O herdeiro

Conto de Miguel Sanches Neto
01/11/2002

O avião pousou na pista irregular, uma esplanada vermelha que servia também como campo de futebol e ponto de parada para os circos. O piloto nem desceu. Deixou-me, deu a volta e decolou. As hélices fizeram uma imensa nuvem de poeira que envolveu tudo. Quando pude enxergar novamente, o avião já tinha desaparecido atrás das montanhas, restando apenas seu rastro sonoro.

Fui caminhando até o velho casarão da minha infância. A cidade já era pequena, um pouco maior do que agora, mas contava com algumas ruas calçadas e com casas novas, de madeira. Encontrei a valeta de erosão cortando a rua principal. Na época ela tinha apenas um metro de fundura, mas não havia a ponte de concreto. A gente a cruzava sobre uma velha ponte de madeira, improvisada. Era a mesma erosão de minha infância, vista trinta anos depois, mas muito mais assustadora. Tudo tão conhecido e desconhecido. Por isso eu caminhava lentamente, tentando me acostumar. Só tinha uma certeza: iria tomar conta das terras de meu pai.

A casa da fazenda era a mesma de outrora. Ficava a uns mil metros da igreja. No fundo, o pai construíra uma mangueira, onde, antigamente, pela manhã, se tirava o leite das vacas. A casa e a mangueira são ligadas à cidade e à fazenda — que é a maior da redondeza. Uma vez tentaram construir uma estrada de ferro que passaria por Peabiru, em direção à capital, mas o pai fez um movimento contra, alegando que isso só traria aventureiros.

Em casa, encontrei apenas a velha cozinheira que, reconhecendo no homem de hoje o menino que ninara, me abraçou chorando.

Era um santo homem, não devia ter morrido assim.

Já me conformei. Agora é preciso preparar o velório.

Vai ser aqui mesmo?

Olhei demoradamente a casa. As paredes estavam imundas, marcadas por fezes de mosquito; os móveis não passavam de trastes; o chão da cozinha fora feito de barro batido e o fogão de tijolo já perdera o reboco. Pairava no ar um forte odor de restos, de detritos de algo que eu não consegui identificar.

Não. Vou providenciar um lugar melhor para receber os amigos do velho.

Faça aqui mesmo, Eleutério. Este povo é muito ingrato — a velha tentava me convencer, enxugando as lágrimas com as pontas do avental.

Onde está o corpo?

No necrotério.

Desde quando?

Ontem à noite.

Eu tinha que providenciar o velório logo. Olhei o relógio, eram dez da manhã. Dona Ana percebeu e disse:

Não se preocupe, Eleutério, ele não vai feder.

Cumprida a sua obrigação de chorar o velho, ela já falava mostrando toda a sua crueldade. Fitei mais um pouco a casa, depois tirei algumas notas graúdas do bolso e entreguei a ela, recomendando que deveria preparar bastante comida para servir durante o velório.

Mas…

Não tem nada de mas, Dona Ana. Bastante comida e bebida para as pessoas que vão passar a noite velando o corpo.

O senhor não devia jogar dinheiro fora!

Dei-lhe as costas e saí para ver o coronel.

O secretário do hospital apresentou-me as contas, que paguei sem conferir. Em seguida, conduziu-me ao necrotério, que ficava nos fundos do hospital. O coronel estava sobre uma mesa de azulejos encardidos e vestia um pijama puído. A barba imensa. Não, aquele não era o pai de minhas recordações. Comecei a me sentir mal, preso naquela sala fria. Notando meu desconforto, o secretário veio em auxílio.

O senhor já contratou o serviço de luto? — perguntei, fingindo uma voz inabalável.

Não.

Mas como?

Estava esperando o senhor chegar.

Agora não adianta discutir. Onde fica a funerária? — animei-me, achando um motivo para sair do necrotério.

O senhor vai ter que arranjar uma em Campo Mourão.

Aqui não tem nem uma merda de funerária?

Tem, mas os donos estão viajando.

São uns irresponsáveis!

Ninguém sabia que o coronel Ângelo ia morrer, concluiu o secretário.

Esta discussão era pura perda de tempo. Saí e fui até a praça, onde tomei um táxi, e segui para a cidade vizinha. Acertei com um serviço de luto e antes da uma da tarde estava de volta.

O táxi me deixou na casa do Padre Antônio. O sacristão, sentado atrás de uma escrivaninha imunda, me atendeu. Quando comecei a falar sobre a missa e sobre o aluguel do salão paroquial para velar o corpo, fui interrompido.

O padre está rezando missa lá pras bandas de Ouro Verde. Só volta na sexta-feira.

Nada funciona nesta cidade, nem Deus!

O salão paroquial eu posso alugar, mas o senhor deveria velar o corpo em casa.

O salão é o único lugar decente aqui.

Isso é verdade.

Paguei o preço que o sacristão estipulou e saí. O coronel não se importaria com o fato de não ser abençoado. Nunca gostou de igreja. Caminhei lentamente pela rua, os preparativos estavam prontos, e fui parar num bar de mulheres. Nas horas de desânimo, eu tinha que procurar prostituta. Havia duas atrás do balcão e nenhum freguês. Sentei-me numa mesinha de lata e fiquei ouvindo o som muito alto do rádio. O sol que entrava pela porta revelava a finíssima camada de poeira que ia assentando sobre tudo, silenciosamente. Era um trabalho contínuo que não deixava ninguém em paz.

Pedi alguma coisa para comer. Fazia mais de doze horas que não colocava nada no estômago. A mulher mais velha, toda pintada no coração daquela tarde suja (o que lhe dava um ar de cansaço), trouxe-me dois ovos cozidos, alguns pedaços de lingüiça e um pãozinho. Pedi também uma garrafa de cerveja.

Só tem quente. Minha geladeira quebrou.

Pode ser.

Quando recebi a cerveja, fiz um sinal para que ela se sentasse.

É muito triste comer sozinho.

Também acho.

A Gorda (como passei a chamá-la) colocou uma cadeira ao meu lado e começou a beber. Tomamos quatro garrafas de cerveja quente e, quando ela foi buscar a quinta, trouxe um bife malpassado.

Gosto de carne assim, eu disse.

Seu pai também gostava.

Você se dava bem com ele?

Não… Mas passamos muitas horas juntos.

Posso dizer que não conheci meu pai. Trinta anos separados…

E não precisa conhecer agora.

Comi o bife e tomamos mais uma cerveja. Do outro lado do balcão, lavando os copos, a moça me olhava.

Vou ao banheiro — falei, enquanto me levantava. — Bonita a sua amiga.

É minha filha. E está grávida.

E eu de luto. Fazemos um par e tanto.

A Gorda foi conversar com a filha e eu peguei o rumo da privada, toscamente erguida no fundo do quintal. Ao voltar, me encontrei com a moça no meio do corredor. Nos abraçamos e fomos para um quarto. Ela era magra e a barriga não estava muito grande. Não devia ter dezessete anos e nua parecia uma menina. Tirei toda a roupa e me deitei com ela, tomando cuidado ao abraçar aquele corpo infantil. Fizemos amor com alguma dificuldade e depois, no momento em que se limpava, me disse:

É a primeira vez desde que descobri.

Se eu ficar por aqui não será a última.

Ela me olhou e sorriu. Era uma menina bonita e meiga. Pulei da cama e fiquei alisando sua barriga, enquanto ela tentava se vestir. Saímos juntos, mas me adiantei até a Gorda para pagar a conta.

Quanto devo?

Nada.

Mas isso aqui é um bar ou uma casa de caridade? Assim vou acabar ficando freguês.

Seu pai tinha crédito aqui. Eu abro uma conta para você.

O velho era mesmo o dono da cidade — falei com ar de gozação.

E agora tudo o que era dele é seu.

E isso é bom ou ruim?

Depende de como você encara as coisas.

Me despedi e fui para casa tomar banho. Era suave a claridade do entardecer. Um veículo passou levantando uma espessa nuvem de poeira que acentuou ainda mais a vermelhidão do poente. Na velha casa, encontrei Dona Ana preparando a comida. Tudo estava mais bagunçado ainda. Havia um cheiro adocicado de terra que me fazia lembrar da infância. Só que, outrora, era um odor diferente, de poeira assentada e não revolta.

Tudo aqui está abandonado.

Desde que você e sua mãe se foram, o coronel nunca mais cuidou de nada. Foi vendendo as vacas, uma atrás da outra, até a fazenda ficar deserta. Só não foi invadida pelos sem-terra porque todo mundo tinha medo dele. Mas agora você vai ter muitos problemas.

Pretendo vender metade da terra para cultivar o resto.

E quem você acha que vai comprar esta terra maldita, cheia de praga e erosão?

Dou um jeito. Tenho um pouco de dinheiro também. E aqui sempre dá para começar do nada. Não era isso que o coronel dizia?

Era. Mas passou trinta anos rangendo rede, sem vontade de recomeçar.

Iniciou criando porcos e fez uma fortuna.

Isso era o que ele dizia.

E se dizia só pode ser verdade — comecei a ficar entusiasmado (o efeito das cervejas?), tinha que recuperar trinta anos.

O velho, apesar de seus defeitos, foi um grande homem.

Um grande homem não morre de enfarto enquanto está cagando numa privada imunda. Isso foi castigo de Deus.

Ninguém pediu sua opinião, Dona Ana.

Desculpe, Eleutério.

Quando terminar mande seu filho levar a comida ao salão.

Sim, senhor.

Tomei um banho, vesti o terno preto que tinha comprado às pressas para o velório e fui para o salão paroquial. O corpo do coronel, já dentro de um caixão de luxo, estava também com um terno novo. A barba e o cabelo foram aparados. O rapaz da funerária tinha providenciado o necessário. Não se esquecera das 100 cadeiras de palha ordenadas em círculo. O alto-falante da igreja anunciava o velório entre músicas sacras. Tudo estava pronto. O rapaz me disse que voltaria à noite, para velar o corpo comigo. Dispensei-o daquela obrigação, bastava chegar antes das sete da manhã e não esquecer do ônibus, como estava combinado.

Quando escureceu eram 18 horas e eu ainda estava só. A comida chegou e foi colocada na cozinha do salão. O filho de Dona Ana permaneceu um minuto na frente do caixão, fez o sinal da cruz e se foi. Fiquei novamente sozinho, apenas com as recordações.

A mãe me vestia com uma pressa medonha e eu não entendia bem aonde a gente iria. Era muito tarde, a cidade toda já havia se recolhido. Mas ela me ajeitava como uma louca que acorda no meio da noite e planeja viagens impossíveis. Mal me vestiu, me pegou pela mão e saiu me arrastando pela rua. A lua cheia facilitava nossa marcha pelos caminhos esburacados. Mamãe ia a passos largos e eu tinha que multiplicar meus passinhos miúdos para conseguir acompanhá-la, pois sabia que, se não fizesse assim, ela me arrastaria. Os cachorros ladravam perto da gente sem a intimidar. Ia decidida. Me intrigava a sua resolução de sair tão tarde, quando a cidade estava completamente morta.

Depois de algumas quadras de penosa caminhada, comecei a reclamar de cansaço. Queria parar, mas mamãe seguia em frente, insensível ao meu choro. Sem forças para prosseguir, deixei que meus joelhos tocassem o chão. Me pegou no colo e continuou sua viagem desvairada.

As pouquíssimas luzes da cidade foram ficando para trás. Tomamos uma estrada escura, sem casas à margem. Alguns minutos depois, avistamos um casarão todo iluminado e em seguida ouvimos música alegre.

Antes de entrar, me desceu e me segurou pela mão. Já numa das primeiras mesas encontramos o velho com uma mulata no colo. Mamãe parou na frente dele e perguntou se podíamos nos sentar. O velho nos olhou com ódio e imediatamente meteu a mão no bolso, tirou algumas notas da carteira, deixando-as sobre a mesa, e saiu sem esperar por nós, perdendo-se na noite.

Não guardei mágoa dele. Mas mamãe não o perdoou. Dizia que não queria vê-lo nem morto. Não estaria aqui se fosse viva. Desde aquela noite, nunca mais se encontraram.

Levantei-me e fui até a cozinha pegar uma garrafa de pinga. Apesar do alto-falante ter anunciado o velório, não aparecia ninguém. É muito cedo, as pessoas devem estar jantando — pensei. Virão depois, para passar a noite.

Com a garrafa na mão fui até a porta. A uns 150 metros ficava a valeta imensa que dividia a cidade em dois hemisférios. Quando criança, nos dias de chuva, costumava andar por ela, tentando vencer a correnteza de água suja.

Bebi mais alguns goles e voltei para perto do coronel. Tinha certeza de que podia tornar a fazenda produtiva. Se não conseguisse vender as terras, iria lotear a parte que ficava dentro da cidade. A casa e a mangueira, arruinadas, não valiam muita coisa. Mas o terreno onde estavam podia se tornar uma bela zona de chácaras, bem no coração de Peabiru.

O povoamento começara por causa da fazenda, que empregava muita gente nas lavouras de café. O coronel tinha 21 anos quando derrubou a mata da região e 40 quando acabou com o cafezal, plantando grama em tudo. Os meeiros foram obrigados a ir embora, dando início à debandada que aumentou quando todos os fazendeiros passaram a plantar soja e trigo. A cidade diminuiu. Mas eu acreditava ser possível começar tudo de novo. A terra está sofrida, mas é de cultura, dizia para mim mesmo, basta trabalhar.

Entornei uma garrafa de pinga sem que ninguém aparecesse. Já era quase meia noite e eu me conformava com a idéia de velar o defunto sozinho. Mas logo depois, já meio dormindo, notei que um menino de uns cinco anos estava ao lado do caixão e olhava fixamente para ele. Ao perceber que eu o observava, veio em minha direção.

Ele também matou o seu pai?

Não! — respondi sem esconder o meu espanto.

Então por que você está aqui?

Porque tenho que estar. E você? — fiquei com pena do menino.

Mamãe não queria que eu viesse e me colocou para dormir mais cedo. Quando todos estavam na cama, pulei a janela e vim.

Devia ter ficado em casa.

Agora ele está do mesmo jeito que vi meu pai: as mãos cruzadas, os olhos fechados e coberto de flores.

É melhor voltar antes que sua mãe descubra.

Eu tinha que ver.

Sei, mas agora vá.

Você acha que devo rezar pela alma dele?

Acho que não é necessário. O melhor é voltar e dormir — disse isso me levantando.

Fui com o menino à porta e o acompanhei com os olhos até sumir na escuridão. De novo ao lado do pai, juntei três cadeiras, à maneira de uma cama, e deitei. A noite ia ser longa e solitária. Pegara antes outra garrafa de pinga, que tentei beber deitado, mas logo estava dormindo.

No outro dia fui acordado pelo rapaz da funerária. Eram sete horas e tínhamos que enterrar o coronel às oito. Minha cabeça doía muito. O rapaz me sugeriu que tomasse um banho e tirasse o terno preto, pois ia fazer calor.

O inverno aqui é assim — falou, ficando quieto um instante e em seguida completando. — É instável.

Sei, mas prefiro continuar do jeito que estou — olhei a rua vazia e perguntei pelo ônibus.

Achei melhor não contratar. O trajeto é pequeno.

Sairemos às oito?

Sim.

Faltavam quinze para as oito quando a Gorda chegou. Até então éramos apenas dois. A Gorda estava com uma calça de laicra vermelha, bem justa, e com uma blusa amarela, decotadíssima. Os seus seios grandes tentavam saltar para fora. O cabelo oxigenado e o rosto pintado com cores fortes deixavam-na com uma aparência exageradamente ridícula. Notando minha desaprovação, disse:

Se quiser não sigo com vocês.

Pode ir sim.

E a cozinheira, não veio?

Mandou o filho avisar que ficou doente.

Ah!

A Gorda ajudou a colocar o caixão no carro. A tampa traseira ficaria aberta e nós seguiríamos a pé.

O carro saiu bem devagar. Eu de preto e a Gorda fantasiada. Parecia mais um pequeno desfile de carnaval. As lojas já estavam abertas. Os turcos colocavam as mercadorias para o lado de fora. Os estudantes a caminho do colégio exibiam uniformes encardidos. O sol castigando e ninguém a olhar para o cortejo.

Melhor tirar o paletó, disse a Gorda.

Vou assim! — falei, juntando as últimas energias.

Acho que esta cidade foi fundada na lua minguante — disse a Gorda, só para ter o que falar.

Passamos na frente do salão de bilhar, que estranhamente estava movimentado àquela hora, e seguimos até ouvir alguém gritando:

Assassino filho-da-puta!

Neste exato momento, terminávamos de atravessar a ponte.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho