O homem comum

Conto inédito de Ricardo Azevedo
Ilustração: Mello
01/06/2023

Alguém me perguntou se era difícil desenhar um homem. Sou desenhista há muitos anos. Disse que era fácil. A pessoa então me perguntou quanto tempo levaria para fazer o desenho. Eu quis saber que tipo de homem a pessoa queria. A resposta foi: um homem comum. Era sexta feira. Respondi que na segunda à tarde entregava o trabalho. Senti nos olhos de meu interlocutor um misto de espanto e curiosidade. Sacudi os ombros dentro de mim. Não sou do tipo que perde tempo tentando descobrir o que os outros imaginam. Combinamos um preço pelo desenho, nos despedimos e vim-me embora. No resto do dia tive uma série de coisas para resolver por isso não pensei mais no assunto. Sábado, depois de tomar café e ler os jornais, fui para o escritório. Pus um papel branco na prancheta e fiquei pensando com o lápis na mão. Precisava desenhar um homem comum. Um sujeito como um outro qualquer. Fiz o desenho de um homem de pé com as mãos no bolso numa posição relaxada, bem à vontade. Olhei o desenho. Tinha utilizado traços rápidos e esquemáticos. Não, de fato aquilo não era um homem. Era um boneco. Um esquema tosco. A caricatura de um homem. Resolvi partir para outro desenho. Obedeci a certas regras de proporção para construir o corpo. Cuidei melhor da posição das mãos e dos pés de maneira que ficassem naturais. Coloquei a musculatura certa nos braços e nas pernas. Tomei cuidado com a posição dos ombros, a direção da coluna vertebral, o ângulo da bacia. Como se tratava de um homem, tomei cuidado para a bacia ser menor que os ombros. Trata-se de uma praxe. Se o desenho fosse de mulher, teria que fazer o contrário. Desenhei um rosto com traços convencionais, quer dizer, obedecendo certas proporções, olhos, testa, nariz, boca, queixo, comuns nas esculturas clássicas, gregas e romanas e depois, até hoje, disseminadas por aí. O desenho não ficou mau. Parecia até esses modelos que a gente encontra em livros que ensinam a desenhar. Entretanto… tenho trinta e sete anos e nunca vi um homem como os homens dos livros de desenho. Tudo parecia certo, cada coisa estava no seu devido lugar, mas o resultado era algo teórico. Desumano. Um ideal de homem, não alguém de carne e osso. Não um homem comum. Deixei o desenho de lado e peguei uma revista. Comecei a observar as fotos de pessoas espalhadas pelas páginas coloridas. Tentei encontrar nelas algum ponto convergente. Mais dúvidas começaram a surgir em minha cabeça. A questão da idade, por exemplo, foi uma delas. Que idade tem um homem comum? Um menino, claro, ainda não é um homem. Um jovem é um homem? Observei várias fotos de jovens de dezoito aos vinte e poucos anos. Me lembrei também de jovens que conhecia pessoalmente e até de mim mesmo aos vinte anos. Desenhar uma pessoa dessa idade pode significar tanta coisa! Dependendo do seu jeito, do olhar, o seu ar, suas roupas, cabelos e tudo mais, vai representar um universitário, um trabalhador, um marginal, mais do que um homem. Muitos jovens hoje em dia usam tatuagem. Um homem tatuado não seria um homem comum. A imagem de um jovem, além disso, pode transmitir a ideia de modernidade ou de contestação, coisas que levariam a um homem muito específico. Pode também dar a ideia de um filhinho de papai. Ou de um sonhador em busca de si mesmo. Todos os homens estão em busca de si mesmos. Os jovens, porém, costumam dar a sensação de que estão procurando coisas demais. Complicado desenhar um jovem e pretender que sua imagem signifique a de um homem comum. O mesmo acontece com os velhos. Desenhar uma pessoa com cabelos brancos, pele enrugada, corpo, olhos, mãos marcadas pela idade e pretender que essa imagem signifique um homem comum… Estaria mais para um aposentado, um avô e, dependendo da imagem, um homem à espera da morte. Não. Definitivamente. A figura de um senhor de idade não representa a ideia de um homem comum. Tudo isso limitou um pouco mais o trabalho que pretendia fazer. Um homem comum talvez seja alguém que esteja entre os 30 e os 50 anos de idade. É um período de tempo bastante extenso, mas sei lá. Voltei a examinar o desenho que tinha feito do homem todo cheio de proporções que parecia aqueles modelos dos livros que ensinam a desenhar. Lembrei que quando estava fazendo o desenho houve, durante uma fração de segundos, um mal-estar dentro de mim. Agora a coisa tinha ficado clara. Tinha desenhado um homem branco com traços europeus. Aquilo sem dúvida era um tipo de homem. Mas havia tantos e tantos outros. Refiro-me a diferentes etnias. Como encontrar uma etnia comum? Como definir o homem comum que pretendia desenhar? Por que não desenhar um negro? Um tipo asiático. Um mestiço? E mesmo falando em brancos, como escolher entre altos e baixos, fortes e fracos, morenos, louros, ruivos, delgados, atarracados? Como definir um homem comum sem definir sua etnia? Senti um certo pânico dentro do corpo. Lembrei de um desenho que tinha feito anos antes. Uma ilustração para um livro infantil. O texto falava de uma cozinheira. Desenhei uma negra bonita e risonha. No fundo, uma janela de cozinha. Quando o livro foi publicado, soube que houve gente que julgou o desenho racista. Por que não uma empregada branca, perguntavam essas pessoas. Nunca fui racista, mas era uma pergunta válida. Afinal, a tradição de os negros serem empregados vem do tempo da escravidão. Um desenho de um empregado doméstico negro hoje, parece reforçar a ideia de que negros nasceram para ser empregados. Por outro lado, desenhar uma empregada branca seria perfeitamente possível pois empregadas domésticas existem de todos os tipos, cores e tamanhos. A questão de fundo, na verdade, talvez fosse discutir a existência da pobreza, do subemprego, a falta de estudo, a falta de oportunidades e a exploração de mão de obra barata, mas isso não tinha nada a ver com o assunto. Um desenhista é apenas um desenhista. Tem que descer do muro e assumir suas escolhas. Tomei uma decisão. Vou desenhar um homem comum branco por um único motivo. Eu mesmo sou branco. Um homem entre vinte e cinco e cinquenta anos branco. Com que roupa? Essa questão que, em princípio, parecia se resumir a calça, camisa, meias e sapatos, logo se revelou mais intrincada. Dependendo do tipo de calça, camisa, meias e sapatos, o homem vai parecer rico ou pobre. Baita complicador. Se ponho terno e gravata passa a ser executivo, patrão, uma autoridade qualquer. Ainda mais se for branco. Não posso, claro, vestir o homem com uniforme. Faço alguns esboços e tudo fica mais difícil. Há roupas que querem dizer uma profissão. Outras indicam que a pessoa, além de rica ou pobre, é moderna, conservadora, tem espírito livre, é tímida, descolada, espalhafatosa, praticante de esportes, intelectual. Que roupa usa um homem comum? Uma ideia um tanto desesperada me passa pela cabeça. Em princípio, um homem é um animal e tem um corpo, ponto. Pra quê roupas? Resolvo desenhar um homem nu. Novas e muitas dificuldades surgem no ar. Elas de novo remetem ao livro que ensina a desenhar. Primeiro, a questão do tipo de corpo. Se faço um homem muito atlético ele fica específico demais. Muito gordo ou muito magro, idem. Faço um corpo nem gordo, nem magro, nem forte nem fraco e, para me garantir, ainda coloco umas gordurinhas na região da barriga. Desenho braços pouco musculosos e pernas ligeiramente tortas. Examino meu homem comum. Realmente, é difícil. Vem a questão do rosto. Que tipo de cabelo? Que tipo de penteado? Rabo de cavalo? Um homem careca pode representar um homem comum? Com bigode ou sem bigode? Sobrancelhas grossas ou finas. Barba por fazer? Cavanhaque? Fora tantos detalhes, um homem nu apresenta outro aspecto particularmente complicado: o pênis. Veio a questão: desenhar o homem meio de lado, encobrindo o pênis com a perna? Achei uma imagem falsa. Desenhar um homem pelado comum de costas, nem pensar. O pedido foi desenhar um homem comum. Todo o homem tem pênis. O jeito de seu pênis já é outra história. Pequeno demais, não me parece representar um homem comum. Muito grande também seria um exagero inútil. Decidi desenhar um pênis tamanho médio. Um homem de vinte e cinco a cinquenta anos, branco e nu portador de um pênis de médio porte. Experimento o desenho. Fica um pouco agressivo e, ao mesmo tempo, um tanto desajeitado. Uma imagem parecida com as desses livros didáticos que pretendem revelar os segredos da sexualidade, posições para praticar o coito e coisas assim. Fiquei na dúvida se um homem pelado seria uma boa representação de um homem comum. Cheguei à conclusão que não. Minha tendência foi vestir o homem com roupas do tipo calças de brim, camisa branca e suéter cinza, tudo muito discreto. Ficou uma imagem de alguém nem rico nem pobre, uma pessoa da classe media seja lá o que isso for. Havia ainda a questão do caráter do homem que tentava desenhar. Um homem tem uma certa maneira, tem um ar, um jeito de ser. Qual seria o espírito de um homem comum? Que tipo de sentimento sua imagem transmitiria? Não poderia ser sério demais. Alegre demais também não. Dependendo do jeito de olhar e da posição do corpo, pode parecer um homem mais, ou menos, animado. Com o peito estufado, cabeça erguida, posição ereta, por outro lado, poderia dar a ideia de ser alguém convicto demais. Ou ingênuo talvez. Até meio idiota. Ou arrogante. O que uma figura desenhada transmite é algo difícil de controlar. Como desenhar simplesmente um homem comum à vontade? Decidi buscar uma posição de corpo nem rígida, nem relaxada demais, um rosto com um leve, quase imperceptível sorriso, um olhar meio vago, mas tranquilo, mais caloroso do que frio, mais próximo do que distante. Mergulhei no trabalho com todas as minhas energias. Varei a noite de domingo para segunda desenhando direto. Abandonei várias tentativas pelo meio. Fiz, refiz, apaguei, recomecei. Consultei outras revistas e livros com imagens de pessoas. Pensei em mim mesmo como um homem comum. Dei por encerrado o trabalho no começo da tarde. Sabia que meu trabalho não estava satisfatório. Sei que poderia ter ficado melhor. Sem dúvida haviam mil outras alternativas. Foi o que pude fazer. Coloquei o desenho num envelope de papel pardo, tomei banho, comi alguma coisa e fui ao encontro do tal sujeito. Ele me recebeu em seu escritório. Após os cumprimentos, nos sentamos em duas poltronas confortáveis. Não parecia ter muita pressa para ver o trabalho. Antes de abrir o envelope, conversamos sobre vários outros assuntos. Era um sujeito de meia idade, ligeiramente calvo, com idade indefinida. Vestia-se com discrição, paletó, gravata e tudo o mais. Acabei falando do desenho. Contei a ele que tinha sido bem interessante fazer o trabalho. Confessei que, no início, tinha dito que seria fácil desenhar um homem comum, mas não tinha sido. Fiz um resumo das principais dificuldades e dúvidas que tinham me assaltado e, enfim, mostrei o desenho. O homem examinou o desenho com grande atenção. Depois me encarou demoradamente. Em seguida, levantou-se e começou a se despir. Fiquei paralisado. Debaixo daquelas roupas, calça, camisa, paletó, surgiu o corpo de uma mulher. Um maravilhoso e atraente corpo de mulher. Seios delicados e rijos. Braços, ombros, coxas foram pouco a pouco se desnudando na minha frente. Por fim, a mulher retirou de seu rosto a máscara de borracha. Ela era jovem. Tinhas olhos brilhantes e úmidos, cabelos longos e negros. Sorriu para mim. Tentei dizer qualquer coisa. Ela me impediu com um gesto, como se dissesse que não valia a pena falar naquele momento. Em seguida, aproximou-se e sentou-se no meu colo. Encostou os seios no meu peito. O corpo dela era leve. Às vezes sussurrava qualquer coisa em meu ouvido. Abracei-a com cuidado. Rimos espantados silenciosamente.

Ricardo Azevedo

É escritor e desenhista com vários livros publicados, entre eles, Feito bala perdida e outros poemas (Ática, 2007); O motoqueiro que virou bicho (Moderna, 2012); Caderno veloz de anotações poemas e desenhos (Melhoramentos, 2015) e Trago na boca a memória do meu fim (Ática, 2019).

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