud” *, segundo recitam os cinéfilos.

“Você ajudou a matar algum homem, numa estrada?”

Essa é a pergunta que ela me faz, não diretamente, porém se dando ao trabalho (por quê?) de escrever num papel de carta timbrado onde leio um endereço rural inglês vagamente familiar: AYOT SAINT LAWRENCE, Welwyn, Herts. Já vi essa direção assinalada em algum documento, livro ou etiqueta de metal sob algum quadro (na mente, se acende — e se apaga — uma estrada trafegada por carneiros lanosos, no meio de uma floresta frondosa: é de tarde, e uma luz dourada desce sobre os animais ordeiros, há uma tristeza imensa nas árvores cansadas, enquanto as ovelhas seguem muradas na solidão dos animais, inarticulada e cortada pela morte, de repente, num jato de sangue em matadouros limosos de lama vermelha).

Fico estranhamente calmo em face da pergunta de Sarah, que em seguida me mostra uma foto do marido russo, cujo nome — Aleksan… — ela proíbe que eu mencione, em reconhecimento, com um dedo sobre os lábios muito rubros. Eu não respondi à pergunta, mas peço que ela limpe o batom borrado sobre a boca. Tenho imensa pena dela, dos seus olhos azuis, como se o céu vazasse pelas pupilas da decepção. A frase não tem explicação, está formada na minha cabeça, ecoa como…

Sobre o resto do banco, suas roupas estão espalhadas e se molham, enquanto a vejo nua, sem alvoroço sexual, parecemos irmã e irmão que dormem na mesma cama até depois da adolescência despida de sensualidade. Despida de sensualidade? Em seguida, estou tocando nos seus mamilos impudicos, duas flores de lábios intumescidos como eu próprio noto que estou, no sonho que se desgoverna como todos os sonhos: caminhos de lama e regos de água envolvem o banco azul e branco, que desaparece logo em seguida — com Sarah —, para dar lugar a um altar em ruínas, reaproveitado numa espécie de teatro onde toda uma platéia está maquilada de pó-de-arroz, com fundas olheiras. Reconheço muitos amigos naquela assistência algo irônica a meu respeito. Então, percebo que estou no centro do palco-templo, quando entra uma jovem senhora penteando a grande cabeleira. “Quem é ela?” — eu pergunto, por mímica, à platéia indecente (todos estão nus, abaixo das cadeiras não muito confortáveis, espalhadas sobre a areia). Onde vi esse lugar, antes? Isso parece ser de pouca importância, diante, agora, daquilo que as pessoas passaram a fazer: riem, descaradamente, da mulher nua e de mim, vestido com o grosso sobretudo com que circulei no frio e no calor de Londres o tempo todo.

Começo a recitar: “Nem sempre a trilha principal é a melhor, e é preciso parar para ver mais alto do que a janela do primeiro andar dos escritórios de administradores de queixo recém-escanhoado e olhar desviado da pequena tempestade que se forma”.

Todos protestam quando eu faço a minha pequena recitação sob as carícias da mulher que era, na verdade, Ludmila fantasiada de viúva, os pêlos pubianos primaveris pintados de ruivo e branco, no melhor estilo punk. Nesse momento, o louco sonho terminou — com uma sacudidela mais forte do avião. Pela janela oval, ainda havia cores nos céus onde voamos por um artifício que ainda me parece antinatural, tanto tempo depois de Santos-Dumont ter acenado para parisienses embasbacados no solo da Europa que ficava para trás.

30. Cores do retorno

Você volta — e o verde lhe surpreende, se você está retornando dos tabuleiros de tons ocres, amarelos, vermelhos e azuis suavizados da Europa, principalmente. Talvez o ocre domine (sobre todas), a cor do verde esbatido em quase cinzento na fumaça fria, na distância, temperado pela tonalidade dos muros cobertos de um verde manchado como uma boca esmurrada. Isso pode dar uma idéia errada…

Você volta dos tons monótonos de um bege-amarronzado por toda a Europa Central e do Norte – o que estaria longe do tapete de certos campos europeus matizados, recortados como quadros cubistas de cabeça para baixo, com cidades brancas na Espanha, em Portugal e na Grécia um pouco mais longe, entre montes de cabras. A Alemanha de florestas escuras responde por um poço de verdes limosos profundos, que fazem pensar na morte daquela cultura da morte de cavaleiros descansando sobre leitos de mármore sujos da saliva do inverno que atraiu plantas fungosas e tubérculos de joelhos expostos na grama poluída, correndo para cobrir o cavaleiro, o cavalo e a base das estátuas secretas dos bosques. Paisagens. Elas nos descrevem, por dentro, quando julgamos que as vemos com isenção ou as pintamos com aparente fidelidade…

Meu Deus, eu estava sonhando — com o lugar de sempre, aberto numa clareira sinistra. Em qualquer lugar da minha mente, esse lugar existe. Ele me espera, quando eu viajo — e volto. É uma ressonância dos ambientes estranhos colados aos conhecidos. Voga na minha cabeça, destroço de coisas vistas, ou entrevistas, quando uma mão acende uma janela numa casa comum e não em algum endereço suspeito, para fazer descer a “rampa de Port Said”, como diria T; E., prestes a ser esquecido (refiro-me ao outro Lawrence).

De qualquer forma, no plano das descrições rasteiras, a Europa também era verde — e não só ocre —, embora “verde” daqueles tons esbatidos do sonho dos céus de Eckhout, pintor bem comportado que o Brasil desestabilizou um pouco (como fará com Manet, duzentos anos mais tarde, no Rio do Entrudo entrado no sangue do pai do impressionismo). Há azuis de flores dos campos chamadas, por nomes curiosos, das vilas italianas de gerânios vermelhos em latadas, enquanto os tabuleiros franceses esplendem de insetos vagarosos sobre o amarelo dos girassóis que explodem nos quadros de quem? De Van?…

Vi uma professora de arte desesperada depois de uma visita monitorada de escolares a um museu com bom acervo do pintor de Arles e outros lugares. Por falar em Van Gogh, seus amarelos vivos estão virando ocre-Europa craquelado (ele não preparava bem as tintas, não tinha a paciência necessária, de modo que seus girassóis estão ficando cada vez mais escuros na tela grosseira sobre a qual o artista pintou com pinceladas fortes, torturadas, até “enlouquecer” de vez, como o vulgo gosta de acreditar a respeito do pintor que cortou não a orelha, na verdade, mas só um pedaço do lóbulo do aparelho auricular esquerdo)…

É assim que o pensamento vadio erra pelas paredes pintadas da mente, dentro de um avião. Não durmo neles — já disse? —, não consigo relaxar a dez mil metros do chão pintado de verde (“um quilo de verde é mais verde do que meio quilo”?), meus pensamentos erram do início ao fim do fim do vôo que, nesta aeronave inglesa, será no Rio de Janeiro. Onde esteve Paul Gauguin — o amigo de Van Gogh, o pintor do verde “descoberto” nas matas cariocas, quando aqui veio ter, num navio-escola. Paul tinha 17 anos, e registra “o excesso de verde” das florestas cercando a cidade. Com a mesma idade, Manet também esteve aqui, igualmente como guarda-marinha, a bordo do Havre-et-Guadaloupe, que ancorou na baía carioca, às vésperas do carnaval de 1849. Eu me lembrava da data e do nome do navio porque recentemente ouvira uma palestra intitulada “A passagem de Édouard Manet pelo Rio”. O conferencista sustentava que o donzelo aprendiz teria feito a sua iniciação com alguma mulata do tipo que, mais tarde, seria retratada em Négresse, a carapinha enrolada num pano da Costa, a bata branca e os brincos de pérolas, típicos das “baianas” (em carta enviada da capital imperial, Manet falava numa “escapada” — courir  une  bordée — para o irmão Eugène, a quem descreve negras “bastante bonitas”, ora nuas da cintura para cima, ora “vestidas com camisas e saiotes enfeitados com imensos babados”)…

Assunto para o olho socioantropologicamente malicioso dos Freyres das Casas-Grandes. Tema para minha cabeça distraída do pouso (que sempre me deixa mais nervoso). Forço-me a pensar numa coisa qualquer — Manet, no caso — e espero que as rodas transmitam a sensação de terra firme, logo a tocar no solo do que seria apenas uma rápida escala (eu esperava), com conexão quase imediata para o Recife visitado por pelo menos um bom artista estrangeiro com a missão de retratar a paisagem ao estilo flamengo, com tons escuros em demasia para o Nordeste das cores fundamentais explodindo sob o olho do sol: Frans Post.

O Cemitério dos Ingleses fica numa espécie de pequena ilha urbana cercada do tráfego que vem de uma larga e longa artéria chamada de Avenida Norte, seu fluxo fluindo para o bairro recifense de Campo Grande e a cidade de Olinda mais adiante.

O tráfego, intenso, contorna o quadrilátero murado dos túmulos de súditos britânicos sepultados ali desde o ano de 1714, quando o presidente da Província de Pernambuco doou um lote de terreno ao cônsul inglês no Recife, por ordem do Príncipe Regente de Portugal. Mais tarde ampliado (por meio da compra de terra anexa), uma capela foi edificada em 1852, e um portão de ferro da Fundição Aurora ainda range nos gonzos, ao ser aberto para permitir, ainda, alguns poucos enterros contemporâneos, no “British Cemetery” com a sua data indecifrável (MDCCXIV) para muitos passantes pela construção hoje vizinha de um prédio da Prefeitura (com um feio mural dedicado a Frei Caneca, e não ao general Dantas Barreto, como seria mais apropriado).

Passa despercebido aos pedestres mais próximos e também aos motoristas que nem suspeitam estar contornando um pedaço da história, quase na zona limítrofe das duas antigas povoações, cemitério em separado (e garantido pelo Tratado de 1810), segregado e distante da maré e do mangue, embora tenha vindo pelo o mar a grande maioria dos seus mortos, afinal abatidos, tão longe, pela foice onipresente, inevitável, constante no tráfego, nos hospitais, nas ruas e no interior das casas. Longínqua ou próxima, ela é um assunto a se evitar, se possível — e assim passam ao largo do silêncio das mortes antigas, de lábios empoeirados na divisão de tumbas perfeitamente ordenadas ao norte do centro da cidade.

De onde eu estava — no Arquivo Público, que dá para o rio cinzento não de plumas queimadas — você vai pela antes orgulhosa Rua do Imperador, no sentido da mão que faz o contorno do antigo Grande Hotel (hoje, um fórum jurídico), para seguir em demanda do Palácio das Princesas, no local onde ficava situado o palácio chamado das Duas Torres, no tempo do conde Maurício de Nassau, o homem do protojardim botânico das Graças, o Governador-Geral do Brasil holandês, governante cuja memória é cuidadosamente cultivada pelo Recife que gosta de ser associado ao nome de um aristocrata alemão servindo a uma empresa semicapitalista holandesa de exploração de colônias estrangeiras meio prósperas e meio selvagens. Tudo pela metade, cortado ao meio pelas águas indecisas de dois rios e muitas lagunas, Nassau concebeu uma cidade se ligando através de pontes entre as “ilhas” dos bairros que me aguardavam sem alteração alguma, exceto o aeroporto novo, rebatizado de – claro – “Gilberto Freyre” (não há como escapar dele: está agora vigiando as nossas chegadas e partidas).

Um grande jardim — com baobás e outras árvores seculares — aguarda o motorista que contorna a sede do governo, ou que vai pelo chamado bairro do Recife (onde a cidade começou), em demanda da ponte de Limoeiro que leva direto à via de contorno, para encontrar o cemitério cujo endereço, rigorosamente, é na Avenida Cruz Cabugá, bairro de Santo Amaro, mais ou menos no início da zona difusa que separa a planície do Recife dos altos de Olinda (outra marca de dualidade ou dupla personalidade da Capitania de Pernambuco).

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* “Rosebud”, a última palavra pronunciada pelo milionário de Charles Foster — personagem inspirado na figura real de William Randolph Hearst —, ganhou sua decifração final quando o roteirista Herman Mankiewicz esclareceu o escárnio que ela representa. Em vez do nome de um trenó — que Kane/Hearst perdera, na infância — “Rosebud” era o apelido dado por Hearst (o magnata real) ao clitóris da atriz Marion Davies, sua amante e companheira no castelo de San Simeon, por ele construído na Califórnia. A informação sobre o verdadeiro significado de “Rosebud” veio de uma amiga íntima de Marion, a estrela de A Caixa de Pandora, Louise Brooks. Tal explicação torna ainda mais interessante o personagem de Kane — cuja paixão por um trenó perdido nunca foi muito convincente para os exegetas da obra-prima de Orson Welles.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho