O gato

Conto de Vinicius Holanda
Ilustração: Osvalter Urbinati
01/03/2005

“Talvez sejas tu mesmo o único responsável por tal vida assim vazia. Não é possível?”

No princípio, foi o miado.

Encontrei-o à porta de casa, num dia feio de chuva. Molhado, lambendo as patas, não se assustou quando abri o portão. Olhinhos fixos em mim, quando da minha passagem. Nada fiz; não o espantei, não fiz o “psi, psi” que se faz aos gatos, não o acariciei, nada. Apenas o notei ali.

No outro dia, lá estava novamente. Dessa vez, deitado no jardim. Levantou a cabeça de forma brusca assim que me ouviu passar, mas lá continuou. Entrei e isso foi tudo.

Foi na quinta ou sexta vez que o vi que acabei estabelecendo contato. Coloquei uma tigela velha com restos do jantar da noite anterior sobre o gramado da frente. Este o contato.

Dia depois, o recipiente vazio. O bichano havia gostado do prato. Assim, sempre que havia sobras de comida na casa — homens sozinhos sempre acabam comprando comida a mais ou deixam-na estragar —, eu despachava para o tal. Com o tempo, não só o animal sempre me esperava voltar do trabalho ou de minhas saídas, como também começou a demonstrar certa afeição por mim.

A primeira vez que entrou. Foi numa noite de segunda-feira. Eu cheguei apressado, esperando um telefonema, e corri para a cozinha. Dali, fiz a ligação. Ao terminar, me pus a preparar a janta, um qualquer resto de fim de semana. Notei a presença dele, tímido, à porta. Continuei, sem dar atenção. Lá ficou, em quietude abismal. Só um leve ronronar algo distante. Sentei-me, abri meu jornal e garfei uns pedaços da carne. Por entre cada virada de página, lançava olhar em sua direção. Comecei a notar melhor sua feição.

Era esguio, aparentemente elegante, com alguma altivez. Grande parte do corpo tinha manchas preto-cinzentas, esparsas, sobre um fundo branco, como uma vaca leiteira. Os bigodes apresentavam rigidez espartana, de tão retos. Pêlo curto e uniforme. E os olhos, pequenos, pareciam querer comunicar, tinham expressividade que nem sempre eu encontrava em seres humanos. Era belo, enfim.

Desse ritual de alimentações noturnas, o gato tornou-se parte da casa. Sempre deixava um vão da janela de trás da casa para que pudesse entrar, mesmo antes do jantar. Logo, ele morava comigo. Não era ruim; fazia as necessidades no jardim, não requeria qualquer trabalho, era silencioso e sóbrio. Parecia sempre estar à parte, o que, ao meu ver, agora, é uma virtude. Desde de minha separação, habituei-me à quietude. É bom falar consigo mesmo, sem o perigo de réplicas e argumentações desnecessárias, sem ter o esforço e o desprazer de pensar o “outro” ou, pior, ouvir o que o “outro” pensa de você. Muito em virtude disso, minha relação com Estela não resistiu. Estaria mentindo, claro, se dissesse que não sinto sua falta. Ela, Estela. Mas o insustentável é a maior das forças, sempre. Quando partiu, ela, Estela, me abraçou com a frieza do minuano.

No princípio, foi o miado. Na única vez em que tentei acariciá-lo, miou. Era estranho seu som, seco e grave. Como se eu o tivesse agredido ou enxotado. Soltou um segundo mio, nada melódico também. Um belo gato com uma miadela tão feia. De tão desagradável, nunca mais o toquei.

Mas, se principia, tem fim. Após chegar em casa, ontem, sentei-me à mesa de canto, diante do telefone. Exausto, tenho estado exausto desde sempre, acho. Ali fiquei, imóvel. Uma cena de fotografia, retrato do nada, em preto e branco. Até. Até que. Ele disse: “Talvez sejas tu mesmo o único responsável por tal vida assim vazia. Não é possível?

Não podia fazer nada além de ignorá-lo, como da primeira vez. Ficamos, os dois, ainda um tempo impassíveis. Ele insistiu. “Não é possível?”. Tremi. De raiva, de ódio, ira. Como poderia um desgraçado daquele se achar no direito de me inquirir sobre o que fiz, faço, farei, o que diabos faria, o que quer que venha a fazer com minha própria vida?!

Ainda tentei manter a postura exterior, não devia considerações àquela intromissão. Ainda mais de um insignificante como aquele. Tentei, mas era impossível não demonstrar que aquilo havia me incomodado. Quando o escutei dizer “acalma-te, teu nervosismo diz mais que tua boca o faria”, percebi que lidava com um inimigo. Um inconseqüente, insensível e covarde. Alguém a quem confiei abrigo e proteção, respeito e amabilidade. Como ousava, após tudo, dirigir-me palavras assim tão ríspidas? Eu, que nunca pedira opinião sobre nada, sobre qualquer aspecto de minha existência.

Levantei-me da poltrona, atordoado, e o fitei. Os olhinhos de um pobre bichano na face de um monstro. Estava me sentindo frágil diante daquele ataque repentino. “O que fiz pra merecer isso?”, deixei escapar. “Talvez tenha colocado uma redoma ao teu redor, homem, afastando todos de ti.” “Desgraçado! Petulante!”, eu. “Agrides cego, sem antes tentar ver. Temes o espelho, não?”, ele. Que insanidade era aquela, eu a escutar as impressões de um ser enfadonho. “Você não sabe nada, bicho infame. Sua opinião sobre meus atos nada me diz. Eu sei o que sou, como devo agir, como me comportar. Você, irracional, reserve-se ao silêncio!”, eu, mais. “Tu me bates, pois me considera inferior, um gato. Sim, eu sou. Só que consideras inferior a todos, incluindo, aí, os teus semelhantes, e deles, como de mim, crias distância, por meio de agressões insensatas, temerosas e, antes de tudo, impensadas”, ele, ainda mais.

Meus olhos agora tristes. “Te deixei entrar, estar próximo, te alimentei, como pode ser tão ingrato?”. Altivo, senhor de si, ele: “Nada pedi, apenas considerei sinceras tuas predisposições. Estar ali, eu, animal, era senão uma forma de aplacar no que possível tua imensa solidão, eu logo soube; fazer findar um mínimo que fosse tua solidão e dor, imensas”.

“Bicho desgraçado!”, eu. Num ímpeto, o telefone voando contra a parede. Ira. “Bicho diabólico!”. O gato recua diante dos estilhaços, se colocando outra vez elegante, próximo do abajur. Um olhar de reprovação. “Assim destrói-te um pouco também, homem. Tomas assento aí, dias e dias, na esperança de ouvir a voz de alguém, qualquer, nesse objeto que agora jaz espatifado neste chão. Sabes disso, sim?”

Um monstro, em minha sala. O que houve de errado? Por que isso? Uma provação? Nunca acreditei em provações ou coisas semelhantes, tributos que temos que pagar em vida, idiotias afins. Que inferno é esse, então? “Ponha-se daqui pra fora, bicho pulguento! Estou louco de dar ouvidos a um gato!”, eu, assim. “Posso ir, mas de nada valerá. Tu não podes escapar de teu próprio espelho, homem. Não vês? Teu semelhante te mostrou, nada valeu. Eu mostro agora, você finge não entender. O que virá depois? Uma árvore, talvez?”, ele, terrível.

Ela, Estela. Quando discutíamos, ao menos havia um interlocutor da minha espécie à minha frente. Com os diabos se os argumentos continham semelhanças; eram errôneos, isso é o que me importa. Mas… um gato? E desbocado dessa maneira?

“Tu preferes te cegar a seguir um rastro, ínfimo que seja, de luz”, o mórbido. Nada mais a fazer. Temperança e quietude. De soslaio, a ele: “É o que você acha? Não tem pena de mim?”. Meia-luz sobre o focinho, os pêlos como pinturas primitivas, um quadro rupestre. Então: “Te feres e feres a todos para não sofrer só. Sim. Sinto pena de ti”.

Qualquer ponderação é desnecessária, sei. Ações incitam reações. Não sou tolo, ainda poderá nascer o que me desmentirá. Quando. Há ao meu redor o que construo; vida é assim. Somos os carpinteiros de nós. Nunca perdi uma noite de sonho.

No princípio, foi o miado. Hoje, a janta é para um só.

Vinicius Holanda

É ficcionista, poeta e jornalista.

Rascunho