Abomino a mentira, porque é uma inexatidão.
Ricardo Reis
É difícil estabelecer uma data precisa para o nascimento de Ricardo Reis. Fernando Pessoa primeiro afirma que “Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma no dia 29 de janeiro de 1914, pelas 11 horas da noite. Eu estivera ouvindo no dia anterior uma discussão extensa sobre os excessos, especialmente de realização, da arte moderna. Segundo o meu processo de sentir as cousas sem as sentir, fui-me deixando ir na onda dessa reacção momentânea. Quando reparei em que estava pensando, vi que tinha erguido uma teoria neoclássica, que se ia desenvolvendo”.
Mais tarde, numa carta a Adolfo Casais Monteiro datada de 13 de janeiro de 1935, altera a data para 1912. No horóscopo que dele fez, situa o seu nascimento em 19 de setembro de 1887, em Lisboa, às 4h05 da tarde. Na carta a Casais Monteiro, altera a cidade natal de Lisboa para o Porto.
Fernando Pessoa considera que este heterônimo foi o primeiro a se revelar, ainda que não tenha sido o primeiro a iniciar sua atividade literária. Se, a julgar pela carta mencionada, Reis está latente desde o ano de 1912, é no entanto só em março de 1914 que o autor das Odes inicia a sua produção, desde então continuada e intensa, até 13 de dezembro de 1933.
Médico de profissão, monarquista — fato que o levou a viver emigrado alguns anos no Brasil, quando da instauração da República portuguesa — e educado num colégio de jesuítas, recebeu formação clássica e latinista, e foi imbuído de princípios conservadores, transportados para sua concepção poética. Domina a forma dos poetas latinos e proclama a disciplina na construção poética.
Ricardo Reis é marcado por uma profunda simplicidade de concepção da vida, por uma intensa serenidade na aceitação da relatividade de todas as coisas. É o heterônimo que mais se aproxima do criador, quer no aspecto físico — é moreno, de estatura média, anda meio curvado, é magro e tem aparência de judeu português (Fernando Pessoa tinha ascendência israelita) —, quer na maneira de ser e no pensamento.
É adepto do sensacionalismo, que herda do mestre Caeiro, mas, ao aproximá-lo do neoclassicismo, manifesta-o num plano distinto. Explica Fernando Pessoa: “Caeiro tem uma disciplina: as coisas devem ser sentidas tais como são. Ricardo Reis tem outra disciplina diferente: as coisas devem ser sentidas, não só como são, mas também de modo a integrarem-se num certo ideal de medida e regras clássicas”.
Associa-se também ao paganismo de Caeiro, e suas concepções do mundo nascem do estoicismo e de um “epicurismo triste”. Sua forma de expressão é rigorosamente latina, de acordo com sua formação, e chegou a afirmar que “deve haver, no mais pequeno poema de um poeta, qualquer coisa por onde se note que existiu Homero”.
Esta apresentação (embora incluída, em versão resumidíssima, numa orelha de Leyla Perrone-Moisés — demonstração, aliás, de puro bom senso editorial) está inexplicavelmente ausente no novo Poesia de Ricardo Reis, organizado por Manuela Parreira da Silva (Companhia das Letras, 230 págs.). Considerada, ao lado de Teresa Sobral Cunha, uma das mais profícuas pesquisadoras do espólio de Fernando Pessoa e autora de uma série de ótimos artigos sobre o fenômeno da heteronímia, é realmente incompreensível que ela tenha deixado de lado, numa obra que se pretende completa (ou tão completa quanto pode ser uma coletânea da superfragmentária obra de Fernando Pessoa), um memorial de Ricardo Reis.
Muito se tem discutido acerca da relação biografia do autor — compreensão da obra, e o consenso, aparentemente, é de que a primeira é absolutamente dispensável para a segunda. Ainda que se concorde — e há muita gente boa que discorda —, Fernando Pessoa é, necessariamente, uma exceção. A compreensão da obra pessoana passa obrigatoriamente pelo conhecimento dos heterônimos, fenômeno único na história da literatura.
O que se tem em Pessoa não é uma poesia múltipla, mas a relação dessa poesia com seus fictícios autores. O que se considera não é a individualidade de cada conjunto de poemas no todo da obra pessoana, mas Caeiro, Campos e Reis considerados como autores reais dos poemas que Pessoa lhes atribuiu. Como autores reais, seriam dotados de uma personalidade e de uma vocação cuja coerência se devia exprimir nos poemas que cada qual subscreve. Daí nasceu um “teatro”, que converteu os autores fictícios em criadores de poemas — quando na verdade os poemas são os criadores dos autores fictícios.
O que impede que a leitura de Ricardo Reis (ou de qualquer outro heterônimo) seja do tipo “a obra pela obra”, como se tem defendido, é o fato de que há só um poeta, autor de poemas de aparência diversa, que como tais devem ser tomados e compreendidos. Os heterônimos não têm outra realidade além da poesia que são; portanto, não pode haver uma leitura autônoma de cada uma dessas manifestações heteronímicas. Os heterônimos são a totalidade fragmentada, e conhecer apenas um deles é conhecer apenas um fragmento da obra.
Assim, Manuela Parreira da Silva perde duplamente a oportunidade de satisfazer um público que ela mesma pretende heterogêneo: o estudioso da obra de Fernando Pessoa que pretenda ter no Poesia um instrumento de trabalho dará logo falta da biografia, embora já não precise dela; o leitor não-especialista, interessado tão-somente na poesia de Ricardo Reis, estará sendo privado de uma das mais eficazes ferramentas para compreendê-la de fato.
Realmente uma pena que um descuido ameace ensombrecer um trabalho tão bem-cuidado. Poesia é um daqueles livros que se gosta de possuir não apenas por interesse intelectual, mas por puro deleite bibliófilo: com um cuidado gráfico que vem se tornando marca da Cia. das Letras, são 230 páginas de papel pólen caprichosamente impresso, encimadas por uma belíssima capa de João da Costa Aguiar.
Na recolha, um rigor no critério de fixação dos poemas que é raro ver no Brasil, ao menos fora das publicações acadêmicas. Quem conhece a obra de Ricardo Reis por meio das edições da Ática (ou das páginas de internet baseadas nela) irá se surpreender. Em alguns poemas, a diferença — causada por erros de leitura ou de transcrição, ou mesmo em função da ilegibilidade dos originais, quase todos manuscritos — é assustadora.
O mérito da organizadora é justamente este: não ultrapassar o tênue limite entre a decifração crítica e a adivinhação pura e simples. Manuela não hesita em pontilhar o livro de marcas de ilegibilidade ou dúvida. O texto, cheio de [.] e [?], torna-se muitas vezes frustrante, é verdade, mas é um preço pequeno a se pagar pela exatidão.
Outra boa surpresa do livro são as notas de rodapé. Na obra de Ricardo Reis, apenas 28 poemas foram publicados em vida de Fernando Pessoa — as Odes, sendo vinte publicadas no número 1 da revista Athena e oito em vários exemplares da revista Presença. Todos os outros são fruto de pesquisa no espólio do autor — a autora fixa um texto inédito — e de leituras críticas das edições anteriores, comparadas com os originais, muitas vezes manuscritos. A reprodução de um manuscrito, que consta do apêndice, dá uma boa idéia da dificuldade da tarefa.
O corpus dos originais é composto de fragmentos, rascunhos, frases soltas e poemas lacunares, versos que o autor apenas apontou ou que simplesmente deixou em branco. Mesmo nas versões menos fragmentárias, há várias marcas dubitadas, riscadas, sobrescritas, numa clara indicação de que Fernando Pessoa considerava aquela uma versão provisória do texto.
A orientação editorial mais comum nos livros ditos “de poesia” consiste em adotar como definitiva uma das versões do texto, normalmente a anterior às alterações indicadas, e ignorar todas as marcas de redação provisória. O que se tem, então, é um poema completo, fluido, apresentado como que em versão definitiva (embora nas edições mais rigorosas haja indicação de lacuna no original).
Manuela optou por informar ao leitor, em notas de rodapé, todas as ocorrências peculiares à gênese dos poemas, todas as intervenções que Fernando Pessoa achou por bem fazer na redação original dos textos, resultando, muitas vezes, em duas variantes tão distantes que acabam por se tornar dois poemas distintos.
O resultado é que, ao longo do livro, o texto “acontece” diante dos olhos do leitor, permitindo que cada um construa, à sua maneira, o poema. Compare.
A versão normalmente editada de um poema de 12 de setembro de 1930.
Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo,
Seja eu jovem por erro.
Pouco os Deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante.
Na primeira variante subposta indicada por Manuela, tem-se.
Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me baste.
Já que o não sou por tempo,
Seja eu jovem por erro.
Pouco os Deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante:
Que mais quero?
Que mais posso?
Na segunda:
Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me baste.
Já que o não sou por tempo,
Seja eu jovem por erro.
Pouco os Deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro os olhos e sonho
Cerro os olhos e aprazo-me
Cerro olhos: não pergunto
E a te crer
Me resigno.
A decisão sobre a versão definitiva do poema cabe ao leitor; essa uma das qualidades mais belas do trabalho de recolha da organizadora. Todas as notas e explicações, que por vezes sobrecarregam o texto, servem apenas para torná-lo inexato, impreciso, incompleto. O que Manuela nos dá é uma edição fidedigna da fragmentação pessoana, que privilegia a autenticidade do texto e nos dá a lê-lo em toda sua incompletude.
Ricardo Reis, o “Horácio grego que escreve em português”, inimigo das inexatidões, teria aprovado.