O homem de meia cidade

Conto de Whisner Fraga
Ilustração: Marco Jacobsen
01/03/2004

“e uma tróia perdida no meio da cidade que eu inventei para circular, além do círculo de giz não passo, porque criei a cidade contra a cidade, a minha cidadela excluindo a minimetrópole envergonhada, ilhado, pavorosamente ilhado…”
(Ronaldo Cagiano)

traição, ela acusa quando eu, volteando um hemisfério novo, galgando traumas com a astúcia de minha cólera, irrompo num domínio de geometrias irregulares, bradando agitado: como?, quando?, e acirramos nossas discórdias, dois amantes luxuriosos, meu bem, grito, ajoelhado rente à linha, esse marco imaginário que me impus, margeando prédios como lambesse de longe a chaga de um ato consumado, sua ressurreição.

(nervosa) enfurecida vomitando agonias pelo carril denteado de suas entranhas férreas, eu: o seu depósito, lixão à mercê da própria decadência: eu: atalaia avistando emboscadas, paranóia no encalço da cabeça fraca, de tanto penar, vaguear, perder-se pelos labirínticos logradouros dessa meia cidade insana. digo meia porque é o que há, o resto perdi num átimo, embora os avisos da chegada desse instante fossem exaustivamente excessivos.

ela: ela: ela: é urgente repetir para que algo se estremeça, mesmo que memória, ou se funda, embargando a fissão iniciada, quando se deu não havia: preparação, danos assim, praticamente irreparáveis, não há cursos para eles, terapias, sempre a justa saia, cueca à mão: foi assim, ela se foi: helena.

quem ela?, quem de vestido, bruxuleante e ansiosa tez e alva, tons castanhos de cabelos longos, olhos de me perdoar, quem de você que nós arrogantes amamos se dois de um mesmo e ainda amenos quando eu, tremulando de dizer proibições a vejo amparada por uma dor que tudo redime.

perguntem-me de quê a morte, quais intrigas vitimaram suas células, que meandros ou nomenclaturas estavam por trás do estrago e posterior desintegração, não, sobre isso nada saberei responder, é assunto inútil. apreciaria falar de seu último penteado ou mesmo da palavra também derradeira ou dos passos sorriso sonhos e de coisas práticas saberei precisar apenas o cruzamento em que tudo se deu, claro a cor do semáforo no instante da perda ou.

posso ter hoje quarenta, cinqüenta, a tal ponto embrenhado nas insignificâncias da vida que seria inútil me explicar, tentar no rol das importâncias ordinárias uma resposta para os que me tomam por louco. por isso o menos falo, também porque ela me entende o bastante para que não haja necessidade de acrescer diálogos ao meu cotidiano. desde então os flashes, a fulguração mais ou menos tépida daquilo que entretanto jamais nomearia de alucinação. sei que é ela se insinuando, usando helena como subterfúgio, mostrando o que teria lá do outro lado, não, minha cara, eu já sei o que existe em todos os pontos das coordenadas euclidianas. não se fie nesta ingenuidade arquitetada com cimentos de medo.

chegarei à margem como de costume, estancarei meus passos diante do cruzamento: pronto: para a revanche, para a sua fúria prestes a verter venenos ousados, serei a mais sólida vontade, de concreto e aço, não, desde aquele dia que tenho coragem, enfrentei heroicamente meu medo, travamos injusta batalha: não venci, não era para ter triunfos ou derrotas: mas tendo subjugado a mim mesmo, exigiu meu cérebro um preço e a ele sou fiel até o fim: e a cidade? a cidade? a cidade? confusa geografia a me cuspir…

há o cruzamento e dizem que de lá, do outro lado, existe um manancial de maravilhas, que tantas e tão grandes novidades brotam fossem milagres, mas não me iludo, sei que não me posso vencer, estender o meu domínio além dessa banda de cá: venha com prêmios, recompensas, promessas, nada disso me corromperá.

daí a fúria, o engendramento de inúmeras artimanhas e sim, sei o que ela quer e o que quer desconfio que somente eu posso lhe dar, por isso as novidades, uma vitrine nova, estampando meus livros preferidos em edições faustosas, mesmo lojas expondo sua lingerie preferida, esse o ardil que quase pôs tudo a perder, porque sei da impossibilidade de atravessar, mas saberá assim tão arraigadamente o meu raciocínio? que desconfio eu dessas coisas funcionais, da possibilidade do impossível?

desarranjo se em suas ruas, mesmo um terreno, endereço certo, erigiram um templo, lá onde vertem desesperos em pardos de prece,

percebendo que essa imponente e pútrida árvore procria seus frutos robustos, e que as polpas podem nutrir o bom ou o mau e que aqui, curvo-me frente a uma presença incerta, auferindo os grãos de uma ceifa aleatória, o que lhe fiz?, concordando que praguejar não me trará de volta,

protelando golpes em um deus de cerâmica, ou o barro covarde com o qual me tramaram, ambos mesma matéria, puto, extravaso: por que helena?,

por fim os flashes. que perfídias rondam a sua vontade para descer a tanto? dos seus tijolos ela expele um jato que em muito se assemelha àquela que se foi, helena, mesmo em poses sensuais num canto de muro, outrora implorando (sim, ela fala) que vá ao seu encontro: ela sempre do outro lado, da metade que já não conheço a não ser de uma visão breve, sem entretanto de pisar ou apalpar.

é verdade, todos os dias vou até lá, rotina que devo seguir à risca, outro resquício da minha luta, helena: a cidade percebe tudo, estou sujo até os ossos do seu encalço; e ela pode de mim tentar o que quiser: não vou ceder, sei da impossibilidade de lhe entregar o que deseja, sei contudo e também que não há muito mais o que suportar além da certeza que ladra ao lado da ânsia que experimento ao pensar que posso colocar tudo a perder e para isso basta um aceno seu, feito de segredo nosso, de modo que ninguém (?) mais compartilha, quem sabe o demônio?, ou o meu fim, não fosse o que se tornou agora a minha mente, um antro de impossibilidades arrasando o que antes era apenas vôo. todavia tornou-se mais: uma furna de novidades, onde talvez a sua reencarnação ou para ser mais exato, a sua literal concretização: ela, me diz que você, helena, tornou-se concreto, espalha-se por muros, prédios, lares e então devo ceder, ousar o passo a mais ou que cresçam novamente as asas e que elas sim, me conduzam.

ela que inerte em seu caixão implora uma visita que anseio por fazer, um assunto que retomaremos, resolvendo assim o que de fato, a não ser, sim, truque, quiçá um exército com armas avançadas, cada soldado a ousar uma pontaria apurada, por que ela, compreendo, me quer a seu lado e então meu medo de retornar ao que de mais puro, não haveria temor se simples o final, e um encontro planejado descerraríamos os instintos de uma dura sobrevivência, amparados pelos vícios do amor canhestro, mas a dúvida, o que ela deseja, helena?, por que eu?, de fé abaulada que em rodopios me faz pensar o que de deus para a mágoa que retomo cada instante redobrada, servo revoltado com pagamento injusto, que tanto me dediquei que mereço semelhante recompensa?, tento o cérebro para uma guerra iníqua, a ferrugem tragando meus fuzis, o que de maldito naquele carro que desobedeceu um sinal correto, ajustado por leis eletrodinâmicas, trafegando deliberadamente na linha de seu peito, quando ela para mim, o que de culpa, corria voluptuosa adensando sorrisos numa face que era minha remissão, percebi que jamais, palavra fundida, eu-jamais, o corvo a repetir, entoando cantos irônicos, eu-humilhado, eu-torpe, eu-tudo exceto você.

quem para atender ao chamado?, recorrer às garras que mesmo de unhas horrendas sabe acarinhar?

você é a cidade, helena?, e o que me resta?

o que desejam?

mesmo assim, tão rígido e frio, quereria-os (cimentos e tijolos) como colo para mim.

aí reside a minha fragilidade e então preciso de uma vontade tesa para não deliberar ultrapassado o querer anterior saindo em debandada contra a decisão que tomei: não ser o que sei, poderia me tornar hoje.

ela joga sabiamente comigo, maneja as peças com experiência secular: saberemos disso quando, helena, eu sair em disparada rumo ao seu regaço

(ou)

disfarçar com um grito o estampido rouco de um disparo à queima-roupa

(e)

aqui do quarto, bairro, cidade?, espírito engolfado, vejo-me confinar em suas vísceras, ingênuo, recluso em um lar que não passa de uma fração de seu território, o corpo metido num linho charmoso, tons cinza para (seu?) dia vermelho, linhas delimitando excluindo agregando passos certeiros moradia definitiva, helena, essa fatalidade que nos cingiu, agora compreendo o quão vigiado, e que há um vigor brotando desse fruto novo, empenhados na militância de uma ciência que me tem como cobaia, irei ao seu encontro, helena, o mais rápido que puder.

Whisner Fraga

Nasceu em Ituiutaba (MG), em 1971. É autor de As espirais de outubro (2007), Abismo poente (2009), O que devíamos ter feito (2019), entre outros. Tem contos traduzidos para o inglês, o alemão e o árabe. É responsável pelo canal Acontece nos livros (YouTube), em que fala sobre obras da literatura contemporânea.

Rascunho