O homem que recolhia o tempo

Conto de Francisco de Morais Mendes
Ilustração: Ramon Muniz
01/04/2004

Numa velha sacola de feira, ele recolhia o tempo deixado pelos outros. Como fazia isso, não se sabe. O que se sabe é que, para ele, homem solitário, que vivia entre a casa e o serviço, a palavra “repartição” não designava apenas o local de trabalho. Cabia-lhe, como servidor público, cuidar das horas, repartir o tempo entre os servidores. Havia quinze anos executava com diligência a mesma tarefa: zelar pelo ponto, abonar as faltas justificadas, converter o excedente de horas em pagamento. O tempo era público.

Contudo, sofria de um mal sem remédio. Pressentia o correr dos dias, dos meses, dos anos, como uma subtração da vida. O tempo escapava-lhe enquanto acumulavam-se coisas por fazer. A perda do tempo é individual, lamentou.

À noite, em casa, sentado numa velha poltrona de couro, sentia às costas o peso de dois mil livros não lidos. E lia metodicamente. Olhando à esquerda, um infatigável atlas oferecia-lhe países por visitar. E ele mal saíra da cidade. À direita, centenas de obras aguardavam releitura.

Pensando constantemente no tempo, observava que boa parte do que se fala contém essa palavra vaga, sem peso, sem consistência. Certo dia, num corredor da repartição, ouviu de uma grávida que faltavam quatro meses para o bebê nascer. Então ocorreu-lhe que, durante a gravidez, ela deixava em desuso um outro tempo. O que primeiro pareceu-lhe apenas uma brincadeira, uma anedota, tomou a forma de idéia. Depois de algumas noites em que se pegava pensando na grávida, supondo que estivesse assaltado por uma paixão em todos os sentidos inoportuna, o assunto passou de idéia à teoria. Não era a grávida que o importunava. Era o tempo.

Formulou, então, a teoria dos tempos laterais, que correm simultaneamente na vida das pessoas. Pela última vez voltou a pensar na grávida, para explicar a si mesmo sua teoria. A vida segue num tempo, mas qualquer alteração, qualquer acidente põe em funcionamento um tempo que corre lateralmente àquele. Enquanto dura um período de gravidez, tomado como uma alteração, o outro tempo continua a passar, mas em desuso, um cão sem dono vagando por aí.

Durante alguns dias, recolheu o que chamou de amostras para a sua teoria. Há um tempo largado aqui fora pelas pessoas que baixam ao hospital. Há um tempo de ócio enquanto as pessoas trabalham. Esse tempo de ócio fica à espreita, aguardando que a pessoa deixe o trabalho, acompanha-a até o ponto do ônibus, e quando após um banho quente, a pessoa decide se liga a tevê ou coloca um disco para tocar, o tempo do ócio está pronto para seguir. Em outra circunstância, enquanto a pessoa mergulha a atenção no noticiário do rádio, fica desocupado o tempo da distração. Nenhum deles deixa de correr.

À noite, acomodado na poltrona, voltava a refletir. Era preciso recolher o cão sem dono. Ao outro, não faria falta. A ele, o livraria da aflição.

Na manhã seguinte, esteve mexendo no quarto de coisas abandonadas, e encontrou a sacola, que passou a carregar. Das grávidas, subtraía o tempo da não-gravidez. Dos colegiais em algazarra à saída da escola, recolhia variadas espécies de tempo. Do sujeito que lia no ônibus, recolhia o tempo de olhar pela janela. O mais surpreendente eram aquelas pessoas que parecem pensar em coisa alguma, absolutamente desligadas. Dessas, fluíam, ou melhor, jorravam tempos em profusão.

Voltara a ler sem ansiedade, sabendo que acumulava uma reserva considerável. Em pelo menos um momento, levantou os olhos do livro e pensou na imortalidade. Deu um leve sorriso, sem precisar recorrer ao espelho para encontrar o que supunha um rosto rejuvenescido. Voltou a concentrar-se na leitura. O cão encontrara o dono. O tempo, agora, não passava; vinha até ele.

Certa manhã, depois de ler no jornal sobre um sujeito condenado a 19 anos de prisão, foi tomado de grande ansiedade. Ocupado em capturar o tempo deixado no presente, não lhe ocorrera tocar num tempo futuro. Nem sequer havia pensado nisso. No entanto, o que vislumbrava era que aquele tempo podia ser recolhido de uma única vez. Tenho que capturar o tempo que ele deixa aqui fora, mas onde estará?, pensou, quase faltando-lhe o ar. Saindo às pressas com a sacola, sem saber exatamente onde buscar aquela fatia esplêndida de tempo, distraiu-se numa travessia e morreu, atropelado por um caminhão de mudanças.

Corroída pelo tempo e pelo uso, ficou a sacola jogada a um canto da rua. Os que olharam em seu interior, de algum modo sabiam que vazia não estava; era um engano dos olhos. Afastavam-se ao sentir uma espécie de sufocação. A que não sabiam nomear.

Francisco de Morais Mendes

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1956. É autor de Escreva, querida (1996), A razão selvagem (2003) e Onde terminam os dias (2011).

Rascunho