Alguém pergunta em inglês: “Para quem você está espionando?”.
Sam tenta virar a cabeça na direção da pessoa que falou. “Não sou espião”, diz. “Sou Samarendra Ambani, arquiteto e cidadão suíço.”
Está deitado no chão. Tiraram a venda de seus olhos. Mas suas mãos ainda estão amarradas nas costas e seus braços parecem adormecidos. Como se já não fossem seus braços, mas os braços de outra pessoa.
As pedras em que está deitado são pretas e grudentas. Uma substância pegajosa. Talvez petróleo. Tudo ali é escuro. Não há janelas. Com certeza deve haver uma porta, mas ele não consegue vê-la.
Pinga água, como se houvesse um vazamento. Uma torneira talvez? Ele escuta os pingos, mas não consegue ver de onde vêm. No teto, há algumas lâmpadas fluorescentes. Nem todas funcionam. A luz é escassa.
Um pouco adiante, numa cadeira, está sentado um homem de uniforme, de uns quarenta anos. O homem tem bigode. Um belo bigode. Bem-cuidado, o bigode sugere um alto grau de vaidade. Ele está com a maleta de Sam no colo e folheia a caderneta de Sam.
Sam se senta de pernas cruzadas, não sabe se há outras pessoas naquele recinto. Talvez haja e estejam se mantendo em silêncio.
Eles o revistaram e tiraram tudo dos bolsos do terno que não era seu, mas que teve de usar nos últimos dias.
“Como você se chama?”, pergunta o homem.
Sam já disse seu nome, diversas vezes, mas não tem certeza se já o disse também a esse homem. Parece que esse homem ocupa uma função importante. Ele irradia a calma de alguém com poder, provavelmente um oficial.
“Samarendra”, responde Sam. “Cidadão suíço.”
Ele não se cansa de enfatizar que é suíço. Essa é sua esperança. Se existe alguma esperança, está representada por seu passaporte suíço.
“Para quem você trabalha?”, indaga o homem.
Sam repara que ele tem um sotaque forte.
“Trabalho por conta própria”, responde Sam. “Sou arquiteto. Depois de me formar, abri meu próprio escritório. Junto com um sócio.”
O homem continua folheando a caderneta de Sam.
“O que é isso?”, pergunta subitamente. Ele mostra o esboço que Sam fez quando percebeu que deveria mudar um dos banheiros masculinos de lugar.
“Um esboço”, esclarece Sam. “O projeto mesmo está no meu computador. Para um teatro de ópera. Participei de um concurso para construir um teatro de ópera.”
Ele supõe que também ali é melhor não mencionar o nome de Hamid Shakir Mahmoud.
“E essas cruzinhas aqui”, aponta o homem, “são as bombas?”.
“As bombas?”, Sam ri. Ou melhor, finge que ri. As bombas.
“Estes serão os banheiros masculinos”, diz Sam, triunfante. “Eu queria mudar um dos banheiros masculinos de lugar. Me pareceu melhor.”
“Você é terrorista ou espião?”, pergunta o homem com um tom autoconfiante que soa ofensivo a Sam.
Sam muda de posição. É uma pergunta para a qual nenhuma resposta é possível. Por essa razão, ele se recusa a responder.
Agora, parece que o homem não está dando atenção a Sam. Concentra-se na caderneta.
“Já disse o que eu sou”, fala Sam, depois de algum tempo. “Já disse várias vezes, a diversas pessoas. Sou cidadão suíço e arquiteto.”
“Você é espião”, acusa o homem. Ele mostra um cartão de visitas a Sam. No verso, está escrito: “61security69”.
“E isso?”, pergunta o homem.
“A senha da internet”, esclarece Sam, “do casarão onde fiquei. Um dos seguranças me deu este cartão. Eles podem explicar tudo”.
“Quem trouxe você para cá?”
Agora ele terá de mencionar o nome. Sinceridade é a melhor opção. Afinal, não tem nada a esconder. “Hamid Shakir Mahmoud”, diz.
“Hamid Shakir Mahmoud.” O oficial sorri. Parece que ele conhece Hamid Shakir Mahmoud, e isso dá esperanças a Sam.
“Hamid Shakir Mahmoud me trouxe para Bagdá”, acrescenta Sam. “Para o teatro de ópera. Por causa de Puccini. Estou aqui para a construção de um teatro de ópera. O projeto está no meu laptop. Tudo pode ser esclarecido. O senhor tem que ver o meu projeto…”
“Hamid Shakir Mahmoud está morto”, interrompe o oficial. “Aquele cachorro não sofreu o suficiente. Você vai sofrer mais.”
O homem fala sem emoção ou alteração em seu tom de voz, como alguém em Zurique diria: “Amanhã o tempo vai mudar”. Por isso leva algum tempo até que Sam seja atingido pelo verdadeiro significado daquelas palavras. O significado da palavra “sofrer” e o significado da palavra “cachorro”.
Sam acredita que é crucial convencer o oficial de que é arquiteto. Arquitetos, em geral, não precisam sofrer. “Sou neutro”, argumenta ele. “Não tenho nada a ver com o conflito aqui. Só vim por causa da construção do teatro de ópera. Sou arquiteto, como já falei. Nós estamos a serviço da beleza e da funcionalidade. Não temos nada a ver com política. Forma e função devem se manter mutuamente em equilíbrio. Embora Fehmer tenha dito: ‘Primeiro a forma, depois a função’.”
Tenta falar como presume que o oficial pense que os arquitetos falem, mas o que diz resume, em linhas gerais, sua própria opinião.
“Então, a operação se chama Puccini”, conclui o oficial. “E você é o arquiteto?”
“A operação?” Sam balança a cabeça. “Puccini foi uma fonte de inspiração para o projeto. O compositor. Escutei sua música porque foi por causa de Puccini que Hamid Shakir Mahmoud quis construir um lugar em Bagdá para as pessoas irem à ópera. Para tornar Bagdá mais bonita, mais civilizada. Na minha maleta, há um CD de ‘Madame Butterfly’. Frank Lloyd Wright não conseguiu, mas eu tinha muita esperança de que Bagdá agora estivesse pronta para isso. Para a reconstrução, para a ópera.”
É imprudente falar sobre um homem com outro homem que acaba de chamá-lo de “cachorro”, ainda que esse homem seja a razão para Sam estar ali. Mas ele tem de se ater à verdade, mesmo que não acreditem nela. Trata-se de convencer esse homem, esse oficial, de sua inocência. Ele tem de sentir que Sam não está mentindo. Ele tem de entender, intuitivamente, que o homem que está diante dele com as mãos atadas às costas nada tem a esconder e não diz nada além da verdade.
“A operação se chamava Puccini”, diz o oficial, em um tom casual. “Nesse meio-tempo, já sabemos quase tudo.”
Ele tira o laptop de Sam da maleta e o abre.
“Quem é esta?”, pergunta o oficial. Mostra a Sam uma foto de Nina que está na tela. Nina junto ao lago de Lugano, num dia quente de outono. Tinham tomado o trem para Lugano pela manhã e, à noite, já estavam de volta a Zurique. Tinham jantado no trem. Um luxo decadente para alguém como Sam.
“Minha namorada”, responde Sam. “Ela se chama Nina.”
“Ela também é terrorista?”, indaga o oficial.
O pensamento é tão absurdo que Sam gostaria de dar gargalhadas, mas não consegue.
Como alguém pode pensar que Nina é terrorista? Nina, a terrorista. Dizer que é um absurdo seria um eufemismo.
Sam diz: “Ela ainda não sabe o que vai fazer quando se formar. Atualmente, faz trabalhos administrativos simples para ganhar dinheiro. Eu gostaria muito de falar com um funcionário de chancelaria da embaixada suíça. Tenho direito a receber assistência consular. Entendo que ainda há questões não elucidadas e talvez minha história soe estranha a seus ouvidos, mas tudo pode ser explicado, tudo pode ser esclarecido”.
O homem fecha o laptop. O aposento, vazio e escuro, repercute o som com um eco sinistro.
“Você é um cachorro como Hamid Shakir Mahmoud”, o oficial diz calmamente, mas também com visível satisfação. “Sua única esperança é nos contar tudo. De qualquer forma, você vai morrer. Mas há diferentes maneiras de morrer. Algumas agradáveis e outras menos agradáveis. Se você nos contar tudo, morrerá de forma agradável; do contrário, será bem desagradável.”